No discurso que fez à nação russa na segunda-feira, 21, o presidente Vladimir Putin reforçou seus argumentos para consolidar a separação de dois territórios rebeldes da Ucrânia declarando que a própria noção da Ucrânia como Estado independente é um mito.
Com a convicção de um líder autoritário que não se deixa limitar por nuances históricas, Putin declarou a Ucrânia uma invenção do líder revolucionário bolchevique Vladimir Lenin, que, segundo ele, equivocadamente dotou a Ucrânia da condição de Estado ao lhe permitir autonomia dentro do recém-criado Estado soviético.
"Esse processo começou imediatamente após a Revolução de 1917, e, ademais, Lenin e seus associados o fizeram da maneira mais desordenada em relação à Rússia: dividindo, arrancando da Rússia pedaços de seu próprio território histórico", disse.
Como leitura errônea da história, foi extremo até para os padrões de Putin, ex-oficial da KGB que já descreveu o colapso da União Soviética como a maior catástrofe geopolítica do século 20 .
Ucrânia e Rússia compartilham raízes que vêm do primeiro Estado eslavo, a chamada Rússia de Kiev, império medieval fundado pelos vikings no século 9º.
Mas a realidade histórica da Ucrânia é uma história complexa, milenar, feita de religiões, fronteiras e povos diversos. A capital, Kiev, foi fundada centenas de anos antes de Moscou, mas tanto os russos quanto os ucranianos a consideram o berço de suas respectivas culturas, religiões e línguas modernas.
Situada no meio das rotas comerciais que se desenvolveram nos séculos 9º e 10º, Kiev prosperou, mas viu sua influência diminuir quando o comércio se deslocou. As muitas conquistas por facções em guerra, aliadas à geografia diversa -com terras agrícolas, florestas e um ambiente marítimo à margem do mar Negro- criaram um conjunto complexo de Estados multiétnicos.
A história e a cultura de Rússia e Ucrânia estão de fato interligadas. Os dois países compartilham a mesma religião ortodoxa cristã, e seus idiomas, costumes e culinárias nacionais são aparentados.
Apesar disso, o nacionalismo e a política identitária ucranianos são fatores que irritam Moscou desde os tempos czaristas feudais. Muitos russos veem a Ucrânia como o "irmão menor" -e acham que ela deve se comportar como tal.
O leste da Ucrânia, que entrou para a esfera de influência muito antes do oeste, ainda possui muitos habitantes que falam russo e leais a Moscou. Mas a irmandade feliz de nações que Putin costuma descrever é duvidosa.
Partes da Ucrânia moderna de fato passaram séculos dentro do império russo. Mas outras, no oeste, caíram sob a jurisdição do império austro-húngaro, da Polônia ou da Lituânia.
Cliff Kupchan, presidente da consultoria de risco político Eurasia Group, diz que, embora os temas do discurso de Putin não tenham constituído novidade da parte dele, "a veemência e magnitude com que ele atacou tudo que é ucraniano foram surpreendentes".
O regime soviético sob Lenin acabaria por esmagar o nascente Estado ucraniano independente. A língua foi proibida nas escolas, e a cultura só foi autorizada a persistir sob a forma de uma imagem caricata de cossacos dançando em calças bufantes
Nos estertores da União Soviética, não foi Moscou quem concedeu à Ucrânia sua independência em 1991, mas o povo ucraniano -que, em referendo democrático, votou por maioria grande por deixar a URSS.
Agora, com estimados 190 mil soldados russos cercando o país, a declaração de Putin de que a própria existência da Ucrânia como Estado foi fruto de um erro histórico ameaça provocar arrepios em todas as terras que no passado estiveram sob o domínio de Moscou. E foi recebida com desdém.
"Nas duas últimas décadas o Ocidente vem procurando fascismo em qualquer lugar menos onde ele estava mais presente", diz Maria Tomak, ativista envolvida no apoio a pessoas da Crimeia, território anexado por Putin em 2014. "Agora está tão evidente que queima nossos olhos. Talvez agora finalmente o Ocidente encare de frente a seriedade do que a Rússia está fazendo."
Não está claro se Putin acredita em sua versão da história ucraniana ou se simplesmente inventou uma mitologia cínica para justificar qualquer ação. Mas sua alegação de que a Ucrânia existe unicamente dentro do contexto da história e cultura russas é algo que ele vem dizendo pelo menos desde 2008, quando tentou convencer George W. Bush -que expressara apoio à ideia de a Ucrânia ingressar na Otan- da não existência do país.
No ano passado Putin publicou um ensaio de 5.300 palavras expondo muitos dos temas que destacou no discurso de segunda-feira, incluindo a ideia de que nações ocidentais nefandas teriam de alguma maneira corrompido a Ucrânia por meio do que descreveu como "uma mudança forçada de identidade".
"Está claro que Putin não quis lançar um debate histórico", diz cientista político especialista em Rússia Joshua A. Tucker, da New York University. "Ele deitou as bases para o argumento de que a Ucrânia não tem os tipos de direitos que associamos às nações soberanas, um sinal de que pretende argumentar que uma intervenção militar não constituiria uma violação da soberania de outro país."
Como condição para a Ucrânia abrir mão de suas armas nucleares após o colapso soviético, Moscou jurou respeitar a soberania do vizinho. Mas Putin, dizem analistas, já deixou claro que pouco se importa com essa promessa, ao tomar a Crimeia e instigar a guerra separatista no leste da Ucrânia em 2014 e, agora, reconhecendo a independência dos dois territórios.
Mas seus esforços para arrastar a Ucrânia de volta à órbita russa vêm tendo o efeito oposto, sob muitos aspectos. Em um país que no passado era na melhor das hipóteses ambivalente em relação à Otan e na pior, hostil, pesquisas de opinião revelam que hoje uma maioria sólida da população é a favor da entrada no país na aliança militar liderada pelos EUA.
Em Kiev, a reação ao discurso de Putin foi de repúdio e medo do que vem pela frente. Reunida com colegas em um bar, a jornalista política Kristina Berdinskikh assistiu à fala no celular, alternando-se entre lágrimas e palavrões.
"Isso é ódio por toda a Ucrânia e vingança pelo movimento do país para aproximar-se da União Europeia, da Otan e da democracia -democracia que pode ser caótica, com problemas enormes, reformas lentas e corrupção, mas na qual as pessoas elegem e alternam o poder com eleições ou revoluções", diz. "O pior pesadelo para um velho lunático são esses dois cenários."