‘Guerra na Ucrânia é o tipo de conflito que achávamos ter ficado no passado’, diz analista


Livro analisa como invasão russa ultrapassou as linhas vermelhas da geopolítica e está moldando o cenário internacional

Por Carolina Marins
Entrevista comFelipe LoureiroHistoriador e professor do Instituto de Relações Internacionais da USP

Na recente visita de Xi Jinping a Vladimir Putin, autoridades dos Estados Unidos alertaram que o fornecimento de armas da China para a Rússia em sua guerra na Ucrânia seria como cruzar uma “linha vermelha”. A expressão é utilizada desde que Moscou lançou sua invasão há mais de um ano e ressurge em momentos de novas escaladas. A escolha do termo, aponta o professor de Relações Internacionais da USP Felipe Loureiro, não é banal e deixa o conflito mais distante de uma solução.

Em um novo livro publicado pela editora Unicamp no final de 2022, Loureiro em conjunto com especialistas do Brasil e de outros países, analisaram os impactos a longo prazo da guerra, que em 24 de fevereiro completou um ano. Um tipo de guerra que, segundo afirmou em entrevista ao Estadão, se imaginava ter ficado no passado pré-Guerra Fria.

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Não à toa “Linha Vermelha” foi escolhido como título da publicação. Além de ser um termo recorrente em uma guerra imprevisível, é o sinal de ameaças constantes e torna uma solução pacífica muito distante no horizonte. A própria existência da guerra, afirma o pesquisador, é a ultrapassagem de uma linha vermelha das regras não escritas da geopolítica atual. Confira trechos da entrevista:

Militares ucranianos ao lado de um prédio destruído perto da cidade de Kreminna, na linha de frente, em meio ao ataque da Rússia à Ucrânia, na região de Luhansk, em 24 de março de 2023 Foto: Violeta Santos Moura/Reuters

O livro tem um título que foi muito utilizado nessa guerra, em tons ameaçadores e que quase levou a escalada diversas vezes. O que significa utilizar linha vermelha neste contexto?

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O nome está relacionado a três aspectos. O primeiro é que todos os atores envolvidos utilizaram muito essa metáfora: Putin usou para dizer que o Ocidente teria ultrapassado uma linha vermelha ao apontar a possibilidade da Ucrânia entrar na Otan; já a liderança americana usou quando Putin deu a entender que poderia usar armas nucleares; e Kiev usou quando se descobriu a ocorrência de crimes de guerra da Rússia contra a população civil.

Já o segundo motivo é porque utilizar este termo, do ponto de vista das relações internacionais, dificulta muito a negociação para uma solução pacífica, porque quando você diz que um determinado aspecto é uma linha vermelha, uma vez que ela é cruzada, você tem que responder, senão você sai deslegitimado por não cumprir uma ameaça.

E, por fim, a própria guerra representa uma linha vermelha para o sistema internacional, estamos assistindo a primeira guerra de conquista explícita no pós-Guerra Fria. Estamos falando de uma mudança geopolítica significativa, com a Otan se fortalecendo e com ameaças de uso de armas nucleares táticas. Era algo que imaginávamos estar relegado ao passado, até bastante distante, eu diria.

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Uma questão que o livro busca responder, e que é uma pergunta feita desde o início da guerra e segue até hoje, é o porquê da invasão. Quais explicações a publicação traz?

O artigo do professor Paul D’Anieri tenta responder essa pergunta, claro, sem evidências sólidas porque o estado russo é fortemente fechado. Mas ele aponta que o central é entender que existe a percepção de que a Ucrânia faz parte da Rússia, sobretudo a península da Crimeia. E essa não é uma percepção só do Putin, isso é importante ressaltar. É uma percepção mais ampla, da elite política, de inteligência, militar e eu diria até que tem uma certa adesão na sociedade russa. Eu uso o termo geografia imaginada que é a geografia qua sociedade russa imagina sobre seu país.

Mas existe também uma teoria filosófica que é a Teoria da Perspectiva. Ela diz que, em situações existenciais em que você sente que está perdendo algo, você estaria disposto a assumir riscos muito maiores do que numa situação, por exemplo, em que você visa obter um determinado ganho. Nesse sentido e com a lógica de que a Ucrânia pertenceria à Rússia, o Putin sentia que o tempo estava do lado da Ucrânia que cada vez mais ia caminhando para uma situação de cooperação com a União Europeia.

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Livro Linha Vermelha aborda os impactos da Guerra na Ucrânia na geopolítica mundial Foto: Divulgação

Outra questão abordada é o papel das organizações internacionais neste momento. Elas saem enfraquecidas em um contexto de invasão de um território soberano, sanções que não são seguidas por países não envolvidos no conflito e sob acusações de crimes de guerra?

O processo de enfraquecimento das organizações internacionais já vem de antes, como por exemplo após a invasão do Iraque. Mas essa guerra leva esse enfraquecimento a outro patamar. A gente está falando de uma guerra de conquista aberta, com a Rússia anexando os territórios de um outro Estado soberano independente e, além disso, é uma guerra em que há indícios fortíssimos de crimes de guerra e potencialmente até crimes contra a humanidade.

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Porém, outro elemento que há no capítulo específico da professora Marielle Maia, é a possibilidade de julgar a Rússia pelo crime de agressão. Ela mostra que quando tem uma grande potência envolvida e ainda mais uma grande potência que é membro permanente do Conselho de Segurança, não é fácil um processo de responsabilização dessa grande potência. Ainda que haja uma investigação no Tribunal Penal Internacional, não há nenhum indício de que se lideranças políticas russas de alto-escalão forem condenadas no TPI, o Estado russo vai entregar essas pessoas ao tribunal, a não ser que seja derrotado flagrantemente nessa guerra.

Depois de um ano do conflito, as potências envolvidas questionam a posição do chamado Sul Global nessa guerra. Por que os países não envolvidos, em especial os em desenvolvimento, escolheram a neutralidade?

O livro tem diferentes artigos que tratam disso: um sobre a África, outro sobre a China e um só sobre o Brasil, cada um com suas complexidades. Mas em resumo, nas votações de resoluções que condenam a Rússia, por exemplo, a tendência é o Sul Global votar em favor dessas resoluções, mas negando-se a apoiar a Ucrânia e o Ocidente por meio de adesão às sanções e, principalmente, não apoiar por meio de ajuda militar e ajuda econômica. E uma das razões é que há uma consciência, por parte desses países, de que antes desta guerra a forma pela qual o chamado Ocidente rico lidou com esse tema de violação da carta da ONU foi uma forma muito ambígua, e novamente temos o exemplo do Iraque. E essa é uma outra razão pela qual também a gente não tem uma visão muito apaixonada dessas lideranças do Sul Global em apoio a sanções e principalmente em ajuda econômica e militar à Ucrânia.

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O livro finaliza com um artigo de sua autoria que busca responder se a guerra na Ucrânia é uma nova guerra fria entre Rússia e EUA. Qual é a conclusão?

A conclusão é que não, mas isso não é uma boa notícia. Quando a gente fala em guerra fria, a gente está falando de um período marcado não apenas por uma bipolarização entre duas grandes potências, no caso Estados Unidos e União Soviética, mas também por projetos de modernidade globais e completamente antagônicos. Isso fez a Guerra Fria acabar sendo um período em que houve um engajamento em termos de corações e mentes de um lado ou do outro no mundo inteiro. Então você teve na América Latina, na África, na Ásia, na Europa.

Agora, a Rússia, e mesmo a China, não têm essa característica proselitista. O Xi Jinping de uma certa maneira vem ensaiando algo nessa linha, mas ainda muito incipiente, não tem esse caráter proselitista de se colocar como uma modernidade alternativa a ser seguida por outra sociedade e outros Estados. O que a gente está assistindo são grandes potências construindo uma rivalidade estratégica uma com a outra, ou seja, uma potência enxergando a outra como a sua principal inimiga e a partir disso construindo todo um conjunto de políticas tanto no âmbito doméstico, mas principalmente no âmbito internacional, de defesa. Isso está acontecendo entre Estados Unidos e Rússia e está acontecendo entre Estados Unidos e China. Então é uma polarização do sistema internacional crescente, mas é uma polarização que ainda não tem esse caráter fortemente ideológico.

Na recente visita de Xi Jinping a Vladimir Putin, autoridades dos Estados Unidos alertaram que o fornecimento de armas da China para a Rússia em sua guerra na Ucrânia seria como cruzar uma “linha vermelha”. A expressão é utilizada desde que Moscou lançou sua invasão há mais de um ano e ressurge em momentos de novas escaladas. A escolha do termo, aponta o professor de Relações Internacionais da USP Felipe Loureiro, não é banal e deixa o conflito mais distante de uma solução.

Em um novo livro publicado pela editora Unicamp no final de 2022, Loureiro em conjunto com especialistas do Brasil e de outros países, analisaram os impactos a longo prazo da guerra, que em 24 de fevereiro completou um ano. Um tipo de guerra que, segundo afirmou em entrevista ao Estadão, se imaginava ter ficado no passado pré-Guerra Fria.

Não à toa “Linha Vermelha” foi escolhido como título da publicação. Além de ser um termo recorrente em uma guerra imprevisível, é o sinal de ameaças constantes e torna uma solução pacífica muito distante no horizonte. A própria existência da guerra, afirma o pesquisador, é a ultrapassagem de uma linha vermelha das regras não escritas da geopolítica atual. Confira trechos da entrevista:

Militares ucranianos ao lado de um prédio destruído perto da cidade de Kreminna, na linha de frente, em meio ao ataque da Rússia à Ucrânia, na região de Luhansk, em 24 de março de 2023 Foto: Violeta Santos Moura/Reuters

O livro tem um título que foi muito utilizado nessa guerra, em tons ameaçadores e que quase levou a escalada diversas vezes. O que significa utilizar linha vermelha neste contexto?

O nome está relacionado a três aspectos. O primeiro é que todos os atores envolvidos utilizaram muito essa metáfora: Putin usou para dizer que o Ocidente teria ultrapassado uma linha vermelha ao apontar a possibilidade da Ucrânia entrar na Otan; já a liderança americana usou quando Putin deu a entender que poderia usar armas nucleares; e Kiev usou quando se descobriu a ocorrência de crimes de guerra da Rússia contra a população civil.

Já o segundo motivo é porque utilizar este termo, do ponto de vista das relações internacionais, dificulta muito a negociação para uma solução pacífica, porque quando você diz que um determinado aspecto é uma linha vermelha, uma vez que ela é cruzada, você tem que responder, senão você sai deslegitimado por não cumprir uma ameaça.

E, por fim, a própria guerra representa uma linha vermelha para o sistema internacional, estamos assistindo a primeira guerra de conquista explícita no pós-Guerra Fria. Estamos falando de uma mudança geopolítica significativa, com a Otan se fortalecendo e com ameaças de uso de armas nucleares táticas. Era algo que imaginávamos estar relegado ao passado, até bastante distante, eu diria.

Uma questão que o livro busca responder, e que é uma pergunta feita desde o início da guerra e segue até hoje, é o porquê da invasão. Quais explicações a publicação traz?

O artigo do professor Paul D’Anieri tenta responder essa pergunta, claro, sem evidências sólidas porque o estado russo é fortemente fechado. Mas ele aponta que o central é entender que existe a percepção de que a Ucrânia faz parte da Rússia, sobretudo a península da Crimeia. E essa não é uma percepção só do Putin, isso é importante ressaltar. É uma percepção mais ampla, da elite política, de inteligência, militar e eu diria até que tem uma certa adesão na sociedade russa. Eu uso o termo geografia imaginada que é a geografia qua sociedade russa imagina sobre seu país.

Mas existe também uma teoria filosófica que é a Teoria da Perspectiva. Ela diz que, em situações existenciais em que você sente que está perdendo algo, você estaria disposto a assumir riscos muito maiores do que numa situação, por exemplo, em que você visa obter um determinado ganho. Nesse sentido e com a lógica de que a Ucrânia pertenceria à Rússia, o Putin sentia que o tempo estava do lado da Ucrânia que cada vez mais ia caminhando para uma situação de cooperação com a União Europeia.

Livro Linha Vermelha aborda os impactos da Guerra na Ucrânia na geopolítica mundial Foto: Divulgação

Outra questão abordada é o papel das organizações internacionais neste momento. Elas saem enfraquecidas em um contexto de invasão de um território soberano, sanções que não são seguidas por países não envolvidos no conflito e sob acusações de crimes de guerra?

O processo de enfraquecimento das organizações internacionais já vem de antes, como por exemplo após a invasão do Iraque. Mas essa guerra leva esse enfraquecimento a outro patamar. A gente está falando de uma guerra de conquista aberta, com a Rússia anexando os territórios de um outro Estado soberano independente e, além disso, é uma guerra em que há indícios fortíssimos de crimes de guerra e potencialmente até crimes contra a humanidade.

Porém, outro elemento que há no capítulo específico da professora Marielle Maia, é a possibilidade de julgar a Rússia pelo crime de agressão. Ela mostra que quando tem uma grande potência envolvida e ainda mais uma grande potência que é membro permanente do Conselho de Segurança, não é fácil um processo de responsabilização dessa grande potência. Ainda que haja uma investigação no Tribunal Penal Internacional, não há nenhum indício de que se lideranças políticas russas de alto-escalão forem condenadas no TPI, o Estado russo vai entregar essas pessoas ao tribunal, a não ser que seja derrotado flagrantemente nessa guerra.

Depois de um ano do conflito, as potências envolvidas questionam a posição do chamado Sul Global nessa guerra. Por que os países não envolvidos, em especial os em desenvolvimento, escolheram a neutralidade?

O livro tem diferentes artigos que tratam disso: um sobre a África, outro sobre a China e um só sobre o Brasil, cada um com suas complexidades. Mas em resumo, nas votações de resoluções que condenam a Rússia, por exemplo, a tendência é o Sul Global votar em favor dessas resoluções, mas negando-se a apoiar a Ucrânia e o Ocidente por meio de adesão às sanções e, principalmente, não apoiar por meio de ajuda militar e ajuda econômica. E uma das razões é que há uma consciência, por parte desses países, de que antes desta guerra a forma pela qual o chamado Ocidente rico lidou com esse tema de violação da carta da ONU foi uma forma muito ambígua, e novamente temos o exemplo do Iraque. E essa é uma outra razão pela qual também a gente não tem uma visão muito apaixonada dessas lideranças do Sul Global em apoio a sanções e principalmente em ajuda econômica e militar à Ucrânia.

O livro finaliza com um artigo de sua autoria que busca responder se a guerra na Ucrânia é uma nova guerra fria entre Rússia e EUA. Qual é a conclusão?

A conclusão é que não, mas isso não é uma boa notícia. Quando a gente fala em guerra fria, a gente está falando de um período marcado não apenas por uma bipolarização entre duas grandes potências, no caso Estados Unidos e União Soviética, mas também por projetos de modernidade globais e completamente antagônicos. Isso fez a Guerra Fria acabar sendo um período em que houve um engajamento em termos de corações e mentes de um lado ou do outro no mundo inteiro. Então você teve na América Latina, na África, na Ásia, na Europa.

Agora, a Rússia, e mesmo a China, não têm essa característica proselitista. O Xi Jinping de uma certa maneira vem ensaiando algo nessa linha, mas ainda muito incipiente, não tem esse caráter proselitista de se colocar como uma modernidade alternativa a ser seguida por outra sociedade e outros Estados. O que a gente está assistindo são grandes potências construindo uma rivalidade estratégica uma com a outra, ou seja, uma potência enxergando a outra como a sua principal inimiga e a partir disso construindo todo um conjunto de políticas tanto no âmbito doméstico, mas principalmente no âmbito internacional, de defesa. Isso está acontecendo entre Estados Unidos e Rússia e está acontecendo entre Estados Unidos e China. Então é uma polarização do sistema internacional crescente, mas é uma polarização que ainda não tem esse caráter fortemente ideológico.

Na recente visita de Xi Jinping a Vladimir Putin, autoridades dos Estados Unidos alertaram que o fornecimento de armas da China para a Rússia em sua guerra na Ucrânia seria como cruzar uma “linha vermelha”. A expressão é utilizada desde que Moscou lançou sua invasão há mais de um ano e ressurge em momentos de novas escaladas. A escolha do termo, aponta o professor de Relações Internacionais da USP Felipe Loureiro, não é banal e deixa o conflito mais distante de uma solução.

Em um novo livro publicado pela editora Unicamp no final de 2022, Loureiro em conjunto com especialistas do Brasil e de outros países, analisaram os impactos a longo prazo da guerra, que em 24 de fevereiro completou um ano. Um tipo de guerra que, segundo afirmou em entrevista ao Estadão, se imaginava ter ficado no passado pré-Guerra Fria.

Não à toa “Linha Vermelha” foi escolhido como título da publicação. Além de ser um termo recorrente em uma guerra imprevisível, é o sinal de ameaças constantes e torna uma solução pacífica muito distante no horizonte. A própria existência da guerra, afirma o pesquisador, é a ultrapassagem de uma linha vermelha das regras não escritas da geopolítica atual. Confira trechos da entrevista:

Militares ucranianos ao lado de um prédio destruído perto da cidade de Kreminna, na linha de frente, em meio ao ataque da Rússia à Ucrânia, na região de Luhansk, em 24 de março de 2023 Foto: Violeta Santos Moura/Reuters

O livro tem um título que foi muito utilizado nessa guerra, em tons ameaçadores e que quase levou a escalada diversas vezes. O que significa utilizar linha vermelha neste contexto?

O nome está relacionado a três aspectos. O primeiro é que todos os atores envolvidos utilizaram muito essa metáfora: Putin usou para dizer que o Ocidente teria ultrapassado uma linha vermelha ao apontar a possibilidade da Ucrânia entrar na Otan; já a liderança americana usou quando Putin deu a entender que poderia usar armas nucleares; e Kiev usou quando se descobriu a ocorrência de crimes de guerra da Rússia contra a população civil.

Já o segundo motivo é porque utilizar este termo, do ponto de vista das relações internacionais, dificulta muito a negociação para uma solução pacífica, porque quando você diz que um determinado aspecto é uma linha vermelha, uma vez que ela é cruzada, você tem que responder, senão você sai deslegitimado por não cumprir uma ameaça.

E, por fim, a própria guerra representa uma linha vermelha para o sistema internacional, estamos assistindo a primeira guerra de conquista explícita no pós-Guerra Fria. Estamos falando de uma mudança geopolítica significativa, com a Otan se fortalecendo e com ameaças de uso de armas nucleares táticas. Era algo que imaginávamos estar relegado ao passado, até bastante distante, eu diria.

Uma questão que o livro busca responder, e que é uma pergunta feita desde o início da guerra e segue até hoje, é o porquê da invasão. Quais explicações a publicação traz?

O artigo do professor Paul D’Anieri tenta responder essa pergunta, claro, sem evidências sólidas porque o estado russo é fortemente fechado. Mas ele aponta que o central é entender que existe a percepção de que a Ucrânia faz parte da Rússia, sobretudo a península da Crimeia. E essa não é uma percepção só do Putin, isso é importante ressaltar. É uma percepção mais ampla, da elite política, de inteligência, militar e eu diria até que tem uma certa adesão na sociedade russa. Eu uso o termo geografia imaginada que é a geografia qua sociedade russa imagina sobre seu país.

Mas existe também uma teoria filosófica que é a Teoria da Perspectiva. Ela diz que, em situações existenciais em que você sente que está perdendo algo, você estaria disposto a assumir riscos muito maiores do que numa situação, por exemplo, em que você visa obter um determinado ganho. Nesse sentido e com a lógica de que a Ucrânia pertenceria à Rússia, o Putin sentia que o tempo estava do lado da Ucrânia que cada vez mais ia caminhando para uma situação de cooperação com a União Europeia.

Livro Linha Vermelha aborda os impactos da Guerra na Ucrânia na geopolítica mundial Foto: Divulgação

Outra questão abordada é o papel das organizações internacionais neste momento. Elas saem enfraquecidas em um contexto de invasão de um território soberano, sanções que não são seguidas por países não envolvidos no conflito e sob acusações de crimes de guerra?

O processo de enfraquecimento das organizações internacionais já vem de antes, como por exemplo após a invasão do Iraque. Mas essa guerra leva esse enfraquecimento a outro patamar. A gente está falando de uma guerra de conquista aberta, com a Rússia anexando os territórios de um outro Estado soberano independente e, além disso, é uma guerra em que há indícios fortíssimos de crimes de guerra e potencialmente até crimes contra a humanidade.

Porém, outro elemento que há no capítulo específico da professora Marielle Maia, é a possibilidade de julgar a Rússia pelo crime de agressão. Ela mostra que quando tem uma grande potência envolvida e ainda mais uma grande potência que é membro permanente do Conselho de Segurança, não é fácil um processo de responsabilização dessa grande potência. Ainda que haja uma investigação no Tribunal Penal Internacional, não há nenhum indício de que se lideranças políticas russas de alto-escalão forem condenadas no TPI, o Estado russo vai entregar essas pessoas ao tribunal, a não ser que seja derrotado flagrantemente nessa guerra.

Depois de um ano do conflito, as potências envolvidas questionam a posição do chamado Sul Global nessa guerra. Por que os países não envolvidos, em especial os em desenvolvimento, escolheram a neutralidade?

O livro tem diferentes artigos que tratam disso: um sobre a África, outro sobre a China e um só sobre o Brasil, cada um com suas complexidades. Mas em resumo, nas votações de resoluções que condenam a Rússia, por exemplo, a tendência é o Sul Global votar em favor dessas resoluções, mas negando-se a apoiar a Ucrânia e o Ocidente por meio de adesão às sanções e, principalmente, não apoiar por meio de ajuda militar e ajuda econômica. E uma das razões é que há uma consciência, por parte desses países, de que antes desta guerra a forma pela qual o chamado Ocidente rico lidou com esse tema de violação da carta da ONU foi uma forma muito ambígua, e novamente temos o exemplo do Iraque. E essa é uma outra razão pela qual também a gente não tem uma visão muito apaixonada dessas lideranças do Sul Global em apoio a sanções e principalmente em ajuda econômica e militar à Ucrânia.

O livro finaliza com um artigo de sua autoria que busca responder se a guerra na Ucrânia é uma nova guerra fria entre Rússia e EUA. Qual é a conclusão?

A conclusão é que não, mas isso não é uma boa notícia. Quando a gente fala em guerra fria, a gente está falando de um período marcado não apenas por uma bipolarização entre duas grandes potências, no caso Estados Unidos e União Soviética, mas também por projetos de modernidade globais e completamente antagônicos. Isso fez a Guerra Fria acabar sendo um período em que houve um engajamento em termos de corações e mentes de um lado ou do outro no mundo inteiro. Então você teve na América Latina, na África, na Ásia, na Europa.

Agora, a Rússia, e mesmo a China, não têm essa característica proselitista. O Xi Jinping de uma certa maneira vem ensaiando algo nessa linha, mas ainda muito incipiente, não tem esse caráter proselitista de se colocar como uma modernidade alternativa a ser seguida por outra sociedade e outros Estados. O que a gente está assistindo são grandes potências construindo uma rivalidade estratégica uma com a outra, ou seja, uma potência enxergando a outra como a sua principal inimiga e a partir disso construindo todo um conjunto de políticas tanto no âmbito doméstico, mas principalmente no âmbito internacional, de defesa. Isso está acontecendo entre Estados Unidos e Rússia e está acontecendo entre Estados Unidos e China. Então é uma polarização do sistema internacional crescente, mas é uma polarização que ainda não tem esse caráter fortemente ideológico.

Na recente visita de Xi Jinping a Vladimir Putin, autoridades dos Estados Unidos alertaram que o fornecimento de armas da China para a Rússia em sua guerra na Ucrânia seria como cruzar uma “linha vermelha”. A expressão é utilizada desde que Moscou lançou sua invasão há mais de um ano e ressurge em momentos de novas escaladas. A escolha do termo, aponta o professor de Relações Internacionais da USP Felipe Loureiro, não é banal e deixa o conflito mais distante de uma solução.

Em um novo livro publicado pela editora Unicamp no final de 2022, Loureiro em conjunto com especialistas do Brasil e de outros países, analisaram os impactos a longo prazo da guerra, que em 24 de fevereiro completou um ano. Um tipo de guerra que, segundo afirmou em entrevista ao Estadão, se imaginava ter ficado no passado pré-Guerra Fria.

Não à toa “Linha Vermelha” foi escolhido como título da publicação. Além de ser um termo recorrente em uma guerra imprevisível, é o sinal de ameaças constantes e torna uma solução pacífica muito distante no horizonte. A própria existência da guerra, afirma o pesquisador, é a ultrapassagem de uma linha vermelha das regras não escritas da geopolítica atual. Confira trechos da entrevista:

Militares ucranianos ao lado de um prédio destruído perto da cidade de Kreminna, na linha de frente, em meio ao ataque da Rússia à Ucrânia, na região de Luhansk, em 24 de março de 2023 Foto: Violeta Santos Moura/Reuters

O livro tem um título que foi muito utilizado nessa guerra, em tons ameaçadores e que quase levou a escalada diversas vezes. O que significa utilizar linha vermelha neste contexto?

O nome está relacionado a três aspectos. O primeiro é que todos os atores envolvidos utilizaram muito essa metáfora: Putin usou para dizer que o Ocidente teria ultrapassado uma linha vermelha ao apontar a possibilidade da Ucrânia entrar na Otan; já a liderança americana usou quando Putin deu a entender que poderia usar armas nucleares; e Kiev usou quando se descobriu a ocorrência de crimes de guerra da Rússia contra a população civil.

Já o segundo motivo é porque utilizar este termo, do ponto de vista das relações internacionais, dificulta muito a negociação para uma solução pacífica, porque quando você diz que um determinado aspecto é uma linha vermelha, uma vez que ela é cruzada, você tem que responder, senão você sai deslegitimado por não cumprir uma ameaça.

E, por fim, a própria guerra representa uma linha vermelha para o sistema internacional, estamos assistindo a primeira guerra de conquista explícita no pós-Guerra Fria. Estamos falando de uma mudança geopolítica significativa, com a Otan se fortalecendo e com ameaças de uso de armas nucleares táticas. Era algo que imaginávamos estar relegado ao passado, até bastante distante, eu diria.

Uma questão que o livro busca responder, e que é uma pergunta feita desde o início da guerra e segue até hoje, é o porquê da invasão. Quais explicações a publicação traz?

O artigo do professor Paul D’Anieri tenta responder essa pergunta, claro, sem evidências sólidas porque o estado russo é fortemente fechado. Mas ele aponta que o central é entender que existe a percepção de que a Ucrânia faz parte da Rússia, sobretudo a península da Crimeia. E essa não é uma percepção só do Putin, isso é importante ressaltar. É uma percepção mais ampla, da elite política, de inteligência, militar e eu diria até que tem uma certa adesão na sociedade russa. Eu uso o termo geografia imaginada que é a geografia qua sociedade russa imagina sobre seu país.

Mas existe também uma teoria filosófica que é a Teoria da Perspectiva. Ela diz que, em situações existenciais em que você sente que está perdendo algo, você estaria disposto a assumir riscos muito maiores do que numa situação, por exemplo, em que você visa obter um determinado ganho. Nesse sentido e com a lógica de que a Ucrânia pertenceria à Rússia, o Putin sentia que o tempo estava do lado da Ucrânia que cada vez mais ia caminhando para uma situação de cooperação com a União Europeia.

Livro Linha Vermelha aborda os impactos da Guerra na Ucrânia na geopolítica mundial Foto: Divulgação

Outra questão abordada é o papel das organizações internacionais neste momento. Elas saem enfraquecidas em um contexto de invasão de um território soberano, sanções que não são seguidas por países não envolvidos no conflito e sob acusações de crimes de guerra?

O processo de enfraquecimento das organizações internacionais já vem de antes, como por exemplo após a invasão do Iraque. Mas essa guerra leva esse enfraquecimento a outro patamar. A gente está falando de uma guerra de conquista aberta, com a Rússia anexando os territórios de um outro Estado soberano independente e, além disso, é uma guerra em que há indícios fortíssimos de crimes de guerra e potencialmente até crimes contra a humanidade.

Porém, outro elemento que há no capítulo específico da professora Marielle Maia, é a possibilidade de julgar a Rússia pelo crime de agressão. Ela mostra que quando tem uma grande potência envolvida e ainda mais uma grande potência que é membro permanente do Conselho de Segurança, não é fácil um processo de responsabilização dessa grande potência. Ainda que haja uma investigação no Tribunal Penal Internacional, não há nenhum indício de que se lideranças políticas russas de alto-escalão forem condenadas no TPI, o Estado russo vai entregar essas pessoas ao tribunal, a não ser que seja derrotado flagrantemente nessa guerra.

Depois de um ano do conflito, as potências envolvidas questionam a posição do chamado Sul Global nessa guerra. Por que os países não envolvidos, em especial os em desenvolvimento, escolheram a neutralidade?

O livro tem diferentes artigos que tratam disso: um sobre a África, outro sobre a China e um só sobre o Brasil, cada um com suas complexidades. Mas em resumo, nas votações de resoluções que condenam a Rússia, por exemplo, a tendência é o Sul Global votar em favor dessas resoluções, mas negando-se a apoiar a Ucrânia e o Ocidente por meio de adesão às sanções e, principalmente, não apoiar por meio de ajuda militar e ajuda econômica. E uma das razões é que há uma consciência, por parte desses países, de que antes desta guerra a forma pela qual o chamado Ocidente rico lidou com esse tema de violação da carta da ONU foi uma forma muito ambígua, e novamente temos o exemplo do Iraque. E essa é uma outra razão pela qual também a gente não tem uma visão muito apaixonada dessas lideranças do Sul Global em apoio a sanções e principalmente em ajuda econômica e militar à Ucrânia.

O livro finaliza com um artigo de sua autoria que busca responder se a guerra na Ucrânia é uma nova guerra fria entre Rússia e EUA. Qual é a conclusão?

A conclusão é que não, mas isso não é uma boa notícia. Quando a gente fala em guerra fria, a gente está falando de um período marcado não apenas por uma bipolarização entre duas grandes potências, no caso Estados Unidos e União Soviética, mas também por projetos de modernidade globais e completamente antagônicos. Isso fez a Guerra Fria acabar sendo um período em que houve um engajamento em termos de corações e mentes de um lado ou do outro no mundo inteiro. Então você teve na América Latina, na África, na Ásia, na Europa.

Agora, a Rússia, e mesmo a China, não têm essa característica proselitista. O Xi Jinping de uma certa maneira vem ensaiando algo nessa linha, mas ainda muito incipiente, não tem esse caráter proselitista de se colocar como uma modernidade alternativa a ser seguida por outra sociedade e outros Estados. O que a gente está assistindo são grandes potências construindo uma rivalidade estratégica uma com a outra, ou seja, uma potência enxergando a outra como a sua principal inimiga e a partir disso construindo todo um conjunto de políticas tanto no âmbito doméstico, mas principalmente no âmbito internacional, de defesa. Isso está acontecendo entre Estados Unidos e Rússia e está acontecendo entre Estados Unidos e China. Então é uma polarização do sistema internacional crescente, mas é uma polarização que ainda não tem esse caráter fortemente ideológico.

Entrevista por Carolina Marins

Jornalista formada pela ECA-USP. Repórter da editoria de Internacional, com interesse em América Latina. Já fiz coberturas in loco na Argentina, em Israel e na Ucrânia

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