ENVIADA ESPECIAL A BUENOS AIRES - Gabriel Castillo Jimenez é um bebê de dois anos que vive em Santiago del Estero no norte da Argentina, uma das cidades mais pobres do país. Ele está crescendo e precisa de sapatos novos, mas sua mãe, Julieta Castillo, não tem dinheiro para comprá-los. Ela prefere utilizar a pouca renda que tem para comprar alimentos e evitar que a família passe fome.
Na Argentina, casos como o de Julieta e Gabriel são cada vez mais comuns. Hoje, 54,2% das crianças e adolescentes de 0 a 14 anos vivem em situação de pobreza, segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec). A situação tem se agravado nos últimos anos, mas não figura entre os temas da campanha das eleições de outubro.
Julieta compartilha a casa com o filho, outros seis irmãos e seus pais. Atualmente desempregada, a renda vem de trabalhos informais e de programas de transferência de renda do governo. A ajuda estatal, no entanto, é insuficiente. Com o aumento da inflação na Argentina, que em 12 meses já supera os 100%, o pouco dinheiro que consegue vale cada vez menos.
Roupa ou comida?
Julieta sente na prática o impacto da inflação. Embora trabalhe informalmente com limpezas domésticas e até vendendo pães e doces na rua, sua maior renda vem da Asignación Universal por Hijo, um programa social que, em conjunto com o trabalho informal, lhe permite ter uma renda de de 35 mil a 40 mil pesos mensais (R$ 400). “Utilizo esse dinheiro para comprar alimentos, verduras, frutas e carnes, e sendo sincera ultimamente é só o que ando comprando”.
“A última vez que comprei algo novo para o Gabriel foi em outubro, quando comprei uns sapatos. Mas as crianças crescem e o sapato já não serve mais”. O que ajuda a aliviar a situação, conta, é a ajuda que recebe da ONG Haciendo Camino, que há 16 anos trabalha com nutrição infantil em Santiago del Estero.
Com ajuda da organização, Julieta conta que consegue guardar dinheiro para comprar frutas e verduras, o que não conseguiria só com a renda do governo. Além disso, ela participa de algumas oficinas de costura da ONG, o que a permite costurar roupas que não pode comprar normalmente, como pijamas.
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Inflação galopante
Criados no governo de Cristina Kirchner, em 2009, e inspirado no Bolsa Família brasileiro, a Asignación Universal por Hijo (Subsídio Universal por Filho, em tradução livre) paga hoje 11 mil pesos por mês (o equivalente a R$115).
O mesmo acontece com a Tarjeta Alimentar (Cartão alimentação, em tradução livre), que dá atualmente 17 mil pesos (R$170) para famílias com um filho, 26 mil pesos (R$260) para quem tem duas crianças e 34 mil pesos para pais de três (R$ 340). Para base de comparação, no Brasil, o Bolsa Família paga atualmente R$600, mais R$ 150 por filho até seis anos.
A inflação, no entanto, consome o valor da ajuda rapidamente e a crescente perda do poder de compra desses programas contribui para o aumento da pobreza infantil.
“Os ajustes de valores dessas campanhas não acompanham o ritmo da inflação”, explica Gala Diaz Langou, Diretora Executiva do Centro de Implementação de Políticas Pública para a Equidade e Crescimento (Cippec), organização social com sede em Buenos Aires. “As transferências de renda têm atualizações trimestrais, enquanto os alimentos sobem quase 10% por semana em termos inflacionários”.
Pobreza multidimensional
Em um sinal de que o problema é ainda mais grave, em um levantamento publicado em fevereiro deste ano, a Unicef contabilizou 66% de crianças dentro da chamada pobreza multidimensional, que considera ausências de renda, moradia, saúde, educação, e não apenas a renda familiar, como é o caso do Indec.
“São crianças que vivem em lares que não conseguem adquirir uma cesta básica de alimentos e serviços”, observa Ianina Tuñon, especialista em infância no Observatório da Dívida Social Argentina, da Universidade Católica Argentina. “Mas também existe o nível da indigência, que é quando os lares não acessam nem o básico de alimentação, que também afeta muito mais as crianças que outras populações”.
De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), a taxa de pobreza entre crianças e adolescentes é de mais de 45% na América Latina, contra 30% entre adultos de 35 a 44 anos e 16,2% entre os acima de 65 anos. No Brasil a taxa de pobreza infantil é de 63%, segundo o estudo da Unicef.
Julieta Castillo, mãe argentina e desempregada
Um problema crônico
Inflação e pobreza, principalmente no norte do país, são um problema crônico na Argentina. A organização que ajuda Julieta trabalha com assistência a crianças de 0 a 5 anos na região por meio de programas como acompanhamento nutricional, suplementação e entrega de leite, bem como instrução e capacitação para mães.
“Essa pobreza estrutural existe em Santiago del Estero há muitos anos, te diria que mais de 20 facilmente, o que faz com que essa pobreza infantil se materialize muito mais”, afirma Florencia Treglia Mecias, Diretora de Programas de Haciendo Camino.
De fato, desde que o Indec retomou o acompanhamento da taxa de pobreza infantil na Argentina, em 2015, o índice subiu tanto no governo de Mauricio Macri, de centro-direita, quanto no de Alberto Fernández, de centro-esquerda.
“O que ocorre com a pobreza infantil é que gera uma pobreza ainda mais estrutural”, completa Mecias. “Porque é uma pobreza que não só impede a criança de hoje conseguir comer, mas também de se desenvolver.”
Futuro ameaçado
O trabalho de organizações da sociedade civil, como de Haciendo Camino, bem como os programas de renda amenizam os efeitos da pobreza no curto prazo, mas são insuficientes para encerrar o ciclo de pobreza, alertam as especialistas. Ainda assim, apesar de o tema da pobreza ser historicamente central nas campanhas presidenciais argentinas, não se faz o recorte da pobreza infantil.
“Em termos proporcionais, nunca houve uma melhora na situação das crianças argentinas”, observa Langou. “E isso atravessou diversos governos. O que mostra que não é uma questão conjuntural nem do pós-pandemia ou nem mesmo da crise atual, mas sim que é algo estrutural de como nos organizamos como sociedade”.
Por dentro das campanhas de alguns dos principais candidatos presidenciais ouvidos pela reportagem, a abordagem é de trabalhar para mudar a situação econômica como um todo o que, por consequência, impactaria às crianças. O que é um erro, na avaliação de entidades que trabalham com pobreza, já que desconsidera o impacto a longo prazo da pobreza. “Não é o mesmo viver a pobreza quando se é criança e quando se é adulto, as marcas da pobreza infantil são de difícil reversão”, alerta Tuñon.
“O que vejo é que o tema não tem nenhum tipo de incidência nem na atual gestão do governo nem nas campanhas políticas”, completa a professora. “Se supõe que se consertarem os problemas econômicos em geral haverá um efeito cascata nos lares que deve enfim beneficiar as crianças, mas a verdade é que não há políticas anticíclicas que permitam proteger as crianças.”
A especialista observa que, ao jogar a problemática para segundo plano, não se considera que a pobreza na infância leva consequências para a vida adulta. Crianças com baixo acesso à alimentação e serviços básicos representam uma menor força de trabalho, pior nível de educação e até mesmo acesso limitado a tecnologias. “De certa forma, não estamos apenas criando obstáculos para o desenvolvimento humano e social dessas crianças, mas também estamos ameaçando o futuro do nosso país”.
Julieta também não vê uma preocupação política com o tema. “Sinto que os políticos não se preocupam com a situação da pobreza nem nas crianças, nem nos idosos, em ninguém”, desabafa. “Uma vez que chegam à política, eles se preocupam só com eles mesmos.”