Elas controlam infraestruturas do país, de delegacias de polícia a portos marítimos. Expulsaram centenas de pessoas da capital. E são suspeitas de ligação com o assassinato do presidente do Haiti, em 2021. Diplomatas e autoridades ocidentais afirmam que a influência e a capacidade de muitas gangues haitianas estão aumentando, tornando-as cada vez mais ameaçadoras para a força multinacional de polícia liderada pelo Quênia prestes a ser acionada no país, assim como para o frágil conselho de transição que tenta organizar eleições.
Com a chegada prevista daqui a alguns dias, os cerca de 2,5 mil policiais combaterão gangues mais bem equipadas, financiadas, treinadas e unidas do que qualquer missão acionada anteriormente na nação caribenha, afirmam especialistas em segurança.
No passado dependentes principalmente das elites políticas e empresariais para obter dinheiro, algumas gangues encontraram maneiras independentes de financiamento desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 2021, e o desmoronamento do Estado haitiano que se seguiu.
“As gangues ganhavam dinheiro com sequestros, extorsões e pagamentos por apoio a políticos durante as campanhas eleitorais e com as elites empresariais entre as eleições”, afirmou o especialista em direitos humanos das Nações Unidas para o Haiti, William O’Neill. “Mas as gangues são hoje muito mais autônomas e não precisam do aporte financeiro da velha-guarda”, acrescentou ele. “Elas criaram um Frankenstein incontrolável.”
Um arsenal mais poderoso do que qualquer outro já reunido no passado auxilia as gangues, de acordo com duas autoridades do Departamento de Justiça que conversaram com a reportagem sob condição de anonimato para discutir informações sensíveis de inteligência. Desde fevereiro, algumas gangues adquiriram armas automáticas — possivelmente uma mescla entre armamentos roubados de Exércitos da região e rifles convertidos em fuzis semiautomáticos, afirmaram as autoridades.
As gangues também mudaram sua postura pública, postando vídeos em redes sociais de seus integrantes agindo como milicianos com ambições nacionais e menos preocupadas com suas usuais guerras por território.
Algumas gangues do Haiti começaram a trabalhar juntas em setembro, quando anunciaram uma aliança chamada Vivre Ensemble, ou Vivendo Juntos, dias depois da República Dominicana fechar sua fronteira terrestre com o Haiti.
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A ideia foi unir as gangues para superar obstáculos apresentados pelo fechamento da fronteira para suas operações de tráfico de drogas, de acordo com dois diplomatas ocidentais com foco no Haiti que não têm autorização para falar publicamente sobre o tema.
Mas a aliança ruiu uma semana depois de ser anunciada, após cerca de 2 toneladas de cocaína serem roubadas do chefe de gangue haitiano Johnson André, conhecido como Izo, afirmaram os diplomatas.
Acredita-se que a gangue de Izo — 5 Segonn, ou “Cinco Segundos” em crioulo haitiano — é a organização que mais trafica cocaína no Haiti, enviando grande parte do que adquire diretamente para a Europa, de acordo com os diplomatas.
No fim de fevereiro, a aliança Vivre Ensemble foi ressuscitada. As gangues prometeram depor o primeiro-ministro do país e resistir à força de segurança liderada pelo Quênia após seu acionamento, chamando seus agentes de “invasores”.
Dias depois, a aliança atacou duas penitenciárias e libertou cerca de 4,6 mil detentos, muitos deles juntaram-se às suas fileiras. O caos forçou o então primeiro-ministro do Haiti, que estava fora do país, a renunciar.
Segundo autoridades haitianas, entre os fugitivos da cadeia estava Dimitri Hérard, o ex-chefe da unidade de segurança que protegia o palácio presidencial quando Moïse foi assassinado. Hérard ordenou que seus homens não agissem enquanto mercenários atacaram a residência do presidente. Estava na prisão aguardando julgamento por acusações ligadas ao assassinato quando foi libertado pela ação das gangues.
Hérard passou a ajudar a organizar a gangue de Izo, virou conselheiro do chefão e pode estar estabelecendo conexões com organizações criminosas maiores na região, incluindo cartéis de narcotráfico, de acordo com uma autoridade regional de inteligência e dois diplomatas ocidentais.
As gangues haitianas parecem estar usando armas similares às do Clã do Golfo, um cartel da Colômbia, que opera ao longo da costa caribenha do país e utiliza países vizinhos para traficar cocaína. O presidente colombiano, Gustavo Petro, afirmou no mês passado que milhares de armas foram roubadas de quartéis militares de seu país, vendidas para grupos armados, como cartéis, e podem ter seguido para o Haiti.
Outro poderoso líder de gangue, Vitel’homme Innocent, também foi ligado pelas autoridades ao assassinato de Moïse. Ele alugou um dos carros usados na ação, de acordo com um relatório da polícia haitiana.
Hérard também foi o principal suspeito em uma das maiores investigações já realizadas no Haiti pela Agência de Fiscalização de Drogas (DEA), do Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Em 2015, o navio cargueiro MV Manzanares ancorou em Porto Príncipe com mais de 1 tonelada de cocaína e heroína escondidas em sacos de açúcar.
Na época, o presidente do Haiti era Michel Martelly, e Hérard era autoridade graduada da força de segurança presidencial. Hérard foi visto por várias testemunhas no porto dando ordens para integrantes da guarda presidencial desembarcarem as drogas do navio e colocá-las em carros de polícia.
A maior parte dos entorpecentes apreendidos nesse caso desapareceu. Testemunhas foram intimidadas por autoridades do governo haitiano, incluindo pelo então policial Jimmy Chérizier, de acordo com Keith McNichols, um ex-agente da DEA que trabalhou no caso.
Também conhecido como Barbecue, Chérizier é hoje um dos líderes de gangue mais poderosos no Haiti e integrante importante da coalizão Vivre Ensemble.
“As gangues estão cada vez mais ligadas ao narcotráfico”, afirmou O’Neill, das Nações Unidas. “E dado que alguns ex-policiais, como Hérard, estavam envolvidos no comércio de drogas quando Martelly foi eleito, não me surpreenderia se as gangues estivessem agora tentando cortejar essas ex-autoridades.”
Mais recentemente, autoridades cientes das negociações para nomear um novo primeiro-ministro haitiano afirmaram que Martelly tem feito lobby com líderes caribenhos e seus aliados políticos para compor o governo interino.
Seus aliados no conselho de transição têm circulado silenciosamente uma proposta para conceder imunidade às gangues, afirmaram as autoridades, possivelmente como parte de uma imunidade maior para ex-autoridades do governo que possam ser acusadas de corrupção.
“Nego categoricamente essas alegações infundadas de interferência ativa no conselho de transição”, declarou Martelly em um comunicado ao New York Times, afirmando que as acusações têm motivação política. “Nunca tinha nenhuma relação com gangues, nem fiz referência a anistia para ninguém.”
O governo de Martelly, presidente do Haiti entre 2011 e 2016, foi acusado de corrupção desenfreada, incluindo o desvio de cerca de US$ 2 bilhões em ajuda da Venezuela. Em 2022, o Canadá impôs sanções contra Martelly e outros políticos haitianos por proteger e dar poder às gangues, “incluindo por meio de lavagem de dinheiro e outros atos de corrupção”.
“A ideia de uma anistia poderia jogar gasolina na fogueira se os haitianos não forem consultados”, afirmou o analista de segurança especializado em Haiti Romain Le Cour, da Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional, “considerando a incapacidade dos políticos de se unir neste momento de crise e dado que as gangues cometeram graves violações de direitos humanos”. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO