Antes mesmo do Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela (TSJ) ter arrogado para si as funções do Legislativo, último dos poderes a preservar sua independência do regime “bolivariano” e logo recuar, o país já rumava para a ditadura. O Judiciário venezuelano, que faz o que governo manda, anulou ou ignorou todas as leis aprovadas pelos parlamentares venezuelanos desde que a oposição conquistou o controle da Assembleia Nacional, nas eleições de dezembro de 2015.
Em outubro do ano passado, o presidente Nicolás Maduro submeteu seu orçamento à chancela do TSJ, em vez de enviá-lo ao Legislativo, como determina a Constituição. O TSJ também tirou dos parlamentares o poder de nomear os membros do Conselho Nacional Eleitoral (CNE). Agora seus juízes foram ainda mais longe.
Segundo Luis Almagro, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), a investida contra o Parlamento foi um “autogolpe de Estado”. Julio Borges, presidente da Assembleia, disse que se trata de mais uma “sujeira daqueles que sequestraram a liberdade do povo venezuelano”.
O regime talvez esteja mais preocupado com suas dificuldades financeiras do que com medo de perder o poder. Apesar de marginalizados, os parlamentares venezuelanos vinham afugentando investidores estrangeiros com a ameaça de bloquear a aprovação de joint ventures e negócios similares. A decisão judicial de quarta-feira faz parte de uma sentença em que o TSJ nega à Assembleia Nacional o poder de obstruir a formação de joint ventures.
O regime precisa desesperadamente dos recursos que essas joint ventures trazem para os cofres do país. Embora a Venezuela tenha as maiores reservas comprovadas de petróleo do mundo, os socialistas causaram tamanho estrago à economia que as pessoas enfrentam dificuldades para comprar alimentos e os hospitais convivem com a falta de medicamentos.
Submetidos à “dieta Maduro”, quase 75% dos venezuelanos emagreceram 8,7 quilos, em média, no ano passado. Mais da metade das crianças monitoradas entre outubro e dezembro em quatro regiões do país, incluindo a capital, apresentavam quadro de desnutrição ou corriam risco de ficarem desnutridas.
Com a baixa nos preços do petróleo, as importações recuaram 65% nos últimos três anos. O governo não se atreve a deixar de honrar o serviço de sua dívida de US$ 110 bilhões, pois teme que os credores passem a confiscar seus embarques de petróleo, que são, efetivamente, a única fonte de moeda forte do país. Para poder continuar pagando a dívida e impedir que, em vez de privações, os venezuelanos passem fome, o governo levanta recursos com transações criativas. Em março, a estatal de petróleo PDVSA ofereceu à petroleira russa Rosneft uma fatia de 10% na Petropiar, uma joint venture com a Chevron que atua no Cinturão do Orinoco. Em 2016, a Rosneft já havia desembolsado US$ 500 milhões para aumentar sua participação na Petromonagas, outra joint venture.
Foi esse tipo de negócio que o Parlamento venezuelano ameaçou obstruir. O presidente da Comissão de Finanças da Assembleia Nacional reagiu à notícia sobre a transação envolvendo a Petropiar com uma mensagem no Twitter, em que declarava o negócio “nulo e sem validade”. Agora que o TSJ usurpou os poderes do Legislativo, o governo deve achar que a ameaça já não assusta ninguém. É possível que a Rosneft, empresa que em última instância responde a Vladimir Putin, esteja realmente mais tranquila. Não é tão certo que o mesmo se aplique a outros investidores em potencial, incluindo algumas empresas chinesas.
O assalto ao Parlamento revoltou a oposição e elevou a apreensão entre os vizinhos da Venezuela. Alguns dias antes da decisão do TSJ, a OEA havia debatido a deterioração da democracia venezuelana. Faltou pouco para que o país fosse suspenso da entidade por violar os termos da Carta Democrática Interamericana, medida que é defendida por Almagro. Mas o simples fato de a questão ter sido colocada em discussão já revela o endurecimento da opinião regional sobre o regime ditatorial de Maduro: 20 dos 35 países-membros da OEA foram favoráveis a que o assunto fosse posto em pauta, derrotando as objeções da Venezuela e seus aliados. Na sexta-feira, o Mercosul convocou uma reunião de emergência para discutir a “grave situação institucional” da Venezuela.
Nem a indignação externa, nem a revolta interna devem sensibilizar o governo venezuelano. Apesar da situação de penúria, o regime ainda não esgotou todos seus recursos. Uma alta nos preços do petróleo pode ajudar Maduro a se manter no poder. É mais fácil o regime se enfraquecer a partir de dentro do que de fora. A oposição convocou o Exército a resistir à investida ditatorial, mas nada indica que os militares pretendam intervir em nome da democracia.
Por outro lado, numa atitude que talvez revele a existência de fissuras no regime, a procuradora-geral da Venezuela, Luisa Ortega Diaz, declarou que a decisão do TSJ “constitui uma ruptura da ordem constitucional”. Manifestação de discordância tão frontal, por parte de uma figura do alto escalão do regime, é algo extremamente incomum. Aos democratas resta esperar que outros figurões bolivarianos compartilhem da opinião de Diaz. / TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER
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