Conforme baixava o sol da tarde, um homem com um megafone na mão posicionou-se diante de um grupo de aproximadamente 200 pessoas em Manama, a capital do Bahrein, e começou a gritar a plenos pulmões.
Os manifestantes, agitando bandeiras palestinas, repetiam suas palavras com entusiasmo, implorando ao seu governo autoritário e aliado dos Estados Unidos para expulsar o embaixador israelense — nomeado dois anos atrás, depois que o Bahrein estabeleceu relações diplomáticas com Israel.
“Tirem a embaixada sionista da terra bahreinita!”, entoavam eles. “Tirem as bases americanas da terra bahreinita!”
A menos de 7 quilômetros de lá, militares americanos e europeus concentravam-se no Manama Dialogue, uma conferência anual que reúne autoridades graduadas de potências ocidentais e do Oriente Médio para discutir segurança regional. Eles perambularam pelo salão de baile dourado do fortemente guardado Hotel Ritz-Carlton horas após o protesto — a maioria sem saber que a manifestação tinha ocorrido.
Quando subiu ao palco do evento, o príncipe-herdeiro do Bahrein, Salman bin Hamad Al Khalifa, agradou grande parte dos presentes ao condenar o Hamas, o grupo armado palestino que governa Gaza e liderou o ataque de 7 de outubro contra Israel que deixou cerca de 1,2 mil mortos, segundo autoridades israelenses.
A guerra em Gaza que se seguiu ao ataque não apenas explicitou os abismos entre muitos líderes árabes e seus povos, também os aprofundou.
O Bahrein, um país do Golfo com cerca de 1,6 milhão de habitantes, testemunhou uma erupção de apoio popular aos palestinos e um aumento da hostilidade em relação a Israel desde que a guerra começou. Os militares israelenses responderam ao ataque do Hamas bombardeando e sitiando Gaza em uma campanha militar que deixou mais de 16 mil mortos, de acordo com autoridades de Gaza.
Ainda que seja antiga a desconexão entre muitos Estados árabes e seus cidadãos sobre sua atitude em relação à causa palestina, a guerra trouxe essa diferença ao foco mais evidente em anos. Em muitos protestos por toda a região, as pessoas não apenas condenaram Israel e apoiaram o Hamas, mas também criticaram seus próprios governos.
No Marrocos e na Jordânia, milhares foram às ruas exigir que seus países cortem relações com Israel. No Cairo, manifestantes pró-palestinos lotaram a Praça Tahrir, onde começou a insurreição da Primavera Árabe, e ressuscitaram seu grito revolucionário por pão, liberdade e justiça social.
E no Bahrein, manifestantes afirmaram que, além de um sentimento profundo de identidade árabe-islâmica em comum, eles veem conexões entre a libertação palestina a a sua própria libertação da repressão política.
“Eu tenho esperança de que um dia nós seremos um povo livre”, afirmou a bahreinita Fatima Jumua, de 22 anos, que compareceu ao protesto em Manama. “Nossa existência e nossa liberdade estão conectadas à existência e à liberdade da Palestina.”
Por décadas, a maioria dos governos árabes se recusava a estabelecer relações com Israel antes da criação de um Estado palestino. Mas esse cálculo mudou nos anos que antecederam a guerra conforme líderes autoritários ponderaram sobre a opinião pública negativa a respeito de Israel e os benefícios econômicos e de segurança — além das concessões que extrairiam dos EUA, os maiores aliados dos israelenses.
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“O governo do Bahrein quer ser visto como uma voz de moderação nos EUA. E está usando cada vez mais suas nova relação com Israel para forjar essa percepção em Washington”, afirmou a pesquisadora Elham Fakhro, do instituto de análise Chatham House. “Mas domesticamente o efeito é diferente.”
Em 2020, Bahrein, Emirados Árabes Unidos e Marrocos estabeleceram relações com Israel em pactos intermediados pelo governo Trump que ficaram conhecidos como Acordos de Abraão — juntando-se a Egito e Jordânia, que têm acordos de paz com Israel há décadas.
Os pactos foram celebrados pelos governos ocidentais, que apoiam há muito as famílias reais da região, e em setembro o governo do Bahrein assinou um amplo acordo de segurança com o governo Biden.
Mas pesquisas mostraram que a maioria dos cidadãos árabes comuns considera cada vez mais negativamente o estabelecimento de relações com Israel.
No Bahrein, que possui uma família real sunita e a maioria da população xiita, as autoridades declararam que os acordos encorajaram tolerância e coexistência. Mas isso não convenceu muitos cidadãos conforme o governo continuou a reprimir o dissenso interno.
A causa palestina e a oposição a Israel une bahreinitas de todas das linhas sectárias e políticas — sunitas e xiitas, esquerdistas seculares e islamistas conservadores, jovens e velhos. Questionados em uma pesquisa anterior à guerra sobre o impacto que os Acordos de Abraão surtiria na região, 76% dos barhreinitas responderam que seria negativo.
Os acordos foram “forçados contra a vontade do povo”, afirmou o ativista defensor de direitos humanos bahreinita Abdulnabi Alekry, de 60 anos.
Fakhro, a pesquisadora da Chatham House, afirmou que o Bahrein esteve agitado por muitos anos em razão de tensões entre o governo e movimentos de oposição. “A atual crise está aprofundando esse abismo”, afirmou ela.
O Bahrein esmagou uma insurreição da Primavera Árabe em 2011 com ajuda de forças da Arábia Saudita e dos EAU. E também abriga uma das bases militares americanas mais importantes na região.
Os manifestantes bahreinitas afirmaram que consideram Israel uma potência em estilo colonial e um projeto apoiado pelo Ocidente concebido para dominar a região. Alguns disseram que Israel não deve nem sequer existir.
Jumua afirmou que os palestinos e todos os outros povos da região vivem sob a influência das potências ocidentais. “Até agora nós vemos que não podemos nos mover sem aprovação dos EUA”, afirmou ela.
Na manhã seguinte ao protesto, as graduadas autoridades árabes e americanas retornaram ao reluzente salão de baile do Hotel Ritz-Carlton para debater um caminho adiante para Gaza.
Questionado a respeito da opinião pública negativa em relação aos Acordos de Abraão, Brett McGurk, alta autoridade da Casa Branca para o Oriente Médio, afirmou que seu foco é a crise imediata. Mas para além disso, afirmou ele, os formuladores de políticas americanos estão comprometidos com a “integração” de Israel e seus vizinhos.
Antes da guerra, a Casa Branca esteve negociando com a Arábia Saudita um acordo complexo, segundo o qual o reino, o país árabe mais poderoso, reconheceria Israel. “Nós não podemos permitir que a ação do Hamas em 7 de outubro afaste completamente esse caminho”, afirmou McGurk.
Mas alguns palestinos temem que um acordo saudita-israelense teria minado ainda mais sua luta por estatuto de Estado.
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Uma alta autoridade bahreinita afirmou que o governo de seu país crê que o Estado de Israel tem de ser aceito e que os povos da região devem coexistir. O Bahrein preocupa-se com a possibilidade da guerra alimentar ódio e extremismo, acrescentou a fonte, falando sob condição de anonimato em razão da sensibilidade do tema. Os Acordos de Abraão deveriam ser protegidos como uma ferramenta para a paz, afirmou ele.
Mas quando questionada a respeito dos abismos entre os árabes e a opinião pública, a autoridade não respondeu diretamente à pergunta. Em vez disso, afirmou que o Bahrein acredita que a situação em Gaza é catastrófica e faz de tudo para estimular a paz.
As acusações mais contundentes contra Israel na conferência vieram do ministro de Relações Exteriores da Jordânia — onde grande parte da população tem origem palestina — e de um importante membro da realeza saudita, o príncipe Turki Al Faisal, que pediu sanções contra Israel.
O príncipe Turki — ex-chefe de inteligência saudita — rejeitou a ideia de que construir relações entre Estados árabes e Israel traria paz, chamando-a de “ilusão israelense, americana e europeia”.
Conforme o príncipe Turki falava, outro protesto ganhava força a 10 quilômetros de lá, tomando as ruas estreitas de Muharraq — uma cidade de prédios baixos, em tons de bege e branco. O ar ficou impregnado pelo odor da fumaça dos carros conforme torrentes de gente bloquearam o tráfego, agitando bandeiras palestinas com crianças nos ombros.
As liberdades de associação e reunião permanecem altamente restritas no Bahrein. Mas muitos protestos recentes foram autorizados pelo governo — o que lhes propiciou um espaço tacitamente aprovado para desabafar e expressar suas frustrações.
Milhares de manifestantes berraram em inglês e árabe até ficar roucos:
“Abaixo, abaixo Israel!”
“Os EUA são a cabeça da serpente!”
Alguns expressavam apoio ao Hamas pedindo que o grupo bombardeie Tel-Aviv.
Em seu discurso no dia anterior, o príncipe-herdeiro do Bahrein tinha lamentado o “constante bombardeio” contra Gaza qualificando a situação como “intolerável”. Mas ele não ameaçou nenhum rompimento diplomático com Israel e disse que os EUA são “indispensáveis” em qualquer processo de paz.
Quando o príncipe-herdeiro terminou sua fala, seus convidados deleitaram-se com pêssegos em calda de açafrão e peitos de frango recheados de ratatouille. Nos bastidores da conferência, as autoridades bahreinitas diziam aos participantes que estão determinadas em proteger seu acordo com Israel. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO