O uso de um míssil hipersônico pelos russos contra o território ucraniano pode ter dado início a uma nova fase do conflito entre Rússia e Ucrânia. O Oreshnik, como foi nomeado, é capaz de carregar múltiplas ogivas, inclusive nucleares, e pode atingir vários alvos ao mesmo tempo – além de alcançar uma velocidade de até 3 quilômetros por segundo. Diante dessas características, o professor de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Leonardo Trevisan, apelidou a arma de “míssil 5G dos russos”.
Em entrevista ao Estadão, Trevisan avalia que o uso do Oreshnik foi uma demonstração de força da Rússia, que quer tomar o controle de quatro províncias localizadas dentro do território da Ucrânia: Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporíjia. “Todas as guerras que você imagina um cessar-fogo são muito mais mortíferas na eminência dele, porque os dois lados procuram ganhar o maior espaço possível. É o que está acontecendo na guerra da Ucrânia”, afirma.
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O presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, também deve exercer um papel decisivo na resolução desse conflito. Na visão do professor, o norte-americano quer “uma paz para chamar de sua” já no início de seu novo governo. “Se ela vai ser eficiente ou não, pouco importa. Ele quer algum cessar-fogo para chamar de seu. Então, todos estão olhando e vendo como eles podem tirar o máximo do proveito possível, seja Putin, sejam os ucranianos, sejam os europeus, sejam os chineses, dessa pressa de Trump”, menciona Trevisan.
Para ele, os americanos são os atores mais fortes nessa guerra, e a eleição do Republicano causou mudanças “generalizadas” no cenário que estava se desenvolvendo. Outros atores, como a Europa e a China, também têm exercido forte influência no conflito. No caso dos chineses, o envio de microeletrônicos, componentes essenciais para a produção de armas, para a Rússia, é apenas a “primeira fase do envolvimento” do país que detém o título de segundo maior Produto Interno Bruto (PIB) do mundo.
Trevisan aponta que a guerra, no entanto, não é o maior medo dos europeus no momento. Quem lidera a escala, para ele, é uma eventual queda do valor do euro por conta de uma possível valorização do dólar. “Os europeus estão absolutamente cautelosos de que um dólar fortalecido possa prejudicá-los bastante. Talvez a gente precisasse olhar mais para esse contexto da guerra econômica do que da guerra militar, porque está assustando mais os europeus a guerra econômica do que a militar."
Para conter o avanço do dólar, o professor da ESPM também não descarta que a Europa possa tomar medidas econômicas mais protecionistas nos próximos meses. A “receita” disso tudo, segundo ele, já é conhecida: fechamento de comércio, elevação de preços e da inflação e menor atividade econômica.
Leia a íntegra da entrevista com Leonardo Trevisan:
Podemos considerar que essa é uma nova fase do conflito entre Rússia e Ucrânia?
Todos os atores desta guerra, sem dúvida nenhuma, estão de olhos postos numa mesma data: 20 de janeiro do ano que vem, que é a posse do Donald Trump. Esse cenário, a eleição do Trump, causou mudanças generalizadas no conflito, porque é evidente que há uma nova direção naquele que é o ator mais forte, que são os Estados Unidos. Todos estão aguardando o que será a chegada de Trump e todos se preparando para um cessar-fogo. É bastante provável que Trump vá tentar impor um cessar-fogo como a sua primeira grande conquista.
O uso de mísseis hipersônicos, como o Oreshnik, pode desencadear uma nova corrida armamentista global? Quais seriam as implicações disso tudo?
O que de fato aconteceu foi uma exibição coreografada de força. Essa expressão a gente precisa ter muito clara. Foi uma coreografia de força. A Ucrânia atacou com os mísseis autorizados pelos militares americanos (os ATACMS, o Sistema de Mísseis Táticos do Exército norte-americano). Ela atacou Bryansk, que fica a 12 km dentro da fronteira russa. Os russos deram a mesma resposta. Eles usaram um míssil novo, que é o RS-26, o Oreshnik. Esse míssil de fato tem uma atualização. É uma espécie de míssil 5G dos russos. É um míssil que tem uma capacidade de propulsão maior, uma velocidade maior e capacidade de se esconder mais eficientemente. Tem baixa identificação, na linguagem correta. Os russos também fizeram uma exibição de força.
O que é que tem por trás de toda essa exibição de força?
Uma tentativa de ganhar o máximo de terreno possível. Para os dois lados. Os russos querem as quatro províncias, Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporíjia, e, de alguma forma, o limite disso será o quanto eles conseguiriam avançar na linha de batalha. Não serão as fronteiras tradicionais, mas o quanto eles conseguiriam avançar. É um quadro evidentemente da coreografia e de você avançar até o dia do cessar-fogo. Todas as guerras que você imagina um cessar-fogo são muito mais mortíferas na eminência dele, porque os dois lados procuram ganhar o maior espaço possível. É o que está acontecendo na guerra da Ucrânia.
Como você avalia a revisão da doutrina nuclear russa, principalmente com a redução desse limiar para o uso de armas nucleares?
É um recado. É uma formalização do antigo recado do Putin, que era: “eu aperto o botão". Ele formalizou esse recado. Qual foi a formalização? Quem nos atacar, mesmo que não seja uma potência nuclear – esse ponto é importante – se ele for aliado de uma potência nuclear, nós vamos entender como. Ele mudou a doutrina desse jeito. Nós temos que entender que isso foi uma enorme concessão do Putin aos seus falcões. A gente tem uma ideia errada do Putin. Qualquer analista internacional concorda nesse ponto. Se você tirar o Putin, será muito pior. O que vem é bem pior que o Putin. Qualquer das opções é pior que o Putin.
Tem dois outros pontos que eu acho que são importantes nessa atualização e que estamos prestando menos atenção. Ele colocou sobre proteção nuclear Belarus, a antiga Bielorrússia. Isso é importante. E, de certa forma, ele definiu melhor o conceito de soberania nuclear russa. Esses três pontos apareceram. Não é uma grande novidade, isso já estava mais ou menos estabelecido. A maior novidade talvez seja a inclusão de Belarus. É preciso entender, claro, que isso vai significar uma formalização da proteção russa. Isso pode se generalizar numa guerra maior, descontrolada? Pode, sim. Todo mundo que tem bom senso sabe que todas as guerras a gente sabe como começa e não sabe como termina. Portanto, há uma possibilidade, sim, de você ter um descontrole nesse processo. Há uma tentativa, porém, de outros fatores já terem acontecido para acalmar essa situação, para que ela se mantenha mais ou menos sob controle até 20 de janeiro (posse de Trump).
E como que as intervenções diretas de alguns outros países, como os Estados Unidos, como a China, podem moldar as perspectivas de resolução desse conflito? O senhor acha que o ano de 2025 será marcado por uma escalada, uma estagnação, ou a resolução dessa guerra?
O que acontece a partir de janeiro de 2025? Trump quer, seja qual for, uma paz para chamar de sua. Se ela vai ser eficiente ou não, pouco importa. Ele quer algum cessar-fogo para chamar de seu. Dizer “eu consegui” para inaugurar o governo com grande efeito e falar para o seu público. Se isso vai se redundar em alguma coisa efetiva, real, é outro ponto. Então, todos estão olhando e vendo como eles podem tirar o máximo do proveito possível, seja Putin, sejam os ucranianos, sejam os europeus, sejam os chineses, dessa pressa de Trump de fazer um cessar-fogo para chamar de seu.
A partir desse contexto, como é que os atores jogam? A Rússia vai tentar esticar o máximo possível, que já há mais ou menos um consenso, que as quatro províncias, Donetsk, Luhansk, Zaporíjia e Kherson, em torno de 18% a 20% do território ucraniano, será conquistado pelas tropas russas. Esse fato já é encarado como decisivo. O fato seguinte é que é um problema. A Ucrânia não entra na OTAN, mas há nuances. A Ucrânia não entra na OTAN, mas pode ficar sob proteção. A Ucrânia não entra na OTAN, mas entra na União Europeia. Inicia um processo de entrada na União Europeia. Isso ainda não está muito claro. Não está muito claro, também, o que fazer politicamente com Zelensky. Porque Zelensky seria derrotado se assinar o acordo e entregar os 20% (do território). Quem assinar esse acordo vai ficar com a pecha de que entregou o território, que é o grande motivo da guerra. Todo ucraniano vai pensar: “tanta destruição, tudo isso e agora nós entregamos".
E a Europa?
A Europa não quer ficar tão fora do jogo de que isso seja decidido exclusivamente por Ucrânia, Rússia e Estados Unidos. A Europa diz “espera aí, nós também participamos disso”. É nesse contexto que a gente tem que entender a entrada da China. O Estadão republicou uma matéria do The Washington Post muito interessante sobre o apoio que a China vem dando por trás das cortinas para a guerra. Principalmente sob o ponto de vista técnico, oferecendo microprocessadores, maquinário eletrônico, que a Rússia não tem mais acesso no Ocidente e a China está passando para ela. De alguma forma, esse processo é só uma primeira fase do envolvimento chinês. A China, de algum modo, está usando isso no processo de se aproximar da Europa. A China está dizendo: “olha, os Estados Unidos vão tratar vocês mal, vem para perto de mim que eu trato vocês melhor”. Isso tem, inclusive, consequências militares. Quando nós olhamos para esse quadro, nós vemos que o jogo geopolítico praticamente vai começar do zero.
O senhor comentou sobre a Rússia esticar um pouquinho a corda. Os russos devem aumentar o uso de armamento mais avançado ou o uso da tática mais agressiva nesses próximos meses, até em resposta a outros ataques?
Provavelmente será muito mais uma questão de infantaria, para usar a expressão da linguagem militar, do que uma questão de artilharia. A Rússia precisa ocupar terreno e solo. Ela precisa ampliar aquilo que eles chamam de margem de fronteira. Ela precisa crescer para marcar sua presença. A Rússia, na verdade, mudou todo o seu comportamento. Ela fechou essas quatro fronteiras e colocou praticamente mil quilômetros de minas para impedir a chegada das tropas ucranianas. Agora é diferente. Ela tirou as minas e vai para frente, está avançando. Quem tem que se proteger agora são as tropas ucranianas. A Ucrânia talvez tenha feito um erro tático importante, que é ocupar Kursk. Deslocar tropas de elite para ocupar Kursk e deixar desprotegido o outro lado. É bastante possível que vamos assistir a uma tentativa de avanço (da Rússia).
Porém, como sempre acontece naquela região, quem manda naquela região é o General Inverno, e ele está chegando. De alguma forma, mesmo o avanço das tropas russas será detido, impedido pelas condições do terreno. Há uma possibilidade de que nós chegamos ao 20 de janeiro e ao acordo do cessar-fogo com uma situação mais imóvel, dado as condições reais. Este inverno será rigoroso. Não será um inverno de pouca neve. É provável que você tenha uma dificuldade maior dos russos avançarem, apesar das defesas ucranianas estarem mais fragilizadas, porque deslocaram tropas de elite para Kursk.
Na Suécia, os cidadãos têm recebido alguns panfletos sobre a guerra, ‘se a crise ou a guerra chegarem’ e o que fazer nessa situação. Os governos da Noruega e da Finlândia também têm distribuído esse material, mesmo que nenhum desses documentos mencione diretamente a Rússia. Existe alguma chance da Rússia partir para o ataque contra esses países ou desses países irem para o ataque contra a Rússia também?
São duas realidades diferentes e você tem toda razão em apontar isso. Empresas alemãs, não só desses países menores e ricos, como Noruega, Suécia e Finlândia, mas empresas alemãs, a partir de conselhos das suas forças armadas, estão distribuindo “comportamento de guerra” para os seus funcionários. Cartilhas iguais a essas. Estão todos se acautelando porque, na opinião deles, vai chover. Todo mundo se protegendo. É um excesso? Provavelmente sim, mas ninguém pode dizer que isso seja efetivamente um excesso. A Europa é essencial. De algum modo, a Europa está percebendo uma situação de extrema fragilidade.
Porém, eu acho que o que os europeus mais têm medo não é nem tanto de Putin. Se eu tivesse que colocar uma escala de medo no mundo europeu entre Putin e a valorização do dólar, eu diria que a valorização do dólar está em primeiro lugar. Porque eles têm realmente receio de um estrago brutal, não só nas suas exportações para os Estados Unidos, mas principalmente um fortalecimento do dólar que vai derrubar, sem dúvida nenhuma, o euro. Isso vai deixar uma situação de preocupação mundial, que vai gerar inflação. Os europeus estão absolutamente cautelosos de que um dólar fortalecido possa prejudicá-los bastante. Talvez a gente precisasse olhar mais para esse contexto da guerra econômica do que da guerra militar, porque está assustando mais os europeus a guerra econômica do que a guerra militar.
Com essa preocupação econômica, podem vir mais medidas de protecionismo na Europa?
Com certeza. Mais medidas de protecionismo na Europa. A Europa será obrigada a dar respostas à pressão americana, fechando o comércio. Ao fechar o comércio, os preços vão subir. E isso vai significar ajuda mais alta, menor atividade econômica. A receita que a gente já conhece.