KIEV, Ucrânia — Na sala de cirurgia lotada, em um hospital de Kiev, capital da Ucrânia, os médicos tinham feito uma longa incisão no centro do tórax da criança, seccionando o esterno para abrir espaço entre as costelas e conseguir chegar ao coração. Então as luzes se apagaram.
Os geradores começaram a trabalhar para manter funcionando o equipamento que mantém a vida do paciente, enquanto enfermeiros e cirurgiões-assistentes iluminavam com lanternas a mesa de operação, guiando os cirurgiões enquanto eles se esforçavam para salvar a criança sob uma escuridão quase total.
“Até aqui, estamos nos virando por conta própria”, disse Boris Todurov, diretor da clínica Instituto do Coração, em Kiev. “Mas a cada hora que passa fica mais difícil. Ficamos sem água por várias horas. Estamos fazendo apenas cirurgias de emergência.”
Em sua campanha cada vez mais destrutiva para prejudicar os civis ucranianos, cortando seu fornecimento de energia e água encanada, a Rússia castigou a população com uma onda de ataques com mísseis nos últimos dias, uma das investidas mais desgastantes em semanas. Engenheiros e equipes de emergência trabalharam desesperadamente na terça-feira, 22, na Ucrânia para restabelecer os serviços em meio a neve, chuva congelante e escuridão. Por todo o país as pessoas enfrentaram privações.
Enquanto cirurgiões usavam lanternas na testa para conseguir trabalhar no escuro, mineiros foram retirados de jazidas subterrâneas com guinchos manuais. Moradores de apartamentos em andares altos subiram escadas carregando baldes e garrafas cheios de água em edifícios sem eletricidade, em que os elevadores pararam de funcionar. Para se manter abertos, estabelecimentos comerciais e restaurantes apelaram para geradores ou acenderam velas.
Mais guerra na Ucrânia
Apesar dos esforços dos ucranianos em manterem-se firmes diante das iniciativas da Rússia em abalar sua determinação em meio às baixas temperaturas, que gelam cada vez mais, milhões continuavam sem eletricidade, enquanto os persistentes ataques a míssil dos russos causavam destruição crescente. Segundo o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, ao menos 35 pessoas foram mortas na quarta-feira e os apagões foram duradouros, aumentando ainda mais o perigo para a população.
“A situação é difícil em todo o país”, reconheceu o ministro ucraniano de Energia, Herman Galushchenko. Depois de algumas horas, ele explicou que engenheiros tinham conseguido “unificar o sistema de energia”, permitindo que a eletricidade fosse direcionada para instalações críticas de infraestrutura.
Os ataques desta quarta-feira, que também deixaram dezenas de feridos, estão entre os mais destruidores em semanas. Desde a explosão, em 8 de outubro, da ponte sobre o Estreito de Kerch, que liga a Crimeia ocupada à Rússia, os militares russos dispararam aproximadamente 600 mísseis contra usinas de eletricidade, instalações hidrelétricas, estações de bombeamento e tratamento de água, linhas de transmissão de alta voltagem em torno de centrais nucleares e subestações críticas, que levam eletricidade a dezenas de milhões de residências e empresas, de acordo com as autoridades ucranianas.
Os ataques da quarta-feira, 23, desconectaram do sistema de fornecimento de eletricidade todas as usinas nucleares da Ucrânia pela primeira vez, privando o país de uma de suas fontes de energia mais vitais.
O Kremlin negou que seus ataques mirem civis. “Estamos falando de alvos de infraestrutura que possuem relação direta ou indireta com o potencial militar da Ucrânia”, alegou o porta-voz Dmitri Peskov, segundo agências de notícias russas.
“A liderança da Ucrânia tem toda oportunidade de levar a situação de volta ao normal, toda a oportunidade de resolver a situação de maneira que atenda às demandas do lado russo e, da mesma maneira, toda a oportunidade de encerrar o sofrimento da população pacífica”, disse Peskov.
Zelenski rejeitou qualquer sugestão de trégua ou conversas de paz neste momento, afirmando que os objetivos de guerra de Moscou não mudaram e uma pausa nas hostilidades apenas daria tempo para o Exército russo se reorganizar após as recentes derrotas.
Em meados de outubro, o presidente russo, Vladimir Putin, afirmou que ataques contra cerca de uma dúzia de cidades ucranianas eram uma retaliação pela explosão de um caminhão-bomba na Ponte Kerch, e desde então o Exército russo mirou cada vez mais alvos de infraestrutura civis.
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As tropas russas deixaram a cidade de Bucha, mas desde então corpos de civis foram encontrados largados e amarrados pelo chão. Agora, ucranianos voltam à cidade à procura de seus entes queridos, mas muitos não têm o reencontro que desejam.
A Ucrânia colocou em ação as armas fornecidas pelo Ocidente para se defender, ao mesmo tempo que também pediu mais ajuda. O general Valerii Zaluzhnii, mais graduado comandante das Forças Armadas ucranianas, afirmou que as defesas antiaéreas de seu país derrubaram 51 dos 67 mísseis de cruzeiro disparados pela Rússia na quarta-feira, e cinco de dez drones lançados contra a Ucrânia.
Zelenski, falando em uma sessão de emergência do Conselho de Segurança da ONU, censurou a “campanha de terror” dos russos. “Quando a temperatura do lado de fora cai abaixo de zero e dezenas de milhões de pessoas são deixadas sem eletricidade, aquecimento e água como resultado de ataques de mísseis russos atingindo instalações de energia, isso é um crime contra a humanidade, óbvio”, disse.
Os ministros de energia da União Europeia não conseguiram na quinta-feira superar suas divergências para chegar a um acordo sobre a proposta da Comissão Europeia de um teto para o preço do gás russo. O acordo limitaria a renda obtida pelos russos com o petróleo, esforço que é encorajado pelo governo de Joe Biden para exaurir a Rússia de recursos para financiar a guerra.
Esse teto de preço seria estabelecido a negociadores, transportadores e outras empresas aos pagamentos pelo petróleo russo vendido fora do bloco. Essa política deverá ser instaurada antes do embargo da UE sobre o petróleo russo começar a vigorar, no dia 5.
Conforme os habitantes da UE se preparam para um inverno (no Hemisfério Norte), com preços altos de energia e possíveis racionamentos de insumos, os ucranianos têm convivido cada vez mais com apagões e cortes no abastecimento de água decorrentes dos danos diretos da guerra. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL