Compra de armas na Europa bate recorde com guerra na Ucrânia e medo de expansionismo russo


Movimentos da Rússia tem feito Europa retornar seus investimentos militares para níveis da Guerra Fria e cada vez mais países planejam expandir suas estratégias de defesa

Por Carolina Marins e Daniel Gateno
Atualização:

A guerra da Ucrânia trouxe de volta o temor de que o sonho de um continente pacífico e integrado sob a liderança da União Europeia possa estar em risco. Esse medo foi expressado recentemente pelo presidente italiano Sergio Matarella, que, em reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, alertou para o risco de Vladimir Putin comece a anexar países no Leste Europeu, invadindo e tomando territórios, a exemplo do que ocorreu na 2ª Guerra.

O temor de Matarella se repete em outras capitais europeias, como Londres, Berlim, Varsóvia e Helsinque. Desde o ano passado, as principais potências europeias decidiram rever estratégias de Defesa diante da ameaça de Vladimir Putin, com direito a um aumento no gasto em armas e preparação para conflitos de alta intensidade. No Leste Europeu, especialmente a Polônia e a Finlândia - historicamente vítimas das pretensões territoriais russas - também ‘caíram na real’ diante da invasão.

Esse cenário, aliado à necessidade de repor estoques de armas cedidos à Ucrânia, fez com que a Europa tenha liderado o investimento militar no planeta no ano passado, segundo dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri, na sigla em inglês) publicados em abril.

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A guerra na Ucrânia alavancou o investimento global em defesa Foto: Serhii Nuzhnenko/ REUTERS

Esse levantamento indica que 23 de 36 países europeus aumentaram seus gastos militares, parte para repor armamentos doados à Ucrânia, parte para fortalecer seus arsenais. O valor total do investimento da região chegou a US$ 345 bilhões ( cerca de R$ 1,5 trilhão), um aumento de 3,6% na comparação com 2021.

Entre as grandes potências europeias, Reino Unido e Alemanha correspondem aos maiores aumentos em gastos militares. Londres ampliou o investimento em armas em 3,7% e a Alemanha, em 2,3%. No Leste, com a exceção óbvia da Ucrânia, cujos gastos cresceram 640%, os maiores investimentos foram feitos pela Polônia e a Finlândia, que optou no ano passado por aderir a Otan. Varsóvia ampliou os gastos militares em 11% e Helsinque, em 2,4%. Outro destaque é a Lituânia, que gastou 2,5% a mais em armas que em 2021, em um cenário no qual Putin tem sido cada vez mais agressivo em relação às ex-repúblicas soviéticas do Báltico.

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Alemanha armada

Mas talvez o maior exemplo desse cenário de uma Europa preocupada com sua defesa seja a Alemanha. Em fevereiro, o chanceler Olaf Scholz declarou uma nova era quando o país declarou um investimento de 100 bilhões em armas. Na última semana, a mesma Alemanha lançou sua primeira Estratégia de Defesa Nacional traçando detalhes para fortalecer a defesa do país diante da Rússia.

“O que os números estão mostrando para gente é uma deterioração nas condições de segurança e na percepção de segurança que os países estão tendo no mundo”, explica Diego Lopes da Silva, pesquisador do Programa de Despesas Militares e Produção de Armas do Sipri e um dos autores do relatório.

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“A gente tende a ver o surgimento de outros tipos de guerra, como guerra por procuração, guerra de informação, interferência externa, guerras de desestabilização”, concorda Mariana Kalil, professora da Escola Superior de Guerra.

Paz e globalização

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Após o fim da Guerra Fria, o mundo naturalmente se desarmou para níveis quase abaixo de US$1 trilhão. O clima era de otimismo na política internacional, com a representação de uma nova ordem mundial em meio a dissolução da União Soviética. Enquanto a política externa passava uma sensação de diálogo e multilateralismo, os gastos militares foram reduzidos.

“Este período da década de 90 é chamado de dividendo de paz, foi marcado pelo clima de cooperação, de que havia uma nova ordem mundial, uma confiança maior nas instituições”, avalia Diego Lopes da Silva.

Entre a Queda do Muro de Berlim e a Crise de 2008, o aumento de investimento militar ficou a cargo basicamento dos Estados Unidos, às voltas com a sua Guerra ao Terror no Iraque e no Afeganistão. “Washington concentrava de forma inequívoca os gastos militares e os demais países se sentiam seguros o suficiente para não precisar investir em defesa”, aponta Mariana Kalil.

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Com a invasão russa da Crimeia, lentamente, uma nova corrida armamentista começou a se formar. “Politicamente a invasão da Geórgia foi um indício de que a Rússia estava disposta a fazer algo do tipo, mas ainda não havia gerado uma resposta tão grande em gastos militares. Foi a anexação da Crimeia que gerou essa resposta”, pontua Silva.

Um futuro mais militarizado

Além dos aumentos reais, países como Alemanha, França e Reino Unido aumentaram os seus “encargos militares”, ou seja, a fatia do Produto Interno Bruto destinada ao setor. Em um sinal de que o aumento nos investimentos militares está apenas começando.

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No mesmo evento em que anunciou o incremento de centenas de bilhões de euros para um fundo especial em defesa, Scholz falou de sua intenção em investir mais de 2% de seu PIB em militarismo - valor mínimo exigido pela Otan. Desde o fim da Guerra Fria, a Alemanha manteve seus investimentos abaixo dos 2%, segundo dados do Banco Mundial. Em 2021 esse montante havia sido de 1,3%.

O mesmo aumento nos encargos pôde ser visto com o Japão - que, assim como a Alemanha, mudou drasticamente sua estratégia de defesa - bem como Ucrânia e Rússia, o que já era esperado. Outros, como Dinamarca, traçam planos para aumentar seus investimentos aos poucos até 2033.

O chanceler alemão Olaf Scholz e o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, participam de uma coletiva de imprensa em Berlim, Alemanha, em 19 de junho de 2023 Foto: Filip Singer / EFE

“Os governos têm contado com diferentes métodos para financiar os aumentos anunciados nas despesas militares”, observa o relatório do Sipri. “Por exemplo, a Dinamarca aboliu um feriado público para aumentar a receita tributária para seus gastos militares, enquanto a Alemanha e a Polônia planejam usar a dívida como fonte de financiamento”.

Parte deste aumento, ressalta o documento, foi destinado à ajuda militar para a Ucrânia, mas a maior fatia se concentra em investimento para repor o arsenal militar doado, bem como aumentar a defesa. No caso do Reino Unido, o maior doador para Kiev atrás dos EUA, somente US$ 2,5 bilhões foram destinados à Ucrânia, dos US$ 68,5 totais gastos no ano.

De acordo com Mariana Kalil, esses gastos militares são abrangentes e podem consistir em inteligência para combater ataques cibernéticos e espionagem. “Existem diversas formas de desestabilizar um regime ou Estado, não necessariamente a guerra vai ser clássica de trincheiras. Então existem países que estão tentando se defender dessas formas não convencionais de fazer guerra”, avalia Kalil.

Um exemplo de métodos não tradicionais de tensões está nos países bálticos e escandinavos, que convivem diariamente com ações de espionagem, intimidação e sabotagem por parte da Rússia.

O presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, participou da cúpula do G-7 em Hiroshima onde se encontrou com diversos líderes internacionais e obteve forte apoio militar para a contraofensiva ucraniana  Foto: Kyodo News / AP

Flerte com a Otan

Outro sinal que indica um futuro ainda mais militarizado é a entrada da Finlândia, país historicamente neutro, na Otan. Após o início da guerra da Ucrânia em fevereiro de 2022 a Finlândia, que possui uma longa fronteira com a Rússia, sinalizou o desejo de fazer parte da aliança e se tornou o 31° membro da Otan. A Suécia espera a aprovação da Turquia para também se juntar.

Para se adequar aos montantes exigidos pela aliança militar, a Finlândia fez um investimento histórico no setor. Mas esses valores aparecem ainda de forma inicial no relatório do Sipri, já que a entrada ocorreu apenas este ano. O mesmo vale para a Suécia, que segue buscando seu espaço.

“O que provavelmente vai acontecer é a gente ver um tipo de paradoxo de segurança. Não sei até que ponto isso pode se alastrar, é difícil dizer, mas tem um potencial de se alastrar”, afirma o pesquisador do Sipri. “Depois da guerra na Ucrânia, essa preocupação com a segurança militar vai ficar muito presente ainda para os países e vai continuar a agitar os gastos militares”.

China

Outro fator importante para uma escalada nos gastos militares foi o crescimento econômico e político da China. Kalil avalia que mesmo que Pequim não quisesse intencionalmente provocar um aumento do orçamento de defesa global, a sua expansão por si só já cria este efeito. “Ainda que Pequim fosse pacífica, o país precisaria se armar mais para se defender da reação da ascensão econômica e política que foi conseguida nos últimos anos”, completa a professora.

Mas longe de demonstrar ser pacífica, a China tem elevado as tensões no Estreito de Taiwan desde que a Rússia invadiu a Ucrânia. Em agosto, o Partido Comunista Chinês lançou um de seus tradicionais livros brancos avisando que Taiwan poderia ser retomada pela força, caso Pequim compreenda que sua “integridade territorial” esteja ameaçada por forças externas.

As tensões escalaram no mesmo mês de agosto, quando a então presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi, visitou a ilha. Uma nova escalada foi vista em abril, quando a presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, visitou os EUA.

O resultado foi um aumento de 2,7% nos gastos na região da Ásia e Oceania, com China, Índia e Japão sendo responsáveis por 73% dessa subida.

“A gente pode começar a ver, quem sabe, o começo de uma corrida armamentista”, afirma Silva. “Mas isso quem vai nos dizer serão os anos que virão. Por enquanto ainda não é uma corrida”.

A guerra da Ucrânia trouxe de volta o temor de que o sonho de um continente pacífico e integrado sob a liderança da União Europeia possa estar em risco. Esse medo foi expressado recentemente pelo presidente italiano Sergio Matarella, que, em reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, alertou para o risco de Vladimir Putin comece a anexar países no Leste Europeu, invadindo e tomando territórios, a exemplo do que ocorreu na 2ª Guerra.

O temor de Matarella se repete em outras capitais europeias, como Londres, Berlim, Varsóvia e Helsinque. Desde o ano passado, as principais potências europeias decidiram rever estratégias de Defesa diante da ameaça de Vladimir Putin, com direito a um aumento no gasto em armas e preparação para conflitos de alta intensidade. No Leste Europeu, especialmente a Polônia e a Finlândia - historicamente vítimas das pretensões territoriais russas - também ‘caíram na real’ diante da invasão.

Esse cenário, aliado à necessidade de repor estoques de armas cedidos à Ucrânia, fez com que a Europa tenha liderado o investimento militar no planeta no ano passado, segundo dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri, na sigla em inglês) publicados em abril.

A guerra na Ucrânia alavancou o investimento global em defesa Foto: Serhii Nuzhnenko/ REUTERS

Esse levantamento indica que 23 de 36 países europeus aumentaram seus gastos militares, parte para repor armamentos doados à Ucrânia, parte para fortalecer seus arsenais. O valor total do investimento da região chegou a US$ 345 bilhões ( cerca de R$ 1,5 trilhão), um aumento de 3,6% na comparação com 2021.

Entre as grandes potências europeias, Reino Unido e Alemanha correspondem aos maiores aumentos em gastos militares. Londres ampliou o investimento em armas em 3,7% e a Alemanha, em 2,3%. No Leste, com a exceção óbvia da Ucrânia, cujos gastos cresceram 640%, os maiores investimentos foram feitos pela Polônia e a Finlândia, que optou no ano passado por aderir a Otan. Varsóvia ampliou os gastos militares em 11% e Helsinque, em 2,4%. Outro destaque é a Lituânia, que gastou 2,5% a mais em armas que em 2021, em um cenário no qual Putin tem sido cada vez mais agressivo em relação às ex-repúblicas soviéticas do Báltico.

Alemanha armada

Mas talvez o maior exemplo desse cenário de uma Europa preocupada com sua defesa seja a Alemanha. Em fevereiro, o chanceler Olaf Scholz declarou uma nova era quando o país declarou um investimento de 100 bilhões em armas. Na última semana, a mesma Alemanha lançou sua primeira Estratégia de Defesa Nacional traçando detalhes para fortalecer a defesa do país diante da Rússia.

“O que os números estão mostrando para gente é uma deterioração nas condições de segurança e na percepção de segurança que os países estão tendo no mundo”, explica Diego Lopes da Silva, pesquisador do Programa de Despesas Militares e Produção de Armas do Sipri e um dos autores do relatório.

“A gente tende a ver o surgimento de outros tipos de guerra, como guerra por procuração, guerra de informação, interferência externa, guerras de desestabilização”, concorda Mariana Kalil, professora da Escola Superior de Guerra.

Paz e globalização

Após o fim da Guerra Fria, o mundo naturalmente se desarmou para níveis quase abaixo de US$1 trilhão. O clima era de otimismo na política internacional, com a representação de uma nova ordem mundial em meio a dissolução da União Soviética. Enquanto a política externa passava uma sensação de diálogo e multilateralismo, os gastos militares foram reduzidos.

“Este período da década de 90 é chamado de dividendo de paz, foi marcado pelo clima de cooperação, de que havia uma nova ordem mundial, uma confiança maior nas instituições”, avalia Diego Lopes da Silva.

Entre a Queda do Muro de Berlim e a Crise de 2008, o aumento de investimento militar ficou a cargo basicamento dos Estados Unidos, às voltas com a sua Guerra ao Terror no Iraque e no Afeganistão. “Washington concentrava de forma inequívoca os gastos militares e os demais países se sentiam seguros o suficiente para não precisar investir em defesa”, aponta Mariana Kalil.

Com a invasão russa da Crimeia, lentamente, uma nova corrida armamentista começou a se formar. “Politicamente a invasão da Geórgia foi um indício de que a Rússia estava disposta a fazer algo do tipo, mas ainda não havia gerado uma resposta tão grande em gastos militares. Foi a anexação da Crimeia que gerou essa resposta”, pontua Silva.

Um futuro mais militarizado

Além dos aumentos reais, países como Alemanha, França e Reino Unido aumentaram os seus “encargos militares”, ou seja, a fatia do Produto Interno Bruto destinada ao setor. Em um sinal de que o aumento nos investimentos militares está apenas começando.

No mesmo evento em que anunciou o incremento de centenas de bilhões de euros para um fundo especial em defesa, Scholz falou de sua intenção em investir mais de 2% de seu PIB em militarismo - valor mínimo exigido pela Otan. Desde o fim da Guerra Fria, a Alemanha manteve seus investimentos abaixo dos 2%, segundo dados do Banco Mundial. Em 2021 esse montante havia sido de 1,3%.

O mesmo aumento nos encargos pôde ser visto com o Japão - que, assim como a Alemanha, mudou drasticamente sua estratégia de defesa - bem como Ucrânia e Rússia, o que já era esperado. Outros, como Dinamarca, traçam planos para aumentar seus investimentos aos poucos até 2033.

O chanceler alemão Olaf Scholz e o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, participam de uma coletiva de imprensa em Berlim, Alemanha, em 19 de junho de 2023 Foto: Filip Singer / EFE

“Os governos têm contado com diferentes métodos para financiar os aumentos anunciados nas despesas militares”, observa o relatório do Sipri. “Por exemplo, a Dinamarca aboliu um feriado público para aumentar a receita tributária para seus gastos militares, enquanto a Alemanha e a Polônia planejam usar a dívida como fonte de financiamento”.

Parte deste aumento, ressalta o documento, foi destinado à ajuda militar para a Ucrânia, mas a maior fatia se concentra em investimento para repor o arsenal militar doado, bem como aumentar a defesa. No caso do Reino Unido, o maior doador para Kiev atrás dos EUA, somente US$ 2,5 bilhões foram destinados à Ucrânia, dos US$ 68,5 totais gastos no ano.

De acordo com Mariana Kalil, esses gastos militares são abrangentes e podem consistir em inteligência para combater ataques cibernéticos e espionagem. “Existem diversas formas de desestabilizar um regime ou Estado, não necessariamente a guerra vai ser clássica de trincheiras. Então existem países que estão tentando se defender dessas formas não convencionais de fazer guerra”, avalia Kalil.

Um exemplo de métodos não tradicionais de tensões está nos países bálticos e escandinavos, que convivem diariamente com ações de espionagem, intimidação e sabotagem por parte da Rússia.

O presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, participou da cúpula do G-7 em Hiroshima onde se encontrou com diversos líderes internacionais e obteve forte apoio militar para a contraofensiva ucraniana  Foto: Kyodo News / AP

Flerte com a Otan

Outro sinal que indica um futuro ainda mais militarizado é a entrada da Finlândia, país historicamente neutro, na Otan. Após o início da guerra da Ucrânia em fevereiro de 2022 a Finlândia, que possui uma longa fronteira com a Rússia, sinalizou o desejo de fazer parte da aliança e se tornou o 31° membro da Otan. A Suécia espera a aprovação da Turquia para também se juntar.

Para se adequar aos montantes exigidos pela aliança militar, a Finlândia fez um investimento histórico no setor. Mas esses valores aparecem ainda de forma inicial no relatório do Sipri, já que a entrada ocorreu apenas este ano. O mesmo vale para a Suécia, que segue buscando seu espaço.

“O que provavelmente vai acontecer é a gente ver um tipo de paradoxo de segurança. Não sei até que ponto isso pode se alastrar, é difícil dizer, mas tem um potencial de se alastrar”, afirma o pesquisador do Sipri. “Depois da guerra na Ucrânia, essa preocupação com a segurança militar vai ficar muito presente ainda para os países e vai continuar a agitar os gastos militares”.

China

Outro fator importante para uma escalada nos gastos militares foi o crescimento econômico e político da China. Kalil avalia que mesmo que Pequim não quisesse intencionalmente provocar um aumento do orçamento de defesa global, a sua expansão por si só já cria este efeito. “Ainda que Pequim fosse pacífica, o país precisaria se armar mais para se defender da reação da ascensão econômica e política que foi conseguida nos últimos anos”, completa a professora.

Mas longe de demonstrar ser pacífica, a China tem elevado as tensões no Estreito de Taiwan desde que a Rússia invadiu a Ucrânia. Em agosto, o Partido Comunista Chinês lançou um de seus tradicionais livros brancos avisando que Taiwan poderia ser retomada pela força, caso Pequim compreenda que sua “integridade territorial” esteja ameaçada por forças externas.

As tensões escalaram no mesmo mês de agosto, quando a então presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi, visitou a ilha. Uma nova escalada foi vista em abril, quando a presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, visitou os EUA.

O resultado foi um aumento de 2,7% nos gastos na região da Ásia e Oceania, com China, Índia e Japão sendo responsáveis por 73% dessa subida.

“A gente pode começar a ver, quem sabe, o começo de uma corrida armamentista”, afirma Silva. “Mas isso quem vai nos dizer serão os anos que virão. Por enquanto ainda não é uma corrida”.

A guerra da Ucrânia trouxe de volta o temor de que o sonho de um continente pacífico e integrado sob a liderança da União Europeia possa estar em risco. Esse medo foi expressado recentemente pelo presidente italiano Sergio Matarella, que, em reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, alertou para o risco de Vladimir Putin comece a anexar países no Leste Europeu, invadindo e tomando territórios, a exemplo do que ocorreu na 2ª Guerra.

O temor de Matarella se repete em outras capitais europeias, como Londres, Berlim, Varsóvia e Helsinque. Desde o ano passado, as principais potências europeias decidiram rever estratégias de Defesa diante da ameaça de Vladimir Putin, com direito a um aumento no gasto em armas e preparação para conflitos de alta intensidade. No Leste Europeu, especialmente a Polônia e a Finlândia - historicamente vítimas das pretensões territoriais russas - também ‘caíram na real’ diante da invasão.

Esse cenário, aliado à necessidade de repor estoques de armas cedidos à Ucrânia, fez com que a Europa tenha liderado o investimento militar no planeta no ano passado, segundo dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri, na sigla em inglês) publicados em abril.

A guerra na Ucrânia alavancou o investimento global em defesa Foto: Serhii Nuzhnenko/ REUTERS

Esse levantamento indica que 23 de 36 países europeus aumentaram seus gastos militares, parte para repor armamentos doados à Ucrânia, parte para fortalecer seus arsenais. O valor total do investimento da região chegou a US$ 345 bilhões ( cerca de R$ 1,5 trilhão), um aumento de 3,6% na comparação com 2021.

Entre as grandes potências europeias, Reino Unido e Alemanha correspondem aos maiores aumentos em gastos militares. Londres ampliou o investimento em armas em 3,7% e a Alemanha, em 2,3%. No Leste, com a exceção óbvia da Ucrânia, cujos gastos cresceram 640%, os maiores investimentos foram feitos pela Polônia e a Finlândia, que optou no ano passado por aderir a Otan. Varsóvia ampliou os gastos militares em 11% e Helsinque, em 2,4%. Outro destaque é a Lituânia, que gastou 2,5% a mais em armas que em 2021, em um cenário no qual Putin tem sido cada vez mais agressivo em relação às ex-repúblicas soviéticas do Báltico.

Alemanha armada

Mas talvez o maior exemplo desse cenário de uma Europa preocupada com sua defesa seja a Alemanha. Em fevereiro, o chanceler Olaf Scholz declarou uma nova era quando o país declarou um investimento de 100 bilhões em armas. Na última semana, a mesma Alemanha lançou sua primeira Estratégia de Defesa Nacional traçando detalhes para fortalecer a defesa do país diante da Rússia.

“O que os números estão mostrando para gente é uma deterioração nas condições de segurança e na percepção de segurança que os países estão tendo no mundo”, explica Diego Lopes da Silva, pesquisador do Programa de Despesas Militares e Produção de Armas do Sipri e um dos autores do relatório.

“A gente tende a ver o surgimento de outros tipos de guerra, como guerra por procuração, guerra de informação, interferência externa, guerras de desestabilização”, concorda Mariana Kalil, professora da Escola Superior de Guerra.

Paz e globalização

Após o fim da Guerra Fria, o mundo naturalmente se desarmou para níveis quase abaixo de US$1 trilhão. O clima era de otimismo na política internacional, com a representação de uma nova ordem mundial em meio a dissolução da União Soviética. Enquanto a política externa passava uma sensação de diálogo e multilateralismo, os gastos militares foram reduzidos.

“Este período da década de 90 é chamado de dividendo de paz, foi marcado pelo clima de cooperação, de que havia uma nova ordem mundial, uma confiança maior nas instituições”, avalia Diego Lopes da Silva.

Entre a Queda do Muro de Berlim e a Crise de 2008, o aumento de investimento militar ficou a cargo basicamento dos Estados Unidos, às voltas com a sua Guerra ao Terror no Iraque e no Afeganistão. “Washington concentrava de forma inequívoca os gastos militares e os demais países se sentiam seguros o suficiente para não precisar investir em defesa”, aponta Mariana Kalil.

Com a invasão russa da Crimeia, lentamente, uma nova corrida armamentista começou a se formar. “Politicamente a invasão da Geórgia foi um indício de que a Rússia estava disposta a fazer algo do tipo, mas ainda não havia gerado uma resposta tão grande em gastos militares. Foi a anexação da Crimeia que gerou essa resposta”, pontua Silva.

Um futuro mais militarizado

Além dos aumentos reais, países como Alemanha, França e Reino Unido aumentaram os seus “encargos militares”, ou seja, a fatia do Produto Interno Bruto destinada ao setor. Em um sinal de que o aumento nos investimentos militares está apenas começando.

No mesmo evento em que anunciou o incremento de centenas de bilhões de euros para um fundo especial em defesa, Scholz falou de sua intenção em investir mais de 2% de seu PIB em militarismo - valor mínimo exigido pela Otan. Desde o fim da Guerra Fria, a Alemanha manteve seus investimentos abaixo dos 2%, segundo dados do Banco Mundial. Em 2021 esse montante havia sido de 1,3%.

O mesmo aumento nos encargos pôde ser visto com o Japão - que, assim como a Alemanha, mudou drasticamente sua estratégia de defesa - bem como Ucrânia e Rússia, o que já era esperado. Outros, como Dinamarca, traçam planos para aumentar seus investimentos aos poucos até 2033.

O chanceler alemão Olaf Scholz e o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, participam de uma coletiva de imprensa em Berlim, Alemanha, em 19 de junho de 2023 Foto: Filip Singer / EFE

“Os governos têm contado com diferentes métodos para financiar os aumentos anunciados nas despesas militares”, observa o relatório do Sipri. “Por exemplo, a Dinamarca aboliu um feriado público para aumentar a receita tributária para seus gastos militares, enquanto a Alemanha e a Polônia planejam usar a dívida como fonte de financiamento”.

Parte deste aumento, ressalta o documento, foi destinado à ajuda militar para a Ucrânia, mas a maior fatia se concentra em investimento para repor o arsenal militar doado, bem como aumentar a defesa. No caso do Reino Unido, o maior doador para Kiev atrás dos EUA, somente US$ 2,5 bilhões foram destinados à Ucrânia, dos US$ 68,5 totais gastos no ano.

De acordo com Mariana Kalil, esses gastos militares são abrangentes e podem consistir em inteligência para combater ataques cibernéticos e espionagem. “Existem diversas formas de desestabilizar um regime ou Estado, não necessariamente a guerra vai ser clássica de trincheiras. Então existem países que estão tentando se defender dessas formas não convencionais de fazer guerra”, avalia Kalil.

Um exemplo de métodos não tradicionais de tensões está nos países bálticos e escandinavos, que convivem diariamente com ações de espionagem, intimidação e sabotagem por parte da Rússia.

O presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, participou da cúpula do G-7 em Hiroshima onde se encontrou com diversos líderes internacionais e obteve forte apoio militar para a contraofensiva ucraniana  Foto: Kyodo News / AP

Flerte com a Otan

Outro sinal que indica um futuro ainda mais militarizado é a entrada da Finlândia, país historicamente neutro, na Otan. Após o início da guerra da Ucrânia em fevereiro de 2022 a Finlândia, que possui uma longa fronteira com a Rússia, sinalizou o desejo de fazer parte da aliança e se tornou o 31° membro da Otan. A Suécia espera a aprovação da Turquia para também se juntar.

Para se adequar aos montantes exigidos pela aliança militar, a Finlândia fez um investimento histórico no setor. Mas esses valores aparecem ainda de forma inicial no relatório do Sipri, já que a entrada ocorreu apenas este ano. O mesmo vale para a Suécia, que segue buscando seu espaço.

“O que provavelmente vai acontecer é a gente ver um tipo de paradoxo de segurança. Não sei até que ponto isso pode se alastrar, é difícil dizer, mas tem um potencial de se alastrar”, afirma o pesquisador do Sipri. “Depois da guerra na Ucrânia, essa preocupação com a segurança militar vai ficar muito presente ainda para os países e vai continuar a agitar os gastos militares”.

China

Outro fator importante para uma escalada nos gastos militares foi o crescimento econômico e político da China. Kalil avalia que mesmo que Pequim não quisesse intencionalmente provocar um aumento do orçamento de defesa global, a sua expansão por si só já cria este efeito. “Ainda que Pequim fosse pacífica, o país precisaria se armar mais para se defender da reação da ascensão econômica e política que foi conseguida nos últimos anos”, completa a professora.

Mas longe de demonstrar ser pacífica, a China tem elevado as tensões no Estreito de Taiwan desde que a Rússia invadiu a Ucrânia. Em agosto, o Partido Comunista Chinês lançou um de seus tradicionais livros brancos avisando que Taiwan poderia ser retomada pela força, caso Pequim compreenda que sua “integridade territorial” esteja ameaçada por forças externas.

As tensões escalaram no mesmo mês de agosto, quando a então presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi, visitou a ilha. Uma nova escalada foi vista em abril, quando a presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, visitou os EUA.

O resultado foi um aumento de 2,7% nos gastos na região da Ásia e Oceania, com China, Índia e Japão sendo responsáveis por 73% dessa subida.

“A gente pode começar a ver, quem sabe, o começo de uma corrida armamentista”, afirma Silva. “Mas isso quem vai nos dizer serão os anos que virão. Por enquanto ainda não é uma corrida”.

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