Guerra na Ucrânia: Solidariedade e espírito de luta marcam a resistência de Kiev aos russos


Voluntários ajudam civis com dificuldades a conseguir comida e outros se arriscam até mesmo no front contra os russos

Por Carlotta Gall

NEW YORK TIMES, KIEV- O centro histórico de Kiev, que normalmente fervilha com os turistas e as barracas de souvenir em torno de seus edifícios em tom pastel e igrejas abobadadas, está praticamente deserto esses dias. Comércios e escritórios estão fechados, e a cidade, sob toque de recolher a partir das 20h, jaz obscura e silente durante a noite.

Aproximadamente metade da população deixou Kiev ao longo das primeiras semanas da guerra, num êxodo caótico que bloqueou estradas e lotou a estação ferroviária central. Mas uma proporção igual da população permaneceu na cidade — estima-se que sejam dois milhões de habitantes. Alguns porque não tinham recursos para fugir, ou nenhum lugar para onde ir, mas outros ficaram movidos por um senso de patriotismo ou de um novo espírito de luta diante da invasão russa.

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No domingo de manhã, cidadãos ainda levavam cães para passear no parque próximo à Igreja de Santo André ou à beira do Rio Dnieper, mesmo enquanto retumbavam os ruídos dos pesados bombardeios que atingiam os subúrbios do norte da cidade.

Voluntários civis se apresentam para enfrentar os russos em Kiev  Foto: Ivor Prickett/The New York Times

Civis no esforço de guerra

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“Não quero fugir”, afirmou Galina Sizikova, de 48 anos, arquiteta que levava sua husky para passear nas proximidades da Catedral de Santa Sofia, no centro de Kiev. “Tenho muitas oportunidades de fazer algo para ajudar.” As filhas dela são crescidas e foram ficar com parentes em Viena, e Sizikova ficou com sua cadela, Avrora.

Ela passa o tempo costurando coletes à prova de balas para os voluntários que se alistaram para integrar as forças de defesa territorial. “Muitos amigos foram lutar”, afirmou ela. “Meu hobby é costurar, então pus minhas mãos à obra.”

As pessoas que permaneceram em seu bairro estabeleceram laços, afirmou ela. “Ficamos mais próximos”, disse. “Mesmo aqueles que não eram amigos entre si antes se aproximaram agora. Alguns cozinham para os outros.”

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Solidariedade em meio ao horror

A invasão uniu a população, forjando uma unidade que poucos haviam sentido antes, espalhando não apenas entusiasmo por voluntariar-se e solidarizar-se com os homens nas linhas de frente, mas também uma recusa teimosa em ser subjugado pelo invasor.

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“O povo ucraniano renasceu”, afirmou Oleg Sentsov, cineasta que já foi preso na Rússia por sua oposição à anexação da Península da Crimeia, em 2014. Sentsov afirmou que mandou a família para o oeste da Ucrânia e se juntou à defesa territorial no dia seguinte à invasão — e que já combateu nos subúrbios de Kiev.

“É claro que a guerra é terrível”, afirmou ele, “e muita gente está morrendo, mas há um sentimento de que nossa nação está nascendo e nossas conexões com a Rússia estão sendo cortadas.”

Um dia depois de um míssil explodir no jardim de seu edifício residencial no norte da cidade, um exército de voluntários foi às ruas com vassouras e acionou caminhões-caçamba para limpar os escombros.

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Morador de Kiev examina apartamento após bombardeio russo  Foto: Ivor Prickett/The New York Times

Idosos sofrem mais com as bombas

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Três voluntários ajudavam Viktor Cherniatevich, de 75 anos, a varrer vidros estilhaçados em seu apartamento, no quinto andar. Ele escapou por milagre, porque no momento que o míssil atingiu o local ele estava no corredor do apartamento, cuja fachada recebeu o impacto total da explosão. A varanda caiu, e todos os seus pertences foram danificados.

Ele enviou a filha e os netos para refugiar-se na Polônia nos primeiros dias da guerra, mas assim como muitos ucranianos da classe trabalhadora, ficou para proteger sua propriedade.

“Quem estaria aqui para desligar a água e o gás?”, afirmou Cherniatevich. Mesmo após o dano da explosão, ele disse que permaneceria no apartamento — e já havia conseguido lonas para cobrir as janelas estilhaçadas. “Eu trabalhei na construção civil, sei fazer essas coisas.”

Temos raízes aqui, somos casados há 38 anos. Temos de ajudar as pessoas”

Frida Maslovska, moradora de Kiev, sobre a decisão de ficar na cidade

Seus vizinhos afirmaram que também ficariam por lá. “Temos raízes em Kiev, somos casados há 38 anos”, afirmou Frida Maslovska, de 71 anos, diante da porta de sua casa, agasalhada com um cachecol e um gorro de lã. A explosão sacudiu as paredes como um terremoto, afirmou ela, mas seu marido não queria deixar o apartamento. “Ele diz que temos de ajudar as pessoas”, afirmou ela. Quando questionada pela reportagem a respeito do que ela queria, ela sorriu e respondeu, “Eu gostaria de poder viver aqui, no meu apartamento, no meu apartamento feio”.

Cherniatevich foi um dos únicos que se disseram preparados para encarar uma guerra longa e sombria.

“Quanto mais a guerra durar, mais os ucranianos vão perder, e mais os russos vão perder”, afirmou ele. “E então, chegaremos a uma solução e nos indagaremos, ‘Por que guerreamos?’.”

Pedidos por armas ao prefeito

Em outro local atacado por mísseis, onde bombeiros tiveram de retirar os moradores de um prédio em chamas, o prefeito de Kiev, Vitali Klitschko, afirmou que as pessoas tinham se recusado a se retirar e, em vez disso, pediram armas para lutar. Ex-boxeador campeão na categoria peso-pesado, Klitschko afirmou que os ataques aéreos russos estavam gerando mais raiva entre a população.

“Ninguém se sente seguro neste momento em toda a Ucrânia, não apenas na capital”, afirmou ele, “mas eu lhe digo: neste momento, as pessoas não querem fugir”. “E essas pessoas não querem apenas ficar em Kiev, elas estão prontas para defender nossa cidade.”

Há dias, voluntários e forças de segurança têm recrutado moradores dos subúrbios do norte de Kiev, que estão sob bombardeio, transportando-os para postos de controle nos limites da cidade, de onde os ônibus os levam, posteriormente, para abrigos noturnos.

Desgrenhados, aparentando choque no olhar, eles descreveram o angustiante suplício de viver dias sem água, eletricidade nem aquecimento, com estoques de alimentos diminuindo, enquanto morteiros e projéteis de artilharia explodiam cada vez mais perto.

“Deveríamos ter fugido nos primeiros dias”, afirmou Valentin Tkachenko, de 67 anos, que foi resgatado na quinta-feira com a mulher, seus filhos adolescentes e um vizinho.

“Ninguém achou que seria tão ruim. Disseram que demoraria um tempo até as tropas russas chegarem.”

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Centro comercial de Kiev foi atingido por bombardeios que deixaram pelo menos seis mortos. Autoridades ucranianas negaram o ultimato para entregar Mariupol.

Não deixar os bichos de estimação para trás

Ao lado dele, uma pensionista acenava positivamente com alegria, enquanto comia grossas fatias de pão que lhe haviam sido entregues por um voluntário. Outra mulher afirmou que não quis fugir porque não queria deixar para trás seu cachorro e seus 11 gatos. Por fim, ela acabou forçada a ir embora e abandonar os animais de estimação.

Muitos dos ucranianos resgatados de Irpin, Bucha e outros subúrbios devastados pela guerra nos dias recentes são idosos e enfermos, alguns quase incapazes de caminhar sem ajuda, o que indica que uma grande proporção daqueles que continuam na capital pode não ter meios ou capacidade de escapar. Pensionistas com frequência são vistos nas ruas, esperando em filas diante dos bancos para sacar suas pensões ou fazendo compras em mercados de alimentos.

Kiev não sofreu o mesmo tipo de destruição que outras cidades ucranianas — como Kharkiv, Mariupol, Chernihiv e Mikolaiv — e alguns moradores afirmaram estar confiantes porque consideram que a cidade possui boas defesas antiaéreas, mas os ataques russos têm se intensificado. Dois mísseis de cruzeiro pareceram furar o sistema de defesa, causando danos devastadores em dois distritos na semana passada, e outros projéteis foram interceptados, mas seus destroços e estilhaços mataram pessoas ao cair.

Voluntários limpam área bombardeada pela Rússia em Kiev Foto: Ivor Prickett/The New York Times

A Câmara Municipal de Kiev anunciou na semana passada que 228 pessoas morreram e mais 900 ficaram feridas na capital em três semanas de guerra. Quatro mortos eram crianças.

“Não estou fazendo graça com a situação, mas é exatamente como uma roleta russa”, afirmou Viacheslav Ostapenko, de 55 anos, que trabalha numa emissora de TV ucraniana, o Canal 5. Ele e sua companheira, Irina Popova, marionetista e escritora de livros infantis, estão entre os muitos profissionais de classe média que escolheram ficar em Kiev.

Ostapenko afirmou que seus pais e sua irmã, diretora de documentários, também continuam em Kiev, e isso foi uma das razões para ele ter ficado na cidade. Ostapenko e sua mulher passaram três semanas dormindo no corredor do apartamento, longe das janelas, assim evitaram ferimentos, mas o local não é mais seguro.

“Quero ficar na Ucrânia, mas a questão agora é: onde?”, afirmou ele. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

NEW YORK TIMES, KIEV- O centro histórico de Kiev, que normalmente fervilha com os turistas e as barracas de souvenir em torno de seus edifícios em tom pastel e igrejas abobadadas, está praticamente deserto esses dias. Comércios e escritórios estão fechados, e a cidade, sob toque de recolher a partir das 20h, jaz obscura e silente durante a noite.

Aproximadamente metade da população deixou Kiev ao longo das primeiras semanas da guerra, num êxodo caótico que bloqueou estradas e lotou a estação ferroviária central. Mas uma proporção igual da população permaneceu na cidade — estima-se que sejam dois milhões de habitantes. Alguns porque não tinham recursos para fugir, ou nenhum lugar para onde ir, mas outros ficaram movidos por um senso de patriotismo ou de um novo espírito de luta diante da invasão russa.

No domingo de manhã, cidadãos ainda levavam cães para passear no parque próximo à Igreja de Santo André ou à beira do Rio Dnieper, mesmo enquanto retumbavam os ruídos dos pesados bombardeios que atingiam os subúrbios do norte da cidade.

Voluntários civis se apresentam para enfrentar os russos em Kiev  Foto: Ivor Prickett/The New York Times

Civis no esforço de guerra

“Não quero fugir”, afirmou Galina Sizikova, de 48 anos, arquiteta que levava sua husky para passear nas proximidades da Catedral de Santa Sofia, no centro de Kiev. “Tenho muitas oportunidades de fazer algo para ajudar.” As filhas dela são crescidas e foram ficar com parentes em Viena, e Sizikova ficou com sua cadela, Avrora.

Ela passa o tempo costurando coletes à prova de balas para os voluntários que se alistaram para integrar as forças de defesa territorial. “Muitos amigos foram lutar”, afirmou ela. “Meu hobby é costurar, então pus minhas mãos à obra.”

As pessoas que permaneceram em seu bairro estabeleceram laços, afirmou ela. “Ficamos mais próximos”, disse. “Mesmo aqueles que não eram amigos entre si antes se aproximaram agora. Alguns cozinham para os outros.”

Solidariedade em meio ao horror

A invasão uniu a população, forjando uma unidade que poucos haviam sentido antes, espalhando não apenas entusiasmo por voluntariar-se e solidarizar-se com os homens nas linhas de frente, mas também uma recusa teimosa em ser subjugado pelo invasor.

“O povo ucraniano renasceu”, afirmou Oleg Sentsov, cineasta que já foi preso na Rússia por sua oposição à anexação da Península da Crimeia, em 2014. Sentsov afirmou que mandou a família para o oeste da Ucrânia e se juntou à defesa territorial no dia seguinte à invasão — e que já combateu nos subúrbios de Kiev.

“É claro que a guerra é terrível”, afirmou ele, “e muita gente está morrendo, mas há um sentimento de que nossa nação está nascendo e nossas conexões com a Rússia estão sendo cortadas.”

Um dia depois de um míssil explodir no jardim de seu edifício residencial no norte da cidade, um exército de voluntários foi às ruas com vassouras e acionou caminhões-caçamba para limpar os escombros.

Morador de Kiev examina apartamento após bombardeio russo  Foto: Ivor Prickett/The New York Times

Idosos sofrem mais com as bombas

Três voluntários ajudavam Viktor Cherniatevich, de 75 anos, a varrer vidros estilhaçados em seu apartamento, no quinto andar. Ele escapou por milagre, porque no momento que o míssil atingiu o local ele estava no corredor do apartamento, cuja fachada recebeu o impacto total da explosão. A varanda caiu, e todos os seus pertences foram danificados.

Ele enviou a filha e os netos para refugiar-se na Polônia nos primeiros dias da guerra, mas assim como muitos ucranianos da classe trabalhadora, ficou para proteger sua propriedade.

“Quem estaria aqui para desligar a água e o gás?”, afirmou Cherniatevich. Mesmo após o dano da explosão, ele disse que permaneceria no apartamento — e já havia conseguido lonas para cobrir as janelas estilhaçadas. “Eu trabalhei na construção civil, sei fazer essas coisas.”

Temos raízes aqui, somos casados há 38 anos. Temos de ajudar as pessoas”

Frida Maslovska, moradora de Kiev, sobre a decisão de ficar na cidade

Seus vizinhos afirmaram que também ficariam por lá. “Temos raízes em Kiev, somos casados há 38 anos”, afirmou Frida Maslovska, de 71 anos, diante da porta de sua casa, agasalhada com um cachecol e um gorro de lã. A explosão sacudiu as paredes como um terremoto, afirmou ela, mas seu marido não queria deixar o apartamento. “Ele diz que temos de ajudar as pessoas”, afirmou ela. Quando questionada pela reportagem a respeito do que ela queria, ela sorriu e respondeu, “Eu gostaria de poder viver aqui, no meu apartamento, no meu apartamento feio”.

Cherniatevich foi um dos únicos que se disseram preparados para encarar uma guerra longa e sombria.

“Quanto mais a guerra durar, mais os ucranianos vão perder, e mais os russos vão perder”, afirmou ele. “E então, chegaremos a uma solução e nos indagaremos, ‘Por que guerreamos?’.”

Pedidos por armas ao prefeito

Em outro local atacado por mísseis, onde bombeiros tiveram de retirar os moradores de um prédio em chamas, o prefeito de Kiev, Vitali Klitschko, afirmou que as pessoas tinham se recusado a se retirar e, em vez disso, pediram armas para lutar. Ex-boxeador campeão na categoria peso-pesado, Klitschko afirmou que os ataques aéreos russos estavam gerando mais raiva entre a população.

“Ninguém se sente seguro neste momento em toda a Ucrânia, não apenas na capital”, afirmou ele, “mas eu lhe digo: neste momento, as pessoas não querem fugir”. “E essas pessoas não querem apenas ficar em Kiev, elas estão prontas para defender nossa cidade.”

Há dias, voluntários e forças de segurança têm recrutado moradores dos subúrbios do norte de Kiev, que estão sob bombardeio, transportando-os para postos de controle nos limites da cidade, de onde os ônibus os levam, posteriormente, para abrigos noturnos.

Desgrenhados, aparentando choque no olhar, eles descreveram o angustiante suplício de viver dias sem água, eletricidade nem aquecimento, com estoques de alimentos diminuindo, enquanto morteiros e projéteis de artilharia explodiam cada vez mais perto.

“Deveríamos ter fugido nos primeiros dias”, afirmou Valentin Tkachenko, de 67 anos, que foi resgatado na quinta-feira com a mulher, seus filhos adolescentes e um vizinho.

“Ninguém achou que seria tão ruim. Disseram que demoraria um tempo até as tropas russas chegarem.”

Seu navegador não suporta esse video.

Centro comercial de Kiev foi atingido por bombardeios que deixaram pelo menos seis mortos. Autoridades ucranianas negaram o ultimato para entregar Mariupol.

Não deixar os bichos de estimação para trás

Ao lado dele, uma pensionista acenava positivamente com alegria, enquanto comia grossas fatias de pão que lhe haviam sido entregues por um voluntário. Outra mulher afirmou que não quis fugir porque não queria deixar para trás seu cachorro e seus 11 gatos. Por fim, ela acabou forçada a ir embora e abandonar os animais de estimação.

Muitos dos ucranianos resgatados de Irpin, Bucha e outros subúrbios devastados pela guerra nos dias recentes são idosos e enfermos, alguns quase incapazes de caminhar sem ajuda, o que indica que uma grande proporção daqueles que continuam na capital pode não ter meios ou capacidade de escapar. Pensionistas com frequência são vistos nas ruas, esperando em filas diante dos bancos para sacar suas pensões ou fazendo compras em mercados de alimentos.

Kiev não sofreu o mesmo tipo de destruição que outras cidades ucranianas — como Kharkiv, Mariupol, Chernihiv e Mikolaiv — e alguns moradores afirmaram estar confiantes porque consideram que a cidade possui boas defesas antiaéreas, mas os ataques russos têm se intensificado. Dois mísseis de cruzeiro pareceram furar o sistema de defesa, causando danos devastadores em dois distritos na semana passada, e outros projéteis foram interceptados, mas seus destroços e estilhaços mataram pessoas ao cair.

Voluntários limpam área bombardeada pela Rússia em Kiev Foto: Ivor Prickett/The New York Times

A Câmara Municipal de Kiev anunciou na semana passada que 228 pessoas morreram e mais 900 ficaram feridas na capital em três semanas de guerra. Quatro mortos eram crianças.

“Não estou fazendo graça com a situação, mas é exatamente como uma roleta russa”, afirmou Viacheslav Ostapenko, de 55 anos, que trabalha numa emissora de TV ucraniana, o Canal 5. Ele e sua companheira, Irina Popova, marionetista e escritora de livros infantis, estão entre os muitos profissionais de classe média que escolheram ficar em Kiev.

Ostapenko afirmou que seus pais e sua irmã, diretora de documentários, também continuam em Kiev, e isso foi uma das razões para ele ter ficado na cidade. Ostapenko e sua mulher passaram três semanas dormindo no corredor do apartamento, longe das janelas, assim evitaram ferimentos, mas o local não é mais seguro.

“Quero ficar na Ucrânia, mas a questão agora é: onde?”, afirmou ele. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

NEW YORK TIMES, KIEV- O centro histórico de Kiev, que normalmente fervilha com os turistas e as barracas de souvenir em torno de seus edifícios em tom pastel e igrejas abobadadas, está praticamente deserto esses dias. Comércios e escritórios estão fechados, e a cidade, sob toque de recolher a partir das 20h, jaz obscura e silente durante a noite.

Aproximadamente metade da população deixou Kiev ao longo das primeiras semanas da guerra, num êxodo caótico que bloqueou estradas e lotou a estação ferroviária central. Mas uma proporção igual da população permaneceu na cidade — estima-se que sejam dois milhões de habitantes. Alguns porque não tinham recursos para fugir, ou nenhum lugar para onde ir, mas outros ficaram movidos por um senso de patriotismo ou de um novo espírito de luta diante da invasão russa.

No domingo de manhã, cidadãos ainda levavam cães para passear no parque próximo à Igreja de Santo André ou à beira do Rio Dnieper, mesmo enquanto retumbavam os ruídos dos pesados bombardeios que atingiam os subúrbios do norte da cidade.

Voluntários civis se apresentam para enfrentar os russos em Kiev  Foto: Ivor Prickett/The New York Times

Civis no esforço de guerra

“Não quero fugir”, afirmou Galina Sizikova, de 48 anos, arquiteta que levava sua husky para passear nas proximidades da Catedral de Santa Sofia, no centro de Kiev. “Tenho muitas oportunidades de fazer algo para ajudar.” As filhas dela são crescidas e foram ficar com parentes em Viena, e Sizikova ficou com sua cadela, Avrora.

Ela passa o tempo costurando coletes à prova de balas para os voluntários que se alistaram para integrar as forças de defesa territorial. “Muitos amigos foram lutar”, afirmou ela. “Meu hobby é costurar, então pus minhas mãos à obra.”

As pessoas que permaneceram em seu bairro estabeleceram laços, afirmou ela. “Ficamos mais próximos”, disse. “Mesmo aqueles que não eram amigos entre si antes se aproximaram agora. Alguns cozinham para os outros.”

Solidariedade em meio ao horror

A invasão uniu a população, forjando uma unidade que poucos haviam sentido antes, espalhando não apenas entusiasmo por voluntariar-se e solidarizar-se com os homens nas linhas de frente, mas também uma recusa teimosa em ser subjugado pelo invasor.

“O povo ucraniano renasceu”, afirmou Oleg Sentsov, cineasta que já foi preso na Rússia por sua oposição à anexação da Península da Crimeia, em 2014. Sentsov afirmou que mandou a família para o oeste da Ucrânia e se juntou à defesa territorial no dia seguinte à invasão — e que já combateu nos subúrbios de Kiev.

“É claro que a guerra é terrível”, afirmou ele, “e muita gente está morrendo, mas há um sentimento de que nossa nação está nascendo e nossas conexões com a Rússia estão sendo cortadas.”

Um dia depois de um míssil explodir no jardim de seu edifício residencial no norte da cidade, um exército de voluntários foi às ruas com vassouras e acionou caminhões-caçamba para limpar os escombros.

Morador de Kiev examina apartamento após bombardeio russo  Foto: Ivor Prickett/The New York Times

Idosos sofrem mais com as bombas

Três voluntários ajudavam Viktor Cherniatevich, de 75 anos, a varrer vidros estilhaçados em seu apartamento, no quinto andar. Ele escapou por milagre, porque no momento que o míssil atingiu o local ele estava no corredor do apartamento, cuja fachada recebeu o impacto total da explosão. A varanda caiu, e todos os seus pertences foram danificados.

Ele enviou a filha e os netos para refugiar-se na Polônia nos primeiros dias da guerra, mas assim como muitos ucranianos da classe trabalhadora, ficou para proteger sua propriedade.

“Quem estaria aqui para desligar a água e o gás?”, afirmou Cherniatevich. Mesmo após o dano da explosão, ele disse que permaneceria no apartamento — e já havia conseguido lonas para cobrir as janelas estilhaçadas. “Eu trabalhei na construção civil, sei fazer essas coisas.”

Temos raízes aqui, somos casados há 38 anos. Temos de ajudar as pessoas”

Frida Maslovska, moradora de Kiev, sobre a decisão de ficar na cidade

Seus vizinhos afirmaram que também ficariam por lá. “Temos raízes em Kiev, somos casados há 38 anos”, afirmou Frida Maslovska, de 71 anos, diante da porta de sua casa, agasalhada com um cachecol e um gorro de lã. A explosão sacudiu as paredes como um terremoto, afirmou ela, mas seu marido não queria deixar o apartamento. “Ele diz que temos de ajudar as pessoas”, afirmou ela. Quando questionada pela reportagem a respeito do que ela queria, ela sorriu e respondeu, “Eu gostaria de poder viver aqui, no meu apartamento, no meu apartamento feio”.

Cherniatevich foi um dos únicos que se disseram preparados para encarar uma guerra longa e sombria.

“Quanto mais a guerra durar, mais os ucranianos vão perder, e mais os russos vão perder”, afirmou ele. “E então, chegaremos a uma solução e nos indagaremos, ‘Por que guerreamos?’.”

Pedidos por armas ao prefeito

Em outro local atacado por mísseis, onde bombeiros tiveram de retirar os moradores de um prédio em chamas, o prefeito de Kiev, Vitali Klitschko, afirmou que as pessoas tinham se recusado a se retirar e, em vez disso, pediram armas para lutar. Ex-boxeador campeão na categoria peso-pesado, Klitschko afirmou que os ataques aéreos russos estavam gerando mais raiva entre a população.

“Ninguém se sente seguro neste momento em toda a Ucrânia, não apenas na capital”, afirmou ele, “mas eu lhe digo: neste momento, as pessoas não querem fugir”. “E essas pessoas não querem apenas ficar em Kiev, elas estão prontas para defender nossa cidade.”

Há dias, voluntários e forças de segurança têm recrutado moradores dos subúrbios do norte de Kiev, que estão sob bombardeio, transportando-os para postos de controle nos limites da cidade, de onde os ônibus os levam, posteriormente, para abrigos noturnos.

Desgrenhados, aparentando choque no olhar, eles descreveram o angustiante suplício de viver dias sem água, eletricidade nem aquecimento, com estoques de alimentos diminuindo, enquanto morteiros e projéteis de artilharia explodiam cada vez mais perto.

“Deveríamos ter fugido nos primeiros dias”, afirmou Valentin Tkachenko, de 67 anos, que foi resgatado na quinta-feira com a mulher, seus filhos adolescentes e um vizinho.

“Ninguém achou que seria tão ruim. Disseram que demoraria um tempo até as tropas russas chegarem.”

Seu navegador não suporta esse video.

Centro comercial de Kiev foi atingido por bombardeios que deixaram pelo menos seis mortos. Autoridades ucranianas negaram o ultimato para entregar Mariupol.

Não deixar os bichos de estimação para trás

Ao lado dele, uma pensionista acenava positivamente com alegria, enquanto comia grossas fatias de pão que lhe haviam sido entregues por um voluntário. Outra mulher afirmou que não quis fugir porque não queria deixar para trás seu cachorro e seus 11 gatos. Por fim, ela acabou forçada a ir embora e abandonar os animais de estimação.

Muitos dos ucranianos resgatados de Irpin, Bucha e outros subúrbios devastados pela guerra nos dias recentes são idosos e enfermos, alguns quase incapazes de caminhar sem ajuda, o que indica que uma grande proporção daqueles que continuam na capital pode não ter meios ou capacidade de escapar. Pensionistas com frequência são vistos nas ruas, esperando em filas diante dos bancos para sacar suas pensões ou fazendo compras em mercados de alimentos.

Kiev não sofreu o mesmo tipo de destruição que outras cidades ucranianas — como Kharkiv, Mariupol, Chernihiv e Mikolaiv — e alguns moradores afirmaram estar confiantes porque consideram que a cidade possui boas defesas antiaéreas, mas os ataques russos têm se intensificado. Dois mísseis de cruzeiro pareceram furar o sistema de defesa, causando danos devastadores em dois distritos na semana passada, e outros projéteis foram interceptados, mas seus destroços e estilhaços mataram pessoas ao cair.

Voluntários limpam área bombardeada pela Rússia em Kiev Foto: Ivor Prickett/The New York Times

A Câmara Municipal de Kiev anunciou na semana passada que 228 pessoas morreram e mais 900 ficaram feridas na capital em três semanas de guerra. Quatro mortos eram crianças.

“Não estou fazendo graça com a situação, mas é exatamente como uma roleta russa”, afirmou Viacheslav Ostapenko, de 55 anos, que trabalha numa emissora de TV ucraniana, o Canal 5. Ele e sua companheira, Irina Popova, marionetista e escritora de livros infantis, estão entre os muitos profissionais de classe média que escolheram ficar em Kiev.

Ostapenko afirmou que seus pais e sua irmã, diretora de documentários, também continuam em Kiev, e isso foi uma das razões para ele ter ficado na cidade. Ostapenko e sua mulher passaram três semanas dormindo no corredor do apartamento, longe das janelas, assim evitaram ferimentos, mas o local não é mais seguro.

“Quero ficar na Ucrânia, mas a questão agora é: onde?”, afirmou ele. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

NEW YORK TIMES, KIEV- O centro histórico de Kiev, que normalmente fervilha com os turistas e as barracas de souvenir em torno de seus edifícios em tom pastel e igrejas abobadadas, está praticamente deserto esses dias. Comércios e escritórios estão fechados, e a cidade, sob toque de recolher a partir das 20h, jaz obscura e silente durante a noite.

Aproximadamente metade da população deixou Kiev ao longo das primeiras semanas da guerra, num êxodo caótico que bloqueou estradas e lotou a estação ferroviária central. Mas uma proporção igual da população permaneceu na cidade — estima-se que sejam dois milhões de habitantes. Alguns porque não tinham recursos para fugir, ou nenhum lugar para onde ir, mas outros ficaram movidos por um senso de patriotismo ou de um novo espírito de luta diante da invasão russa.

No domingo de manhã, cidadãos ainda levavam cães para passear no parque próximo à Igreja de Santo André ou à beira do Rio Dnieper, mesmo enquanto retumbavam os ruídos dos pesados bombardeios que atingiam os subúrbios do norte da cidade.

Voluntários civis se apresentam para enfrentar os russos em Kiev  Foto: Ivor Prickett/The New York Times

Civis no esforço de guerra

“Não quero fugir”, afirmou Galina Sizikova, de 48 anos, arquiteta que levava sua husky para passear nas proximidades da Catedral de Santa Sofia, no centro de Kiev. “Tenho muitas oportunidades de fazer algo para ajudar.” As filhas dela são crescidas e foram ficar com parentes em Viena, e Sizikova ficou com sua cadela, Avrora.

Ela passa o tempo costurando coletes à prova de balas para os voluntários que se alistaram para integrar as forças de defesa territorial. “Muitos amigos foram lutar”, afirmou ela. “Meu hobby é costurar, então pus minhas mãos à obra.”

As pessoas que permaneceram em seu bairro estabeleceram laços, afirmou ela. “Ficamos mais próximos”, disse. “Mesmo aqueles que não eram amigos entre si antes se aproximaram agora. Alguns cozinham para os outros.”

Solidariedade em meio ao horror

A invasão uniu a população, forjando uma unidade que poucos haviam sentido antes, espalhando não apenas entusiasmo por voluntariar-se e solidarizar-se com os homens nas linhas de frente, mas também uma recusa teimosa em ser subjugado pelo invasor.

“O povo ucraniano renasceu”, afirmou Oleg Sentsov, cineasta que já foi preso na Rússia por sua oposição à anexação da Península da Crimeia, em 2014. Sentsov afirmou que mandou a família para o oeste da Ucrânia e se juntou à defesa territorial no dia seguinte à invasão — e que já combateu nos subúrbios de Kiev.

“É claro que a guerra é terrível”, afirmou ele, “e muita gente está morrendo, mas há um sentimento de que nossa nação está nascendo e nossas conexões com a Rússia estão sendo cortadas.”

Um dia depois de um míssil explodir no jardim de seu edifício residencial no norte da cidade, um exército de voluntários foi às ruas com vassouras e acionou caminhões-caçamba para limpar os escombros.

Morador de Kiev examina apartamento após bombardeio russo  Foto: Ivor Prickett/The New York Times

Idosos sofrem mais com as bombas

Três voluntários ajudavam Viktor Cherniatevich, de 75 anos, a varrer vidros estilhaçados em seu apartamento, no quinto andar. Ele escapou por milagre, porque no momento que o míssil atingiu o local ele estava no corredor do apartamento, cuja fachada recebeu o impacto total da explosão. A varanda caiu, e todos os seus pertences foram danificados.

Ele enviou a filha e os netos para refugiar-se na Polônia nos primeiros dias da guerra, mas assim como muitos ucranianos da classe trabalhadora, ficou para proteger sua propriedade.

“Quem estaria aqui para desligar a água e o gás?”, afirmou Cherniatevich. Mesmo após o dano da explosão, ele disse que permaneceria no apartamento — e já havia conseguido lonas para cobrir as janelas estilhaçadas. “Eu trabalhei na construção civil, sei fazer essas coisas.”

Temos raízes aqui, somos casados há 38 anos. Temos de ajudar as pessoas”

Frida Maslovska, moradora de Kiev, sobre a decisão de ficar na cidade

Seus vizinhos afirmaram que também ficariam por lá. “Temos raízes em Kiev, somos casados há 38 anos”, afirmou Frida Maslovska, de 71 anos, diante da porta de sua casa, agasalhada com um cachecol e um gorro de lã. A explosão sacudiu as paredes como um terremoto, afirmou ela, mas seu marido não queria deixar o apartamento. “Ele diz que temos de ajudar as pessoas”, afirmou ela. Quando questionada pela reportagem a respeito do que ela queria, ela sorriu e respondeu, “Eu gostaria de poder viver aqui, no meu apartamento, no meu apartamento feio”.

Cherniatevich foi um dos únicos que se disseram preparados para encarar uma guerra longa e sombria.

“Quanto mais a guerra durar, mais os ucranianos vão perder, e mais os russos vão perder”, afirmou ele. “E então, chegaremos a uma solução e nos indagaremos, ‘Por que guerreamos?’.”

Pedidos por armas ao prefeito

Em outro local atacado por mísseis, onde bombeiros tiveram de retirar os moradores de um prédio em chamas, o prefeito de Kiev, Vitali Klitschko, afirmou que as pessoas tinham se recusado a se retirar e, em vez disso, pediram armas para lutar. Ex-boxeador campeão na categoria peso-pesado, Klitschko afirmou que os ataques aéreos russos estavam gerando mais raiva entre a população.

“Ninguém se sente seguro neste momento em toda a Ucrânia, não apenas na capital”, afirmou ele, “mas eu lhe digo: neste momento, as pessoas não querem fugir”. “E essas pessoas não querem apenas ficar em Kiev, elas estão prontas para defender nossa cidade.”

Há dias, voluntários e forças de segurança têm recrutado moradores dos subúrbios do norte de Kiev, que estão sob bombardeio, transportando-os para postos de controle nos limites da cidade, de onde os ônibus os levam, posteriormente, para abrigos noturnos.

Desgrenhados, aparentando choque no olhar, eles descreveram o angustiante suplício de viver dias sem água, eletricidade nem aquecimento, com estoques de alimentos diminuindo, enquanto morteiros e projéteis de artilharia explodiam cada vez mais perto.

“Deveríamos ter fugido nos primeiros dias”, afirmou Valentin Tkachenko, de 67 anos, que foi resgatado na quinta-feira com a mulher, seus filhos adolescentes e um vizinho.

“Ninguém achou que seria tão ruim. Disseram que demoraria um tempo até as tropas russas chegarem.”

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Centro comercial de Kiev foi atingido por bombardeios que deixaram pelo menos seis mortos. Autoridades ucranianas negaram o ultimato para entregar Mariupol.

Não deixar os bichos de estimação para trás

Ao lado dele, uma pensionista acenava positivamente com alegria, enquanto comia grossas fatias de pão que lhe haviam sido entregues por um voluntário. Outra mulher afirmou que não quis fugir porque não queria deixar para trás seu cachorro e seus 11 gatos. Por fim, ela acabou forçada a ir embora e abandonar os animais de estimação.

Muitos dos ucranianos resgatados de Irpin, Bucha e outros subúrbios devastados pela guerra nos dias recentes são idosos e enfermos, alguns quase incapazes de caminhar sem ajuda, o que indica que uma grande proporção daqueles que continuam na capital pode não ter meios ou capacidade de escapar. Pensionistas com frequência são vistos nas ruas, esperando em filas diante dos bancos para sacar suas pensões ou fazendo compras em mercados de alimentos.

Kiev não sofreu o mesmo tipo de destruição que outras cidades ucranianas — como Kharkiv, Mariupol, Chernihiv e Mikolaiv — e alguns moradores afirmaram estar confiantes porque consideram que a cidade possui boas defesas antiaéreas, mas os ataques russos têm se intensificado. Dois mísseis de cruzeiro pareceram furar o sistema de defesa, causando danos devastadores em dois distritos na semana passada, e outros projéteis foram interceptados, mas seus destroços e estilhaços mataram pessoas ao cair.

Voluntários limpam área bombardeada pela Rússia em Kiev Foto: Ivor Prickett/The New York Times

A Câmara Municipal de Kiev anunciou na semana passada que 228 pessoas morreram e mais 900 ficaram feridas na capital em três semanas de guerra. Quatro mortos eram crianças.

“Não estou fazendo graça com a situação, mas é exatamente como uma roleta russa”, afirmou Viacheslav Ostapenko, de 55 anos, que trabalha numa emissora de TV ucraniana, o Canal 5. Ele e sua companheira, Irina Popova, marionetista e escritora de livros infantis, estão entre os muitos profissionais de classe média que escolheram ficar em Kiev.

Ostapenko afirmou que seus pais e sua irmã, diretora de documentários, também continuam em Kiev, e isso foi uma das razões para ele ter ficado na cidade. Ostapenko e sua mulher passaram três semanas dormindo no corredor do apartamento, longe das janelas, assim evitaram ferimentos, mas o local não é mais seguro.

“Quero ficar na Ucrânia, mas a questão agora é: onde?”, afirmou ele. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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