BERLIM — Um bando desorganizado, classificado como desvairado, inofensivo e inoportuno, o grupo Reichsbürger — ou Cidadãos do Reich — transita no campo da extrema direita alemã há décadas. Mas após as autoridades da Alemanha acusarem membros do movimento de conspirar para depor o governo do país e assassinar o chanceler, uma face absolutamente diferente do obscuro grupo se revelou na quinta-feira: de uma ameaça terrorista séria, carregada pesadamente de teorias de conspiração a respeito do coronavírus e das vacinas anticovid.
Entre os 25 membros da célula presos esta semana estavam uma juíza, um médico, um cozinheiro, um piloto, um tenor de música erudita e três policiais. Pelo menos 15 indivíduos tinham ligação com forças militares, incluindo ex-soldados ou soldados na ativa e dois reservistas com acesso a armas. As prisões colocaram a Alemanha em alerta elevado e, depois de meses de vigilância, desencadearam uma das maiores operações antiterrorismo na história da Alemanha no pós-2.ª Guerra.
O grupo, que não reconhece a Alemanha moderna como Estado, viu seus quadros crescerem de 2 mil integrantes para mais de 21 mil desde que os primeiros lockdowns pandêmicos começaram, mostram estimativas do governo. O movimento “estabeleceu-se como a maior ameaça extremista da direita radical na Alemanha por meio da pandemia”, afirmou Miro Dittrich, pesquisador-sênior do CeMAS, instituto de análise com base em Berlim com foco em extremismo de direita e teorias conspiratórias.
“O perigo não é apenas haver membros armados e treinados vindos das forças militares e de policiamento dentro do grupo, mas também o fato do número de permissões para possuir armas de fogo ter aumentado e muitos indivíduos nesse grupo terem essas autorizações”, acrescentou ele.
Em 50 das 150 residências averiguadas na quarta-feira foram encontrados equipamentos militares, incluindo armas de fogo, munições, armas de choque, óculos de visão noturna, bestas, facas, capacetes de combate e até espadas, afirmaram a polícia federal e autoridades de inteligência. Também foi apreendida uma quantia considerável em dinheiro, de mais de 100 mil euros, assim como ouro e prata.
Entre os itens apreendidos estava também uma lista com 18 nomes de políticos e jornalistas considerados inimigos, incluindo o chanceler Olaf Scholz e sua ministra de Relações Exteriores, Annalena Baerbock. Mais prisões são esperadas após a análise dos materiais apreendidos. Um total de 54 indivíduos está atualmente sob investigação.
Além da conspiração debelada esta semana, os Reichsbürgers também estiveram por trás de uma tentativa fracassada de invasão do Parlamento alemão durante durante um protesto antivacina dois anos atrás, e acredita-se que eles inspiraram uma conspiração para sequestrar o ministro da saúde e tentar um golpe de Estado anteriormente este ano.
“Essa cena Reichsbürger foi com frequência menosprezada, até por autoridades de segurança. Bem, não é mais assim”, afirmou o cientista político Hajo Funke, da Universidade Livre, em Berlim, que estuda a extrema direita.
Extrema direita na Alemanha
O movimento Reichsbürger acredita que a república alemã constituída no pós-2.ª Guerra não é um país soberano, mas uma corporação estabelecida pelos Aliados após o fim do conflito.
Acredita-se que o pai-fundador do movimento é Wolfgang Ebel, um trabalhador ferroviário de Berlim Ocidental que foi demitido depois de participar de uma greve nos anos 80. Quando sua tentativa de ser tratado como funcionário público fracassou, em uma série de processos judiciais, ele começou a se autodeclarar chanceler do Reich e referir-se à sua residência como Comissariado do Governo Imperial. Aparentemente ele vendia cartões de identidade e passaportes do Reich aos seus seguidores.
Por anos, membros do movimento chegaram ao noticiário principalmente por se recusar a pagar impostos e entregar seus passaportes, exigindo, em vez disso, um certificado que os identificasse como cidadãos da pátria alemã e com frequência indicando seu local de nascimento como os reinos da Prússia ou da Baviera.
Mas, desde o advento da pandemia, eles se tornaram os maiores propagadores de teorias da conspiração violentas e antissemitas, notavelmente aquelas atreladas ao movimento QAnon.
A mitologia e a linguagem usadas pelos adeptos do QAnon — incluindo a existência de um “Estado profundo” composto por elites globalistas que controlam governos e fantasias de vingança contra essas elites — conjuram anedotas antissemitas ancestrais e visões golpistas que animam a extrema direita alemã há muito.
Assim como o movimento QAnon, o grupo Reichsbürger usou a pandemia para atrair uma incoerente mistura entre céticos em relação a vacinas, pensadores extremistas e cidadãos comuns afirmando que a ameaça da pandemia foi exagerada e que as restrições do governo alemão foram injustificadas.
Lorenz Blumenthaler, estudioso da extrema direita alemã, classifica o Reichsbürger como uma “ideologia de entrada”, porque o movimento atrai diferentes grupos desencantados com o governo.
Como outros grupos de extrema direita, o Reichsbürger foi capaz de explorar hostilidades em relação a imigrantes após o fluxo de refugiados e migrantes de 2015 e em 2020 valeu-se das frustração a respeito das regulações de lockdown anticovid. A pandemia permitiu ao grupo encontrar novo apoio além dos indivíduos que normalmente gravitam para a direita e se aproveitou de uma profunda vertente de teorias conspiratórias cada vez mais potente. “O grupo assumiu um nível de radicalização completamente novo”, afirmou Blumenthaler.
As teorias conspiratórias do movimento QAnon se encaixaram com as narrativas dos Reichsbürgers. A célula presa esta semana havia planejado derrubar o governo alemão, chamado pelos extremistas de “Estado profundo”, e posteriormente negociar um tratado de paz com os Estados Unidos, afirmaram as autoridades.
Nos EUA, o QAnon já evoluiu de uma subcultura extremista na internet para um movimento de massa, que em certos casos se tornou força política. Mas a pandemia energizou fortemente teorias de conspiração muito além das fronteiras americanas.
A chave de ignição para a disseminação do movimento QAnon na Alemanha foi o “Defender-Europe 20″, um exercício em grande escala da Otan, que acabou reduzido em razão da pandemia. Seguidores do grupo afirmaram que o governo alemão tinha usado uma “pandemia falsa” para desbaratar o que eles viam como um plano secreto de libertação liderado pelo ex-presidente Donald Trump com objetivo de restaurar o Reich Alemão.
O Reichsbürger se atrelou ao tráfego online do QAnon para dar mais visibilidade às suas próprias teorias conspiratórias. Naquela primavera, os dois movimentos se fundiram em um mesmo grupo no Facebook, seguido uma semana depois por um canal no aplicativo de mensagens Telegram, o que amplificou ambos.
Uma das pessoas presas na quarta-feira foi uma ex-legisladora do partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha, ou AfD, a juíza Birgit Malsack-Winkemann. Ela vinha postando regularmente no Telegram usando o slogan “WWG1WGA”, referindo-se a um dos lemas do movimento QAnon, “Where we go one, we go all” (Onde for um, vamos todos nós).
Por um longo período as autoridades não levaram o grupo Reichsbürger a sério. Somente em 2016 — quando um seguidor do movimento fortemente armado, encurralado em sua residência, abriu fogo e baleou quatro policiais, matando um deles — a coisa mudou.
Konstantin von Notz, deputado alemão
“Aquilo foi um ponto de inflexão”, recordou-se o legislador Konstantin von Notz, que integra a comissão de supervisão de inteligência. “Antes eles não eram considerados perigosos.”
A conspiração debelada na quarta-feira, que incluía planos para atacar o Parlamento alemão e instalar um novo governo liderado pelo príncipe Heinrich XIII, de Reuss, descendente de uma família de 700 anos, de nobres alemães, parecia alucinada. Mas autoridades alemãs afirmam que o ataque ao Capitólio dos EUA, em 6 de janeiro de 2021, durante o qual seguidores do movimento QAnon atuaram notoriamente, mostrou que qualquer dessas conspirações, por mais bizarras que possam parecer, têm de ser levadas a sério.
“Eles tinham um plano bem concreto de conquista”, afirmou Von Notz. “Depois do 6 de Janeiro, não podemos arriscar. Temos de levar essa ameaça muito a sério.”
A Alemanha teve sua própria versão do 6 de Janeiro, ainda que malsucedida e de escopo muito menor. Em agosto de 2020, dezenas de membros do grupo Reichsbürger e outros apoiadores da extrema direita que participavam de um protesto contra vacinas afastaram-se da manifestação em direção ao Palácio do Reichstag, o histórico edifício do Parlamento alemão, com intenção de forçar sua entrada. A polícia teve de impedi-los.
Mas, poucos meses depois, ativistas da extrema direita e outros que postam vídeos em redes sociais conseguiram acesso ao edifício, auxiliados por um então legislador do AfD, e interpelaram o ministro da Economia na época, mas não o feriram fisicamente.
Poucos acreditam que a célula presa esta semana ou outros grupos desse tipo tenham capacidade real de levar a cabo um golpe de Estado bem-sucedido. Mas isso não diminui sua disposição de tentar, nesse processo, cometer atentados terroristas, afirmam especialistas em extremismo.
“A probabilidade de um golpe é muito pequena, mas a chance de pessoas morrerem em ataques terroristas aumentou”, afirmou Dittrich, do instituto CeMAS. “Com o tempo isso se torna uma ameaça à democracia”, acrescentou ele. “Isso mostra que parte da população alemã se afasta da democracia e está pronta para cometer atos de violência.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL