WASHINGTON - Este é um guia para quem deseja entender o motivo de nos últimos dias a Venezuela ter ocupado as manchetes de todo o mundo - assim como a reação de governos como Estados Unidos e Brasil, entre muitos outros -, e o porque os observadores e especialistas em política externa acompanham com preocupação a mais recente crise política no país latino-americano.
- Por que a Venezuela voltou aos noticiários?
Há três razões principais, todas relacionadas a crise política em andamento no país há anos.
Primeiro, houve protestos em todo o país contra o governo na quarta-feira. Foram as primeiras manifestações em larga escala desde que o presidente Nicolás Maduro reagiu à última onda de manifestações, em 2017, com uma repressão que deixou mais de 150 mortos.
Em segundo lugar, Juan Guaidó, um parlamentar da oposição, declarou o atual governo ilegítimo e se declarou presidente interino. Por si só, essa medida não pode forçar qualquer mudança real, mas ela aumentou a especulação de que os militares poderiam forçar a saída de Maduro.
Terceiro, Estados Unidos, Brasil e vários outros governos anunciaram que consideram Guaidó o líder legítimo da Venezuela.
- Por que a Venezuela está em crise?
De forma direta: o governo venezuelano supervisionou a destruição de sua democracia e sua economia. Agora, a indignação pública chegou ao seu auge.
A Venezuela já foi o país mais rico da América Latina e uma das democracias mais longevas da região. Hoje, é praticamente um Estado falido. A inflação galopante jogou a maior parte do país na pobreza. A escassez de alimentos e medicamentos é generalizada. A ordem pública está em colapso e a criminalidade aumentou. Mais de três milhões de pessoas fugiram do país, muitos como refugiados.
Além disso, no últimos anos o governo consolidou agressivamente o poder e minou as instituições democráticas, deixando os venezuelanos sem caminhos significativos para desafiar ou mudar sua liderança. Muitos estão tomando as ruas para tentar forçar a mudança.
- Por que as coisas chegaram ao estado atual?
O que motivou a onda recente de protestos e suas consequências foi o fato de o presidente Nicolás Maduro assumiu o segundo mandato neste mês. Ele foi reeleito em maio em uma votação amplamente criticada pelo opositores na Venezuela e considerada fraudulenta por muitos observadores.
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O líder opositor Juan Guaidó, autoproclamado presidente interino da Venezuela, não descarta uma eventual anistia ao presidente Nicolás Maduro, apesar de considerá-lo responsável pelas vítimas nos protestos.
Desde essa votação, líderes da oposição e governos estrangeiros, incluindo muitos na América Latina, qualificaram a liderança de Maduro de ilegítima. Os manifestantes foram às ruas após a posse do chavista para enviar a mesma mensagem, na esperança de pressioná-lo a renunciar.
Mas em muitos aspectos, este é apenas o mais recente passo em uma crise que vem se agravando há anos.
- Como as coisas ficaram tão ruins?
Para entender a Venezuela de hoje é preciso olhar para os anos 90, mais especificamente em 1992, quando o tenente-coronel Hugo Chávez liderou um fracassado golpe de Estado contra o governo de Carlos Andrés Pérez.
Depois de dois anos preso, Chávez foi anistiado e viu na política outro caminho para chegar ao poder. Ele foi eleito presidente em 1998 e assumiu o mandato no ano seguinte.
Inicialmente, o líder esquerdista implementou mudanças populares para combater a corrupção e a pobreza. Ao entender que os ambientes políticos e comerciais do país estavam impregnados pelo clientelismo e pela corrupção, assinou uma série de decretos que ampliaram seus poderes.
As coisas começaram a mudar em 2002, quando dificuldades econômicas resultaram nos primeiros protestos contra o governo e a confrontos violentos que deixaram vários mortos.
Em 11 de abril, em um golpe de Estado fracassado que durou 47 horas, Chávez foi detido por militares, a Assembleia Nacional e o Tribunal Supremo foram dissolvidos, e a Constituição de 1999 do país foi anulada.
O presidente da Federação Venezuelana de Câmaras de Comércio (Fedecâmaras), Pedro Carmona foi instalado como presidente de facto. Na capital, no entanto, surgiu um levante pró-Chávez e a guarda presidencial retomou o palácio de Miraflores, reconduzindo Chávez à presidência.
Deste episódio até sua morte em 2013, o líder bolivariano travou uma guerra contra as instituições venezuelanas e a sociedade civil, esvaziando a democracia de seu país. Ele recorreu ao clientelismo e à imprensa estatal para manter seus apoiadores e aliados cruciais, como os militares.
Maduro, que era vice-presidente do país, assumiu o cargo interinamente após a morte de Chávez, em 5 de março de 2013. Sem o mesmo apoio de seu padrinho político, precisou fazer ainda mais concessões e ampliar os programas assistencialistas apesar de o governo contar com menos dinheiro em caixa.
Para resolver a falta de dinheiro, Maduro ordenou a impressão de mais dinheiro que, por não ter lastro, resultou no aumento da inflação e na disparada dos preços de itens básicos. Essas medidas foram a origem da escassez que assola a Venezuela.
Com muitas empresas deixando o país, o ciclo de venezuelanos retornando para a pobreza se expandiu.
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Muitos membros da polícia e das Forças Armadas, com dificuldade para garantir o sustento de suas famílias, recorreram para os negócios ilegais. Gangues tomaram o controle de muitas cidades e a taxa de assassinatos disparou e se tornou uma das mais altas do mundo.
- Dá para culpar o socialismo ou o imperialismo pela crise na Venezuela?
Essa é uma abordagem popular para muitos brasileiros, americanos (assim como mexicanos e outros latino-americanos), que frequentemente retratam a implosão da Venezuela como prova de que seus oponentes políticos internos são ameaças perigosas.
Sem dúvida, Chávez era um esquerdista que gastava muito em programas sociais e que nacionalizou grande parte da economia, o que teve papel importante na crise do país. Também é verdade que os Estados Unidos se opuseram a seu governo e procuraram isolar sua influência na região, uma política que muitos na região veem como a continuidade de décadas de políticas de interferência do imperialismo americano.
Mas a maioria dos especialistas em Venezuela ou no retrocesso das democracias rejeita essas explicações. Eles veem a crise da Venezuela como tendo emergido de fatores que podem existir em qualquer democracia, e que tem se espalhado por todo o mundo: polarização política, desconfiança nas instituições e o desejo de um líder forte em impor a ordem.
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Os especialistas enfatizam particularmente as tendências centralizadoras e anti-establishment de Chávez - o que não é algo específico dos líderes de esquerda ou de direita.
- Faz diferença governos internacionais reconhecerem Juan Guaidó como líder legítimo da Venezuela?
Sim, mas isso tem limitações. Alguns pesquisadores sugerem que um governo tem mais chances de cair quando a população percebe que seu líder perdeu legitimidade internacional. Por outro lado, não foi exatamente uma surpresa que os presidentes de EUA, Donald Trump, e Brasil, Jair Bolsonaro, entre outros tenham se oposto a Maduro e apoiem a sua saída - assim como o fizeram outros líderes latinos.
- O que acontecerá agora?
Há dois grupos que podem forçar Maduro e deixar o poder.
O primeiro inclui membros do próprio governo venezuelano, mas com o agravamento da crise muitos deles devem temer ser presos caso deixem o poder. Eles também perderiam o acesso às benesses do governo e ficariam na mesma situação que a maior parte da população.
No segundo grupo estão os membros das forças armadas venezuelanas que Maduro, talvez sabiamente, evitou ordenar a reprimir os manifestantes. Apesar de alguns oficiais de baixa patente mostrarem descontentamento com o governo, a cúpula militar ainda apoia Maduro. Além disso, as Forças Armadas se beneficiam tremendamente do status quo: o presidente permitiu que eles assumissem o controle do mercado negro e de setores estratégicos da economia.
Se nenhum destes grupos se virar contra Maduro e ele se recusar a renunciar, é muito difícil dizer o que acontecerá.
Por um lado, com a situação cada vez mais fora de controle, parece impossível manter o status quo. Por outro lado, o mesmo poderia ter sido dito há um, dois ou mesmo três anos - durante outras ondas de protesto contra o chavista -, e ainda assim a Venezuela continuou com seu declínio trágico e constante.