Todo os dias, quando chega ao gabinete, o parlamentar alemão Erhard Grundl olha pela janela e pensa que pode ser alvo de espionagem. Em meio à vista do centro histórico de Berlim, ele enxerga a bandeira russa tremulando no topo do prédio da embaixada do governo de Vladimir Putin. À sombra do Reichstag — sede do Parlamento alemão — e bem próximo às colunas do Portão de Brandenburgo, os prédios que abrigam gabinetes parlamentares estão bem próximos à enorme representação diplomática russa, região em que, há anos, se dá um embate silencioso de espionagem.
Integrantes do parlamento como Grundl foram alertados por agentes de inteligência alemães para evitar conexões de internet sem fio fáceis de grampear ou deixar telas de computador voltadas para as janelas, que precisam ser fechadas durante reuniões.
Parece uma situação quase cômica para as autoridades de uma das nações mais poderosas da Europa, onde as tensões sobre a espionagem russa eram algo que o governo da Alemanha parecia disposto a ignorar.
As tensões provocadas pela espionagem russa em solo alemão muitas vezes foram ignoradas pelo governo da Alemanha, mas a invasão da Ucrânia pela Rússia tornou mais difícil esse comportamento diante das mudanças na relação da Europa com o regime de Putin e do ressurgimento de fricções que lembram o período da Guerra Fria.
No mês passado, o governo russo anunciou a expulsão de mais de 20 diplomatas alemães, em resposta ao que chamou de “expulsão em massa” de diplomatas russos da Alemanha. Especialistas na área de segurança avaliam que o movimento foi um raro sinal de um crescente esforço de contrainteligência de Berlim, depois de anos de operações explícitas dos russos no país.
Pelo menos duas vezes, grupos russos suspeitos de ligação com o Kremlin hackearam políticos e o Parlamento — a última vez apenas meses antes das eleições de 2021 que encerraram os 16 anos de poder da ex-primeira-ministra Angela Merkel, substituída por Olaf Scholz.
Alguns anos antes, um atirador acusado de ter relações com o serviço secreto russo matou um dissidente da Geórgia, em pleno dia, no parque Kleiner Tiergarten, a menos de dois quilômetros dos prédios do governo em Berlim. Em 2021, a polícia prendeu um guarda da embaixada britânica na Alemanha que estava espionando para a Rússia. E, no fim do ano passado, um agente de inteligência alemão foi desmascarado ao agir como infiltrado para passar informações sobre o monitoramento da guerra na Ucrânia para Moscou.
O Ministério das Relações Exteriores alemão evita comentar as expulsões de russos — o que, inclusive, não classifica de expulsão — mas confirmou que a partida dos diplomatas está ligada à “redução da presença do serviço secreto russo na Alemanha”.
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Expulsão é tradicionalmente a resposta alemã a operações russas — incluindo a primeira invasão de hackers ao Parlamento, em 2015, e a invasão da Ucrânia pela Rússia, quando 40 diplomatas foram devolvidos a Moscou. Dessa vez, especialistas em segurança acreditam que a ação é parte de um movimento maior de reforço da contrainteligência e de combate discreto do que há muito alertam ser atividades de espionagem na Embaixada.
Para Stefan Meister, do Conselho alemão de Relações Exteriores, recuperar os anos em que a contrainteligência alemã foi deixada de lado vai levar bastante tempo. Quando trabalhou com as agências de espionagem da Alemanha, nos anos 2000, ele diz não ter visto nenhum funcionário que falasse russo nas equipes. Em contraste, o presidente Putin, há muito tempo, já apontava a Alemanha — que é a maior economia da Europa — como alvo prioritário de espionagem.
“Não estamos onde deveríamos estar ou deveríamos ter estado”, diz o especialista. “Os russos também estão aprendendo. Eles não têm limites, têm muitos recursos que investem nessa guerra híbrida de informação. E nós estamos sempre alguns passos atrás”, avalia. “Finalmente, eles expulsaram esses caras”, acrescentou. “Mas por que demorou tanto?”
No centro deste debate está a Embaixada russa, um complexo com aparência de palácio onde ainda se vê gravadas na pedra as imagens da foice e do martelo dos tempos do regime soviético — um lugar que sempre inspirou fascínio, consternação e intriga.
Antes da invasão da Ucrânia, mesmo depois de anos da anexação da Crimeia pela Rússia, a embaixada era famosa pelas festas suntuosas, que atraíam altos executivos da indústria automobilística alemã, políticos, jogadores de futebol e atores.
O local também ganhou um lado sombrio, após os casos de morte de duas pessoas que caíram das janelas do prédio. Em 2021, um diplomata foi encontrado caído na calçada pela polícia alemã — que acredita que ele fosse um agente disfarçado da FSB, a agência de inteligência russa que os alemães relacionaram com o assassinato no parque Tiergarten.
A agência de inteligência interna da Alemanha disse à rede de televisão estatal ARD que encontrou equipamento potencialmente de espionagem no teto da Embaixada russa — talvez para vigiar parlamentares como Grundl ou Frank Schwabe, do Partido Social-Democrata (SPD), de Scholz.
“Nós não estamos bem preparados”, disse Schwabe, que trabalha no prédio em frente à Embaixada e se dedica a questões de direitos humanos. “Eu gostaria, na verdade, de ver uma estratégia de segurança que realmente proteja os parlamentares desse tipo de tentativa monitoramento.”
Por enquanto, ele oferece aos visitantes, como dissidentes russos e ativistas da sociedade civil, a opção de ir a uma outra sala para evitar a possibilidade de leitura labial pelas janelas. Especialistas em segurança alertam que essas medidas não são suficientes para proteger políticos, que parecem ser alvo primordial, não apenas perto da Embaixada, mas em qualquer lugar, do uso de veículos que levam equipamentos menores e são capazes de grampear telefones e ouvir conversas.
Meister disse que os legisladores com acessos a dados sensíveis podem ser transferidos para mais longe da Embaixada da Rússia. “Então, novamente, o que não é confidencial agora? Uma política pública doméstica ou outras questões, como migração, podem ser usadas pela Rússia – não há quase nada que não seja delicado no momento.”
De fato, Lang disse que questões como migração foram um tópico-chave usado pela Rússia para identificar e recrutar membros frustrados e simpatizantes da extrema direita das forças de segurança e defesa alemãs.
Para complicar os esforços da Alemanha para combater efetivamente a inteligência russa está o sistema federalizado do país: cada Estado alemão tem um serviço de inteligência diferente. Lang reconheceu que a cooperação e o compartilhamento de dados entre os serviços estão melhorando, mas disse que a configuração inevitavelmente tem lacunas. Ele também instou os legisladores a reverter as leis que concedem aos alvos de espionagem, mesmo no exterior, os mesmos direitos constitucionais dos cidadãos alemães.
“As agências de inteligência são um negócio de olho por olho”, disse ele. “Se você não conseguir coletar informações, seus parceiros não negociarão com você.” A preocupação atual de Lang é que os espiões russos estejam buscando informações sobre armas ou treinamento para soldados ucranianos. Supostos agentes russos foram encontrados perto de locais de treinamento militar na Alemanha.
No mês passado, a Polônia disse ter descoberto uma quadrilha de espionagem russa que tinha câmeras escondidas em linhas ferroviárias no sudeste do país, uma importante rota de trânsito para carregamentos de armas para a Ucrânia.
Mas alguns legisladores na Alemanha se perguntam se as preocupações com os espiões da Rússia foram muito além do que deveriam: membros do partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha, cujos líderes eram convidados frequentes na embaixada russa, ocupam assentos em alguns dos comissões parlamentares mais importantes, desde as relações exteriores à Defesa.
Grundl se preocupa também com o fato de, na semana passada, seus colegas de extrema direita terem participado de um comitê parlamentar em que um tópico secreto era discutido. “Eles estão sentados lá e têm as melhores conexões com Moscou”, resmungou. “Essa é a maior dor de cabeça para mim: o inimigo interno.”