Imagine-se dizendo a si mesmo em 2012 que dali a apenas três eleições presidenciais Barack Obama, Dick Cheney, Arnold Schwarzenegger, Alberto Gonzales, Barbara Lee e Elizabeth Warren estariam apoiando a mesma candidata. Eis a estranha envergadura da coalizão de Kamala Harris: uma frente popular unida não apenas por objetivos políticos compartilhados, mas por ter em comum a defesa das instituições americanas.
A envergadura da coalizão de Trump é diferente: abrange desde naturalistas anticorporações, como Robert Kennedy Jr, afirmando que Trump lhe prometeu o “controle” sobre as agências de saúde pública, até católicos pós-liberais, como JD Vance, criptoamigos e Elon Musk. Essa coalizão também contém vastas diferenças políticas. Seus membros se unem por uma desconfiança compartilhada sobre — e um desejo de controlar — as instituições americanas.
Estamos acostumados com eleições que contrapõem democratas e republicanos. Mas este pleito contrapõe guardiões e contrarrevolucionários.
O cientista político Steven Teles, da Universidade Johns Hopkins, descreveu-me a coisa da seguinte forma: nós pensamos normalmente nos Estados Unidos como um país polarizado ao longo da divisão entre a esquerda e a direita. Foi esse o eixo da polarização em 2012: os partidos se dividiam em relação ao Obamacare e os índices de tributação e austeridade. Os republicanos diziam representar os empreendedores da manufatura contrapondo-se a uma coalizão democrata erguida em torno de indolentes 47% da população que não pagavam nenhum imposto de renda e viviam às custas do governo. Os democratas pintavam Mitt Romney como uma gananciosa empresa de capital privado que tinha ganhado temporariamente forma humana.
Essa divisão entre esquerda e direita na economia persiste: o presidente republicano da Câmara dos Deputados, Mike Johnson, acaba de afirmar que priorizará a erradicação do Obamacare. Mas a divisão não é o mais importante nesta eleição. Afinal, Trump prometeu repetidamente (e falsamente) salvar o Obamacare durante a campanha. Outras divisões ideológicas tradicionais são mais presentes: o aborto, entre todos as políticas, é a principal questão desta eleição, na qual os riscos são inegáveis.
Mas existe um outro eixo ao longo do qual a política pode se polarizar: o valor básico das instituições. Para os democratas, as instituições que governam a vida americana, apesar de imperfeitas e às vezes capturadas por interesses monetários, são fundamentalmente confiáveis, repositórios de conhecimento e experiência, com funcionários que dão o seu melhor no exercício da função, e precisam ser protegidas e preservadas.
A coalizão trumpista percebe uma realidade bem diferente: um arquipélago de fortificações interconectadas do poder da esquerda que abrange o governo, as universidades e os meios de comunicações e, cada vez mais, as grandes corporações e até as Forças Armadas. Essa rede é chamada certas vezes de Catedral ou Regime; Trump se refere a ela como Estado Profundo; Vivek Ramaswamy chama o meio corporativo de “Lacração S/A”, e JD Vance o descreve como uma grave ameaça à democracia.
Não se trata de uma crítica unificada. Os apoiadores evangélicos de Trump percebem instituições dominadas por ateus que discriminam seu modo de vida. Elon Musk comprou o Twitter porque achou que a rede social tinha se tornado vetor do “vírus mental da lacração” e infectado seus filhos; e que isso assassinava a livre expressão. RFK Jr. dissemina teorias de conspiração sobre vacinas e se preocupa com aditivos alimentares (o que torna estranha sua aliança com Trump, um homem feito de Big Macs e coca diet, que comandou a Operation Warp Speed para desenvolver a vacina contra a covid-19). Nenhum conjunto singular de mudanças políticas satisfaria ambos, muita coisa os dividiria. O que eles tentam é assumir o controle das instituições que regem o estilo de vida americano, não reformá-las.
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“Lembre da era McCain-Romney”, disse Patrick Ruffini, cofundador da empresa de pesquisas republicana Echelon Insights. “Havia uma ideia de que as eleições serviam basicamente para ganhar o direito de administrar o sistema, de que nossos institutos de análise e instituições internas eleitos como guardiões do que é o sistema. Isso foi jogado fora.”
Nesse sentido, a coalizão trumpista não é conservadora de forma nenhuma. É contrarrevolucionária. Os trumpistas acreditam que uma revolução esquerdista corrompeu as instituições americanas e que uma contrarrevolução — capaz de implicar em violência — é necessária. Eu penso muito em algo que Kevin Roberts, o presidente da Heritage Foundation, que coordenou o Projeto 2025, disse ao Steve Bannon’s War Room: “Estamos no processo da segunda Revolução Americana, que não derramará sangue se a esquerda assim o permitir”.
Em 2024, o instituto Pew questionou democratas e republicanos sobre suas visões em relação a várias agências do governo. A diferença entre visões positivas de democratas e negativas republicanos sobre os Centros de Controle e Prevenção de Doenças foi de impressionantes 92 pontos; sobre a Agência de Proteção Ambiental, foi de 80 pontos; sobre o Departamento de Educação, 73. Muito bem, todas essas agências têm DNA progressista. Mas as diferenças não param aí: a diferença foi de 62 pontos a respeito do FBI; 60 pontos sobre o Departamento do Transporte; e 37 pontos em relação ao Departamento de Segurança Interna. Em todos esses casos — sim, até no Departamento de Segurança Interna —os democratas relatam posições muito mais favoráveis.
Não foi sempre assim. Em 1970, democratas e republicanos confiavam nos meios de comunicação em índices semelhantes (74% e 68%). Hoje, 54% dos democratas confiam nos meios de comunicação, contra apenas 12% dos republicanos. Os republicanos têm se voltado contra instituições nas quais confiavam mais até pouco tempo atrás. Em 2019, 54% dos republicanos, mas apenas 23% dos democratas, afirmavam que as grandes corporações surtiam um impacto positivo na vida americana. Em 2022, esse índice caiu para 26% dos republicanos e cresceu levemente, para 25%, entre os democratas.
Diagnosticar completamente essas tendências é algo além do que sou capaz nesta coluna. Basta dizer que não existe uma causa única e que as muitas causas existentes se retroalimentam. Parte disso reflete a força cada vez maior do Partido Democrata entre eleitores de alta escolaridade, o que levou essa classe a dominar instituições que prezam credenciais de elite; parte disso reflete um longo e duradouro esforço dos conservadores em deslegitimar a academia, os meios de comunicação e o governo, o que fez com que menos republicanos buscassem carreiras nessas instituições; parte disso reflete o comportamento de Donald Trump, que foi e continua sendo tão extremista que as instituições têm sido forçadas a responder de maneiras que enfurecem seus apoiadores, desde seu banimento em 2021 de grandes plataformas de redes sociais até os indiciamentos criminais contra ele.
É possível assumir que esse realinhamento pudesse empurrar os democratas, pelo menos, para uma agenda econômica menos progressista. Mas não foi esse o caso: os democratas estão bem mais à esquerda hoje do que nos anos Clinton ou Obama, mesmo que sua coalizão seja agora mais abastada. Isso é reflexo de americanos mais ricos adotando posições mais progressistas conforme se integram à coalizão democrata.
“Os democratas mais ricos ficaram tão de esquerda em relação à economia quanto seus colegas de partido menos abastados. E muito mais progressistas economicamente do que os republicanos de renda baixa e média”, escreveu Rogé Karma na revista The Atlantic. “A política americana parece ter entrado decisivamente no que podemos chamar de uma fase pós-marxista ou pós-materialista.”
Parte disso reflete a maneira com que Donald Trump abala a legitimidade do sistema. Você não poderia ser um republicano de boa reputação em 2012 se apoiasse a Lei de Cuidado Acessível ao Paciente ou aumentos de impostos para os ricos. Com raras exceções, é impossível em 2024 ser um republicano de boa reputação se você afirma diretamente que Donald Trump foi derrotado na eleição de 2020 ou que a insurreição de 6 de janeiro de 2021 foi abominável. Os democratas alteraram menos espetacularmente suas políticas, mas a facilidade com que Kamala recuou das posições mais progressistas que adotou em 2019 reflete uma dinâmica similar: o que mais importa neste momento é proteger o sistema de seus inimigos.
Mas aqui também vemos emergir um ciclo de retroalimentação. Uma pesquisa do Centro para Política da Classe Trabalhadora e do YouGov testou várias mensagens entre pessoas de classe trabalhadora no Estado da Pensilvânia e constatou que nada repercutiu pior entre os democratas do que colocar foco na ameaça que Trump representa para a democracia. Pelo menos naquela pesquisa, os eleitores afirmaram que queriam ouvir como Kamala limitaria o poder dos bilionários, não como ela pretende proteger a integridade de um governo do qual eles desconfiam.
Pesquisas como essa devem ser tratadas com algum ceticismo. A equipe de Kamala realizou várias sondagens próprias testando grupos focais e mensagens. Foi chocante ver Kamala pronunciando seu discurso de encerramento em Washington no mesmo lugar que Trump escolheu para incitar a turba que invadiu o Capitólio. Seu discurso teve muito a dizer sobre a economia, mas sua imagem deixou perfeitamente claro o que está em jogo nesta eleição: um partido que promete defender as instituições dos EUA contra outro que busca conquistá-las. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO