O assunto atravessava a conversa das mulheres reunidas diante de um edifício bombardeado outro dia, enquanto elas esperavam em uma longa fila até um caminhão com ajuda humanitária, com um vento cortante ao redor. “Quando você receberá seu vidro”, perguntou uma. “Você ligou para o pessoal do vidro?”, indagou outra. “Fez muito frio ontem à noite. Você sentiu?”, disse uma terceira. “Quando chega o vidro?”
Obter vidro se tornou um grande problema na Ucrânia. Tantas janelas foram despedaçadas por explosões – “milhões”, segundo uma autoridade humanitária – que existe atualmente uma “corrida do vidro” no país.
Em vilarejos e cidades que o Exército russo castigou com suas retumbantes baterias de artilharia nada foi poupado – nem prédios altos, nem escolas, nem os atarracados e pequenos chalés. Na segunda-feira, a onda de choque de um poderoso míssil russo que explodiu a pouco mais de 200 metros de uma usina nuclear no sul da Ucrânia estilhaçou mais de 100 janelas da central atômica.
Primeira vítima
O mesmo aconteceu com incontáveis residências na linha de fogo: elas podem ter sido poupadas de um tiro direto, mas tiveram todas as suas janelas estilhaçadas. E o inverno se aproxima. Rapidamente. Outro dia, em Chernihiv, cidade no norte da Ucrânia, a temperatura baixou de 26º C para uma temperatura quase congelante.
Sem dúvida, a Ucrânia enfrenta séries de crises dentro de crises, mas entre as mais urgentes está a dificuldade para reformar residências danificadas e deixá-las prontas para enfrentar o inverno, e é aí que entra o problema do vidro.
Pare apenas um momento e considere este material, porque centenas de milhares de ucranianos realmente precisam dele agora. O vidro permite a entrada da luz e mantém o frio do lado de fora. É possível ver através dele, então não importa quão minúsculo ou apertado for seu lugar, você tem uma vista.
Funcionalidade do vidro
O vidro mantém os pássaros fora, assim como insetos e poeira, e você pode abrir a janela para deixar o ar fresco entrar. As alternativas, presentes por toda na Ucrânia hoje, têm desvantagens óbvias. Um compensado pode ser capaz de tapar um buraco na parede, mas deixa o espaço interno escuro, o que pode ser deprimente.
Os retalhos de toalhas de mesa e plástico-filme, que muitas pessoas estão usando – um homem disse que não tinha nada melhor do que a lona ucraniana para cobrir suas janelas –, podem até permitir a entrada da luz do sol, mas não vedam bem e fazem com que as pessoas tenham de se encolher durante a noite sob três cobertores para se aquecer no frio congelante.
“Essa coisa?”, disse o arquiteto aposentado Oleksandr Zhila, que usou os envoltórios plásticos de alimentos em suas janelas estilhaçadas em Chernihiv. Ele apontou para seu trabalho artesanal e riu: “Isso não mantém nosso calor de jeito nenhum”.
Mesmo antes da invasão russa, em fevereiro, a Ucrânia já enfrentava escassez de vidro. Uma das maiores fábricas do país ficava em Donbas, no leste, mas foi bombardeada durante a rebelião pró-Rússia alguns anos atrás e fechou.
Isso fez a Ucrânia depender da Rússia e de Belarus para conseguir vidro. Mas, depois que a guerra começou, esses laços comerciais foram cortados. Portanto, agora quase todo vidro usado na Ucrânia, afirmaram dois distribuidores, é importado de outros países, por vezes a preços muito maiores do que dos mercados europeus.
Areia e energia
E existem mais problemas. Para fabricar vidro, é necessário derreter areia. E para derreter areia, é necessária muita energia. E, com os preços globais da energia nas alturas, os preços do vidro também subiram vertiginosamente.
Somando isso tudo – custos altos de produção, demanda aumentada, os pesadelos logísticos na Ucrânia, como seus portos marítimos bloqueados por submarinos russos –, não surpreende o fato de uma vidraça comum custar o dobro, o triplo ou até o quádruplo do que costumava custar, de acordo com fornecedores de vidro.
Isso torna impossível para muitas pessoas consertar suas janelas, mesmo que o ar frio já comece a entrar. E todos os dias, com os combates ainda em andamento, mais vidros são estilhaçados.
Durante uma guerra, as janelas sempre estão entre as primeiras vítimas da destruição. Se uma bomba tem poder suficiente, as ondas de choque ou reverberações estilhaçarão vidros longe do local da explosão, criando uma chuva de estilhaços potencialmente fatais.
Perigo dos estilhaços
”Você não acreditaria como os cacos são pequenos”, disse uma mulher, Nataliia Medvedok, sentada próxima a uma janela estilhaçada na sala de estar de sua residência, em Chernihiv. Ela estava escondida em um abrigo quando o prédio em que vive foi atingido, em março, e ao retornar encontrou o chão coberto de cacos de vidro superafiados, aproximadamente do tamanho de ervilhas.
Em junho, Zosia Jaworowska, que coordena uma pequena entidade sem fins lucrativos em Varsóvia, Polônia, perguntou a grupos de ajuda humanitária na Ucrânia o que eles precisavam. “Todos disseram, unanimemente: ‘janelas’”, afirmou Jaworowska. “Era o material de construção mais caro e mais difícil de encontrar.” Ela entrou em ação e arrecadou milhares de dólares para comprar janelas na Polônia e enviá-las para a Ucrânia.
Em Chernihiv, uma associação francesa privada de auxílio, a Acted, está ajudando Medvedok e muitas outras pessoas a pagar pelo reparo de suas janelas, como parte de seu plano para preparar as pessoas para o inverno.
A chegada do inverno
“Todos estamos correndo, correndo, correndo para fazer o que podemos neste momento”, afirmou Frances Oppermann, vice-diretora para programas da Acted no país. O inverno na Ucrânia, afirmou, é “intenso”. Também é longo, dura quase um semestre, com temperaturas gélidas atingindo o país de meados de outubro até meados de março, com temperaturas despencando para abaixo de -20ºC.
Consertar janelas é parte de uma estratégia de preparação para o inverno mais ampla empreendida por agências de ajuda que inclui a compra de dezenas de milhões de dólares em cobertores, casacos, gorros e tradicionais botas de feltro.
Em Chernihiv, um primeiro olhar pode confundir. É uma linda cidade, de aproximadamente 200 mil habitantes. Ver sua imensa praça central de paralelepípedos delineada por elegantes edifícios antigos e as pessoas se exercitando nos parques com arbustos perfeitamente aparados faz quase parecer que nada de excepcional aconteceu por aqui. No entanto, logo a gente percebe quantas janelas estão cobertas com tábuas ou faltando.
Chernihiv foi castigada por mísseis e foguetes russos em março, mas desde então não testemunhou muitos combates. Mesmo enquanto a ofensiva ucraniana deste mês expulsava tropas russas do entorno de Kharkiv, no nordeste, Chernihiv permaneceu relativamente calma.
No gabinete do prefeito, compensados de madeira ainda cobrem algumas janelas quebradas. “Tenho problemas maiores”, afirmou o prefeito Vladislav Atroshenko. “Não posso deixar crianças congelarem dentro de seus apartamentos.”
A prioridade dele é reparar infraestruturas cruciais para garantir que a cidade esteja pronta para ligar o aquecedor quando o inverno chegar, o que não é nada fácil dada a magnitude da destruição e os altos preços da energia.
Demanda por vidro
Mikolaiv, cidade no sul ucraniano, foi bombardeada impiedosamente pelas forças russas. Vitalii Kim, funcionário público local de alto escalão, afirmou que tem 50 mil metros quadrados de janelas para consertar – o que equivale a quase 10 campos de futebol em vidro. “Até as janelas da minha casa estão estilhaçadas”, afirmou.
Em todo o país, os números são estarrecedores. Cerca de 140 mil edifícios residenciais foram destruídos; 44 milhões de metros quadrados de habitações foram danificados; e milhões de ucranianos estão vivendo em residências “mal equipadas para prover proteção suficiente das duras condições do inverno”, de acordo com as Nações Unidas. TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL