SÃO PAULO - Pouco depois da queda do Muro de Berlim, no começo dos anos 90, um seleto grupo de pessoas se reuniu em Washington na tentativa de convencer o então presidente dos EUA Bill Clinton de uma tese impopular após os anos de Guerra Fria: impedir a expansão da Otan em direção ao Leste Europeu. Entre membros da cúpula do governo, membros do Partido Democrata e professores de algumas das principais universidades americanas, tentava emplacar o argumento o jornalista Thomas L. Friedman.
“Nós nos opomos à expansão da Otan em direção ao leste por um simples motivo: Nós já tínhamos conseguido o que sempre sonhamos, uma revolução democrática na Rússia. Então, por que deveríamos expandir a Otan como nossa primeira reação a isso? Nós, na verdade, deveríamos ter trazido a Rússia para dentro da Otan”, recordou Friedman, vencedor de três prêmios Pulitzer e um dos principais observadores da política externa americananas últimas décadas.
Passados mais de 30 anos do fim da União Soviética, no entanto, Friedman aponta que o uso pelo Kremlin do expansionismo da Otan para justificar a invasão da Ucrânia como uma acusação “autofabricada” por um governo russo diferente do de outrora. “Não estamos mais no contexto de uma revolução democrática. Estamos em um contexto no qual um líder (Putin) mata pessoas com guarda-chuvas e cuecas envenenadas”.
Em entrevista ao Estadão, o colunista do The New York Times afirma que o conflito na Ucrânia é a primeira guerra realmente mundial em razão da globalização, disse esperar pelo menos “mais um ato” no campo de batalha e apontou para um renascimento do Ocidente na defesa das instituições e dos valores democráticos após anos de avanços do autoritarismo pelo mundo.
“Estamos vendo um potencial renascimento do Ocidente diante de regimes autoritários que todos pensavam que estavam em ascensão e em marcha. Talvez, a era do “homem forte” esteja acabando, e não apenas começando – e talvez o presidente Bolsonaro devesse tomar nota disso”.
Leia a entrevista na íntegra:
Logo após a invasão russa à Ucrânia, você afirmou que estaríamos diante da primeira guerra realmente mundial, por causa da interconectividade. Esse cenário se confirmou?
Sim, e não resta nenhuma dúvida sobre isso. Os preços da comida e da gasolina estão mais altos hoje em São Paulo porque Putin decidiu invadir um país a meio mundo de distância.
Além disso, o que estamos presenciando em termos de tecnologia nesta guerra é fenomenal. Pessoas enviaram 20 milhões de dólares para a Ucrânia apenas alugando quartos que elas não vão usar pelo Airbnb. Satélites foram capazes de refutar as alegações russas de que não mataram civis. Estamos vendo uma espécie de Big Brother.
Uma história incrível surgiu durante a semana, de que os ucranianos estão fotografando os rostos dos soldados russos mortos em combate e usando reconhecimento facial para identificá-los através das redes sociais russas. Isso é fenomenal.
Minha definição de globalização não é a definição econômica, que considera fluxos financeiros e comerciais. Minha interpretação de globalização é a de que nós criamos plataformas técnicas que permitem que mais pessoas, em mais lugares, de múltiplas maneiras e gastando menos dinheiro, possam agir globalmente.
É como o que estamos fazendo agora (entrevista à distância). Eu sempre acho graça quando, fazendo entrevistas assim, alguém me pergunta se a globalização acabou. Se a globalização é a habilidade de agir globalmente, então esse conflito só a reforça.
Você também descreveu três possíveis cenários para o fim do conflito, chamando-os de “salvação”, “compromisso sujo” e “desastre completo”, afirmando que o último era o mais provável àquela altura. Algum deles seria o mais provável com o que observamos agora ou temos um novo quarto cenário que seria mais provável?
Essa é uma pergunta que eu mesmo venho me fazendo… A única coisa que eu posso dizer é que vamos ter pelo menos mais um ato nessa história, mas não sabemos qual é. Estamos assistindo a uma peça e sabemos que há mais um ato. Mas não sabemos o nome, quem são os atores e nem o que vai acontecer – mas há mais um ato.
Poderia ser – não é provável, mas é possível – o colapso do Exército russo na Ucrânia, com Kiev realmente conquistando uma vitória. Eu não estou afirmando que é isso que vai acontecer, mas digo para manter essa possibilidade no radar, porque pode levar a um conjunto totalmente diferente de ações. Talvez Putin use armas nucleares táticas para evitá-la…Mas essa semana será uma semana importante.
Uma das minhas bandas de rock favoritas se chama Neon Trees, e eles tem uma das minhas músicas preferidas, que se chama Everybody Talks (“Todo mundo fala”, em tradução livre). Em países com sociedades mais fechadas, como a Rússia, todo mundo fala.
Eles sabem quem está fazendo besteira, quem está trapaceando, quem está roubando, quem está mentindo... Eles sabem. E nessa semana vimos, pela primeira vez, relatórios críticos de blogueiros militares na Rússia, alguns analistas respeitados, dizendo “isso é um desastre”. Portanto, esta é uma semana muito importante.
Quem sabe como isso será sentido pelo sistema internacional? Quando esse tipo de pressão começar a ser escutado tanto nos EUA, quanto na Rússia e na Ucrânia, eles vão começar a negociar. Esse é um jogo de xadrez de nove dimensões, com muitas pressões e contrapressões. Algumas você enxerga, outras não. Tudo que eu sei é que as próximas pressões ainda não se manifestaram, e nós não sabemos do que se trata.
Em um mundo com tantas variáveis e com tantos centros de tomada de decisão, que parâmetros os países em desenvolvimento precisarão analisar em suas tomadas de decisão de política externa? Esse novo cenário apresenta mais dificuldades ou desafios?
Não se pode generalizar, mas é muito importante para o sistema internacional que exista uma ordem estabelecida em regras.
Algumas pessoas questionam por que os EUA ou a União Europeia devem estabelecê-las, que a Rússia e a China podem querer defini-las. Eu respondo: “Tudo bem, ótimo. Que tipo de regras eles querem estabelecer?”.
Qual é o conjunto alternativo de regras que maximiza a capacidade de mais pessoas no planeta realizarem todo o seu potencial? O que você acha de uma regra que diz que eu posso acordar de manhã e dizer que seu país é parte do meu, porque meu “pregador” me disse isso e, portanto, tenho o direito de invadir o seu? Ou que você não tem voz para determinar qual regra é válida?
Eu deveria ter o direito de envenenar pessoas com guarda-chuvas? Eu deveria ter o direito de envenenar meu principal opositor com uma cueca envenenada? Que regras estão tentando estabelecer?
Ele (Putin) se ressente de que os EUA estabelecem essas regras. Mas qual seria o mundo se ele as estabelecesse?
Thomas L. Friedman
Mas o fato de líderes autoritários estarem projetando poder para fora de suas fronteiras não atinge a democracia enquanto valor fundamental no sistema internacional?
O Brasil sofre um pouco com esse problema também, mas talvez nós estejamos vendo algo muito muito interessante.
Nos últimos 10 anos, parecia que as autocracias eram muito competentes. Que elas podiam “entregar o trabalho bem feito”. A Rússia conseguia fazer o serviço, inclusive nos hackear, e nós parecíamos incompetentes. Isso está sendo revertido.
Estamos vendo a superioridade do Ocidente em fabricar e entregar armamentos de precisão que a Rússia não consegue. E estamos fazendo isso em nome de princípios amplamente aceitos e respeitados. O Brasil deveria estar a favor desses princípios também. Eu não iria querer apoiar um mundo em que a Argentina pudesse dizer, em algum amanhecer, que quer um pedaço do Brasil.
A configuração do mundo hoje não está perigosamente similar ao mundo pré-1ª Guerra? Com conflitos locais incentivando uma série de parcerias estratégicas que, no fim, podem levar a uma reação em cadeia pelos compromissos firmados?
É por isso que eu espero que essa guerra se resolva o mais rápido possível. Há duas ameaças aqui: uma é que se diga “está tudo bem” sobre a Rússia estuprar a Ucrânia – porque é realmente o estupro de um país – e que não se faça nada porque há riscos. Isso seria um verdadeiro perigo, porque se é permitido estuprar a Ucrânia, ele (Putin) pode estuprar a Letônia, Lituânia, Estônia, Polônia, Moldávia e quem mais ele quiser.
A outra ameaça é o que você mencionou: que se provoque uma reação em cadeia, em que se comece defendendo a Ucrânia e se termine com uma guerra contra a Rússia.
O presidente Joe Biden está fazendo um bom trabalho ao deixar claro que nós não estamos enviando tropas e que não queremos que isso aconteça. Não significa que não possa acontecer, mas não é isso que queremos.
Mas a guerra ainda não acabou e nós ainda estamos em uma situação muito perigosa, e não sabemos o que Putin vai fazer se sua operação militar for completamente frustrada.
Qual a sua opinião sobre o pedido de adesão da Finlândia e da Suécia à Otan? Isso não pode dificultar um acordo de paz, apesar de supostamente aumentar as garantias de defesa dos países?
A adesão de Suécia e Finlândia à Otan não torna um acordo mais difícil. Na verdade, aumenta a possibilidade de Putin perceber o incrível custo que ele paga pelo ataque à Ucrânia, por que ele simplesmente aumentou a fronteira direta da Otan contra ele em cerca de 1.300 km.
Eu não culpo Suécia e Finlândia por quererem entrar na aliança, tendo em vista o que aconteceu na Ucrânia. Como americano, estou confortável com isso, e acredito que está mostrando o custo dessa guerra para os russos e para Putin.
Isso não torna um acordo menos ou mais possível, mas se alguma coisa o tornar mais possível, é quando Putin perceber o quanto ele errou no cálculo. Ele queria basicamente ‘finlandizar’ a Otan e acabou ‘otanizando’ a Finlândia.
EUA e Otan têm adotado em parte a ‘cartilha liberal’ ao lidar com a guerra por meio de sanções e embargos. Mas essas táticas, historicamente, foram consideradas por muitos autores como insuficientes para resolver conflitos, que apontam que o isolamento de um país pode forçá-lo a uma escalada de radicalização. Qual sua opinião sobre essa estratégia? A política de sanções é suficiente ou você observa que EUA e Otan deram algum passo além?
A Otan adotou a estratégia correta enquanto alinhar sua retórica à sua estratégia, que é duplamente ajudar os ucranianos a restaurar, proteger e recuperar sua soberania em face de uma tentativa de estupro por seu vizinho, e segundo, apoiá-los nas negociações, até quando e onde eles quiserem parar.
Então, se eles dizem, “ok, vamos parar por aqui, Donbass pode ficar para a Rússia”, tanto faz. Não temos nenhum cão nessa caçada. Se a Ucrânia acredita que é do seu interesse ceder a Ucrânia oriental, declarando neutralidade, e salvar o resto, e essa é outra posição, o nosso posicionamento deve ser apoiar. Um ou outro, e até certo ponto, ambos os cenários.
A Otan entende que isso é uma violação tão grande das instituições e normas que mantiveram a paz na Europa desde a 2ª Guerra que deve ser confrontada, e eu compartilho dessa opinião.
Desde a Guerra Fria, pesquisadores usam a ideia de dissuasão para argumentar que o mundo não tem mais capacidade de suportar uma guerra direta entre Rússia, EUA e outras potências nucleares. Estamos mais perto do que nunca de um conflito em larga escala?
Sim, não há dúvida. Se você voltar ao começo dos anos 80, à Rússia e à China, nós tivemos 40 anos bastante pacíficos, sem nenhuma guerra entre grandes potências. Na verdade, se você voltar ao final da 2ª Guerra, há um período de paz ainda mais longo, o que chega a ser extraordinário.
Mas essa paz depende de duas coisas: uma é que Putin seja um bad boy, mas não um estuprador. Nós estávamos preparados para tolerar o mau comportamento de Putin, como na Geórgia, em outros locais periféricos e por que não em ciberataques contra nós. Ele é um bad boy e nós diríamos a ele que ele é um bad boy. Ele estava na regra do jogo, dentro do jogo e pisou fora desta vez. Ele foi de bad boy a estuprador.
E quando você vai de bad boy à pária, a estuprador, você tem um problema real.
A China também estava no jogo, jogando pelas regras do jogo, e estava meio que se movendo gradativamente em direção a uma sociedade estabelecida em leis, muito gradualmente, quando de repente, sob Xi (Jinping), eles tomaram outra direção.
Se você olhar para as normas e instituições que sustentam essa certa longa paz que tivemos, ambas estão realmente bambeando agora, e isso é muito, muito preocupante.
Em um artigo recente, você defendeu que autoridades americanas deveriam falar menos sobre a participação em ações na Ucrânia para evitar uma escalada com a Rússia, mencionando fontes militares que confirmaram envolvimento da Inteligência americana na morte de generais russos. Considerando que as sanções isoladas não conseguiram frear a guerra até agora, o que é possível fazer para aumentar a ajuda à Ucrânia?
O que eu estava argumentando é que esse tipo de “conversa mole”, vangloriando-se de que ajudamos a afundar o principal navio russo na frota do Mar Negro ou que ajudamos tropas ucranianas a matar generais russos é uma estupidez.
Os russos sabem porque eles tiveram essas perdas: em parte porque eles não se comportaram, em parte por causa da ajuda americana e do treinamento dado a militares ucranianos.
Temos que continuar incansavelmente focados em nossos objetivos. E nossos objetivos são manter as normas das relações pacíficas entre os países – você não pode simplesmente “abocanhar” seu país vizinho – e apoiar a Ucrânia de todas as formas possíveis. E temos feito até aqui com sucesso.
Em uma escala, partindo dos pontos da agenda liberal de resolução de conflitos às guerras por procuração da Guerra Fria, em que ponto estamos agora?
Estamos em um ponto para o qual o sistema não foi realmente testado desde a 2ª Guerra. E agora chegou a um teste – e é muito importante para a estabilidade que o sistema passe neste teste.
Thomas L. Friedman
Estamos perto de dizer que já passou, não importa o que aconteça na “caixa-preta”. Eu não acho que alguém vá tentar essa estratégia novamente em breve.
Você também escreveu que, apesar desta guerra ser sobre estratégias e mágoas de Vladimir Putin, a Otan também provocou a Rússia por meio de sua expansão, um argumento que vem sendo usado pelo Kremlin. Sua abordagem, no entanto, é diferente da retórica russa. Poderia explicar seu ponto?
No fim dos anos 90, depois da queda do Muro de Berlim, eu fiz parte de um grupo restrito de pessoas em Washington: eu, Sam Nunn (então senador democrata), Bill Perry (secretário de Defesa de Bill Clinton), Michael Mandelbaum (professor da Universidade Johns Hopkins) e George Kennan, considerado o pai da política de contenção americana.
Todos nós nos opomos à expansão da Otan em direção ao leste por um simples motivo: Nós já tínhamos conseguido o que sempre sonhamos, uma revolução democrática na Rússia. Então, por que deveríamos expandir a Otan como nossa primeira reação a isso? Nós na verdade deveríamos ter trazido a Rússia para dentro da Otan.
Eu argumentei sobre isso em inúmeros artigos e colunas, mas nossa posição foi derrotada por pessoas que diziam “está tudo bem, os russos vão se acostumar com isso”. Mas nós não aceitamos isso na época, e nem aceitamos esse argumento agora.
Então, nessa época, acreditava que a expansão da Otan era um erro.
Hoje estamos em um contexto totalmente diferente. Nós não estamos mais no contexto de uma revolução democrática. Estamos em um contexto onde um líder mata pessoas com guarda-chuvas e cuecas envenenadas. Nós temos uma liderança completamente diferente na Rússia.
O assunto da expansão da Otan agora é basicamente um “bicho-papão autofabricado”, porque os EUA já tinham dito que a Ucrânia não entraria em nenhuma expansão da Otan, e a Alemanha e a França também não teriam permitido isso.
A preocupação com a Otan e a União Europeia têm alguma relação com o que houve em Belarus nas últimas eleições presidenciais, na maneira como Lukashenko reprimiu seus opositores em meio a pressões europeias por respeito a eleições livres?
Eu não estou tão familiarizado com essa situação, mas parece que pode guardar algum paralelo. Mas veja, estamos diante de algo extraordinário. Estamos assistindo a um certo renascimento do Ocidente enquanto porta-voz de soluções democráticas e orientadas para o mercado, e estamos vendo isso como um verdadeiro renascimento em comparação com o que está acontecendo “do outro lado do muro”. Grandes mudanças podem advir disso. Quem sabe? Até onde isso vai não está claro para mim.
Thomas L. Friedman
Após o colapso da União Soviética, tivemos o período que muitos autores chamaram de Supremacia Americana. Hoje, alguns apontam que esse período já passou, e que estamos em um mundo multipolar, onde decisões são tomadas em Washington, Pequim, Bruxelas… A guerra na Ucrânia também pode ser entendida como um efeito do desejo de protagonismo de Putin dentro dessa divisão de poder multipolar?
Se você analisar Putin de 2000 a 2008, ele foi um bom e estável líder de governo, que basicamente atuou como um distribuidor de riqueza, porque era um período de alto preço do petróleo e a Rússia alcançou um mínimo de estabilidade. Isso poderia ter ido muito longe. Mas depois de 2008, conforme me apontou o historiador e biógrafo de Putin, Leon Aron, ele se tornou uma pessoa diferente.
Ele passou de um presidente que era distribuidor de riquezas e ordens básicas de estabilidade, o que foi muito apreciado após o tumultuado fim da União Soviética, para se aproximar de uma visão mística sobre a Rússia, sobre a Ucrânia, e se transformou em um pária.
Putin precisava ser um presidente em um período de guerra com o objetivo de se salvar, e foi isso que ele fez. Eu culpo mais esse fator do que a expansão da Otan.
Ele não estava preocupado sobre a Ucrânia entrar na Otan. Vinte anos depois, Putin estava preocupado com a Ucrânia entrar na União Europeia. Lembre-se que ele passou boa parte de sua carreira na Alemanha, e assistiu ao colapso da Alemanha Oriental, que caiu nos braços da Alemanha Ocidental, que oferecia uma melhor qualidade de vida.
Ele estava terrivelmente preocupado que a Ucrânia se juntasse à União Europeia, não à Otan. Porque se você tivesse um exemplo eslavo bem-sucedido de livre-mercado e democracia na Ucrânia, justo ao lado do modelo eslavo mal-sucedido e cleptocrático da Rússia, a comparação seria óbvia para todos, e Putin não podia arriscar correr esse risco.
Então na verdade a expansão da União Europeia hoje é uma ameaça maior para Putin do que a expansão da Otan.
Em seu livro The World Is Flat, você disse que o campo competitivo entre países industrializados e de mercados emergentes está se nivelando. Que empreendedores individuais, bem como empresas, estão se tornando parte de uma grande e complexa cadeia de suprimentos global que se estende através dos oceanos. Você não acha que as coisas mudaram com a ascensão de uma “ordem multipolar”? E como a pandemia e a guerra na Ucrânia mudaram esse cenário?
Eu escrevi A Terra é Plana em 2004, e desde então, todo ano, alguém tenta escrever um livro dizendo que a terra não é plana. Depois do 11 de setembro: “a globalização acabou, a liberdade acabou”; depois da crise de 2008, “a globalização acabou, a liberdade acabou”. Adivinha? A globalização não acabou, a não ser que você considere que o desejo humano de se conectar com outro ser humano acabou, e que a tecnologia não permite que essas conexões sejam mais fáceis, rápidas e baratas.
Quando a primeira árvore caiu no primeiro caminho que unia as duas tribos de homo sapiens, quando estávamos vagando pela Terra, alguém escreveu em uma tábua: “a globalização acabou”.
A globalização não acabou porque as pessoas querem se conectar. A tecnologia, como eu e você estamos demonstrando agora, torna tudo mais fácil: você está sentado em São Paulo, eu estou sentado em Washington, e você pode fazer uma pergunta que seu editor enviou por e-mail em tempo real. Eu posso ver o sorriso no seu rosto. Isso não diminui. Isso não acaba.
O que é problemático é como continuar aproveitando o que há de melhor nisso e nos protegendo do que há de pior. Essa sempre foi a questão para mim, porque nunca acreditei que só porque a globalização permite, boas coisas iriam acontecer. Nós podemos nos desentender mais.
Uma das coisas sobre a globalização, que é tão nova, é que podemos ouvir os sussurros uns dos outros. E as pessoas sussurram coisas malucas às vezes. Nós nunca pretendemos ouvir os sussurros uns aos outros. E isso é muito novo. Você pode ouvir o que se sussurra na Rússia, o que se sussurra na Ucrânia, no Brasil, nos EUA…
É uma satisfação e um orgulho para mim que alguém possa me perguntar sobre algo que eu escrevi em um dos meus artigos, como se tivesse acabado de ler ao The New York Times sentado em algum lugar de Nova York enquanto come um bagel. Eu simplesmente amo isso.
Mas não é tudo positivo e nem tudo negativo. Nosso trabalho é obter o melhor, e amortecer o que for ruim em cada um desses conflitos globalizados. São eles que estão transmitindo a instabilidade da Ucrânia e da Rússia direto para São Paulo em 24 horas, e o que permite a patologistas forenses na Ucrânia usarem reconhecimento facial em soldados russos mortos e identificá-los pelas redes sociais e ligar para os seus pais.
Estamos vendo um potencial renascimento do Ocidente diante de regimes autoritários que todos pensavam que estavam em ascensão e em marcha. Talvez, a era do “homem forte” esteja acabando, e não apenas começando – e talvez o presidente Bolsonaro devesse tomar nota disso.