A guerra na Ucrânia está prestes a completar dois anos, com as linhas de combate praticamente inalteradas desde que os ucranianos retomaram partes do leste e do sul do país no fim de 2022. A Rússia controla cerca de 20% do país vizinho e, apesar de alguns avanços pontuais, a contraofensiva ucraniana falhou em retomar território. O atual estágio do confronto comprova uma antiga teoria militar: em guerras, a defesa é mais fácil que o ataque.
Sem os ganhos esperados, Kiev enfrenta ainda o ceticismo entre aliados de primeira hora, como os Estados Unidos. Em Washington, o Partido Republicano resiste em continuar financiando a guerra. O pacote adicional de US$ 60 bilhões está travado pelo Congresso e, diante do impasse, o presidente Joe Biden parece ter mudado de tom. Ele, que sempre prometeu apoiar enquanto fosse preciso, disse este mês, ao lado do ucraniano Volodmir Zelenski, que ajudará enquanto puder.
Veja a seguir perguntas e respostas sobre o estágio atual da guerra e o futuro do conflito
O que aconteceu com a contraofensiva da Ucrânia?
Depois de muito alarde, a Ucrânia lançou em junho a contraofensiva, que tinha o objetivo de retomar terreno ocupado pelos russos. Mas se deparou com uma linha defensiva, que vinha sendo fortificada desde que Moscou falhou em tomar Kiev, ainda no começo da guerra, e passou a focar no Leste.
“Um gigantesco problema para Ucrânia foi tentar fazer a ofensiva em um terreno fortemente preparado pelos russos e sem uma força aérea capaz de dar a cobertura necessária”, avalia o especialista em segurança e professor de Relações Internacionais da ESPM, Gunther Rudzit.
Essa preparação russa inclui campos cheios de minas para deter os tanques fornecidos pelo Ocidente atrelado ao uso extensivo de drones, muitos deles fornecidos pelo Irã. Com isso, o uso dos blindados que a Ucrânia recebeu após muita resistência dos aliados da Otan ficou limitado e o que se viu foram intensas batalhas corpo a corpo, aos moldes da 1ª Guerra.
“Os ucranianos conseguiram avançar, mas muito perto do que se esperava”, afirma Rudzit. O fracasso fica ainda mais evidente se comparado com os avanços do ano anterior, quando a Ucrânia retomou o controle sobre regiões importantes como Kharkiv e Kherson. “A expectativa era muito grande, mas a realidade no campo de batalha foi outra”, conclui o analista.
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Essa realidade do campo de batalha é que a Rússia tem conseguido manter o seu poder de fogo, resultado do investimento na indústria bélica nacional e das alianças Irã e Coreia do Norte. A Ucrânia, por sua vez, sofre com os gargalos de produção no Ocidente, e o fluxo insuficiente de munições.
Qual será o próximo passo da Ucrânia?
Com o fracasso da contraofensiva, Ucrânia e Estados Unidos agora discutem a estratégia para o ano que vem. De um lado, Kiev quer manter o ataque. Do outro, Washington pressiona por uma abordagem mais conservadora, com o foco na defesa dos territórios que estão sob controle ucraniano e na reconstrução da sua capacidade de produzir armas.
Os detalhes devem ser decididos no início de 2024, em reuniões na Alemanha, mas o teor da discussão expõe as dificuldades que a Ucrânia enfrenta no meio de uma guerra prolongada.
Qual o nível de apoio a Kiev?
Os Estados Unidos já enviaram ao país US$ 111 bilhões em ajuda militar e econômica. Se depender dos republicanos, no entanto, essa fonte pode secar. Isso porque, dentro do partido, há quem acredite que os EUA já gastaram demais com a guerra e também aqueles que querem ver a nova estratégia, antes de liberar mais dinheiro.
Diante do impasse, o pacote de US$ 61 bilhões para Ucrânia segue travado no Congresso e, sem ele, a Casa Branca fica limitada. Foi o que se viu este mês, quando Zelenski foi a Washington em um esforço para liberar o repasse, mas voltou para casa apenas com uma ajuda de US$ 200 milhões. Dinheiro que já havia sido aprovado antes.
Para o analista, essa resistência parece ser impulsionada por certa desconfiança no Ocidente sobre como os ucranianos têm lidado com esse estoque de armas que recebeu desde o início da guerra. A exemplo disso, o presidente da Câmara dos Deputados, o republicano Mike Johnson, disse que o seu ceticismo não mudou com a visita de Zelenski e defendeu mais supervisão sobre os gastos da Ucrânia.
Alimenta a desconfiança o escândalo de corrupção que atingiu Kiev no meio da guerra. O ex-ministro da Defesa, Oleksii Reznikov, foi substituído em setembro, depois de muita pressão interna motivada pelo atraso de milhões de dólares em armas e denúncias de irregularidades nas compras do Exército.
Mesmo antes dos Estados Unidos, aliados europeus já expressaram cerco incômodo com a incessante cobrança por mais armas. Em julho, durante a Cúpula da Otan em Vilna, Lituânia, o então ministro da Defesa do Reino Unido cobrou “gratidão” da Ucrânia, ao rebater as críticas de Zelenski à aliança militar: “não somos a Amazon das armas”, disse o britânico.
Embora os Estados Unidos e Europa mantenham a defesa a Kiev, a guerra prolongada causa certa fadiga, que diminui a capacidade de apoio do lado ocidental, como esperava Vladimir Putin.
“Putin apostou que os ucranianos não iriam resistir e errou. Apostou que os europeus não estavam dispostos a enfrentar a guerra, que eles eram fracos e que seriam divididos pelo conflito. Errou de novo. A Europa está mais unida que antes, por exemplo, Finlândia e Suécia entraram na Otan”, lembra Rudzit em referência ao fim da neutralidade histórica dos nórdicos. “Se nessas apostas ele errou, agora, parece que está acertando (que os aliados se cansariam da guerra)”.
Como a eleição nos EUA impacta na guerra?
Os Estados Unidos sabem disso. Em outubro, a inteligência americana alertou que Moscou usaria campanhas de desinformação e espionagem para erodir o apoio do Ocidente à Ucrânia. E o discurso de Biden reflete essa preocupação: “Nós não podemos deixar Putin vencer”, alertou ao cobrar a liberação da ajuda no Congresso.
Ele mesmo, no entanto, deve estar mais focado na eleição americana em 2024, com a perspectiva de disputa acirrada contra Trump e o apoio à Ucrânia já não é tão popular. Quase metade (48%) dos americanos afirmaram que os EUA gastam muito com Kiev. Em comparação, 27% acreditam que a quantia é certa e só 11% veem a ajuda como insuficiente, mostrou uma pesquisa do Finantial Times este mês. A percepção de gasto elevado ocorre principalmente entre os republicanos (65%), mas não só: 52% dos independentes e 32% dos democratas compartilham da mesma visão.
Uma eventual vitória de Donald Trump tende a complicar ainda mais a vida dos ucranianos. Ele já indicou que, se eleito, deve reduzir drasticamente o financiamento da guerra e recusou o convite de Zelenski para ver “por si mesmo” os efeitos da invasão russa.
Qual a situação de Vladimir Putin?
Enquanto isso, Vladimir Putin confirmou que vai disputar mais um mandato de seis anos em 2024 e ninguém duvida que ele será eleito no país onde as disputas têm sido marcadas pela ausência dos opositores. O mais proeminente deles, Alexei Navalni, cumpre penas que somam 30 anos em julgamentos que ele e os seus apoiadores denunciam como perseguição política.
Mesmo com os custos da guerra e a elevada estimativa de baixas do lado russo (perda de 90% dos soldados, segundo a inteligência americana), Gunther Rudzit destaca que Putin fez prevalecer a narrativa de que a guerra seria uma questão existencial para a Rússia. “Quem não concordava com isso está preso ou fugiu da Rússia”, destaca. “Não há dúvida de que ele será eleito. A questão é qual a porcentagem ele vai querer mostrar para que a eleição pareça livre”, conclui.
Há perspectiva de paz? Quem poderia construir uma negociação?
Para o analista, a redução do apoio pode forçar a Ucrânia ao que seria o pior dos cenários para Kiev: voltar a negociar com a Rússia sem ter melhorado a sua posição com a retomada de territórios ocupados. “Infelizmente, o cenário de a Ucrânia ter que negociar com a Rússia sem ter uma posição de vantagem, parece que está se consolidando”, afirma.
Ele argumenta que o país deve perder a capacidade de lançar novas ofensivas se a ajuda americana secar de fato e lembra que a fadiga da guerra não atinge só os aliados, mas também dá sinais na própria Ucrânia.
Nesse cenário hipotético, a China poderia surgir como mediador. Pequim é um parceiro confiável para Moscou (e necessário para contornar as sanções do Ocidente), ao mesmo tempo, tem aberto canais de diálogo com os Estados Unidos.