Muito tem se falado a respeito do crescente descontentamento político na América Latina, onde uma porcentagem em declínio da população está satisfeita com a democracia — mesmo em países nos quais indicadores sociais têm melhorado, como Chile, Colômbia ou Peru. Há um paradoxo que remonta aos escritos de Alexis de Tocqueville no século 19: o descontentamento social com frequência cresce à medida que as condições sociais melhoram. Os sintomas dessa aflição são bem conhecidos: desconfiança em relação ao sistema; desencanto com a política e os políticos tradicionais; uma fadiga social propensa a explodir em agitação civil; e a ascensão de outsiders com retóricas vagas antissistema que aprazem — e alimentam ainda mais — extremos ideológicos e polarizações antagônicas.
Os apologistas da atual “política da emoção” na América Latina — Jair Bolsonaro, Nayib Bukele, ou Javier Milei na direita; Andrés Manuel López Obrador ou Gustavo Petro na esquerda — surgiram como um desafio à política tradicional, amealhando a distribuição dos eleitores para posições extremas de populismos e dividindo sociedades em grupos antagônicos: “os puros” e “os corruptos”, para usar as palavras de Cas Mudde. “Nós contra eles”: uma confrontação egoísta que frequentemente justifica um desvio constante no sentido de democracias cada vez mais iliberais.
Conforme afirmam títulos de recentes coleções de ensaios, o centro tem de se sustentar. Trata-se de uma abstração bem intencionada: o centro, em sua melhor forma, é um meio-termo essencial, no qual a direita e a esquerda se encontram para elaborar políticas capazes de sobreviver à alternância de poder e pertencer à sociedade como um todo; esteve no âmago de alguns dos avanços mais importantes e duradouros na América Latina ao longo dos 30 anos recentes. Ainda que possa ser considerado hoje fora de moda em toda a região e pelo Ocidente, o centrismo continua a sobreviver e produz resultados em certos países, como o Uruguai, onde a diversidade de interesses é refletida sem a “identificação negativa” que caracteriza afinidades políticas em países polarizados.
Superando o nosso momento tribalista
Os obstáculos para um novo centrismo hoje, contudo, são formidáveis.
Em 2017, um de nós perguntou a pessoas de um grupo diverso na Argentina em quem elas votariam numa eleição presidencial: Cristina Fernández de Kirchner (CFK) ou Mauricio Macri. Então lhes perguntamos o quanto elas concordavam com a introdução hipotética de uma renda básica universal (RBU). Cinquenta por cento dos eleitores de CFK aprovaram; assim como 66% dos eleitores de Macri. Nós repetimos o experimento, mas dessa vez perguntamos o quanto elas concordavam com um plano de RBU proposto por CFK. Nessa hipótese, 92% de seus eleitores apoiaram a RBU; assim como 7% dos eleitores de Macri. Nós repetimos o experimento trocando os nomes. Quanto eles concordariam com um plano de RBU proposto por Macri? Entre os eleitores de CFK, 14%; assim como 84% dos eleitores de Macri.
Se tivéssemos conduzido esse experimento com partidos políticos, o estudo teria recordado o artigo “Partidos acima de políticas”, de Geoffrey Cohen, a respeito da natureza “tribalista” das ideologias. Reconhecendo tanto a inspiração quanto a novidade, nós batizamos o nosso artigo como “Líderes acima de políticas”.
Mas o ponto crucial aqui se relaciona com o desfecho do estudo: nós repetimos o experimento uma última vez, perguntando aos entrevistados o quanto eles concordariam com uma RBU proposta conjuntamente por CFK e Macri. Os níveis de apoio foram então os mesmos que teriam sido se o projeto não tivesse autoria específica; em alguns casos, até mais baixos. A conclusão: lealdades partidárias não são cumulativas; elas se cancelam ou subtraem uma à outra. Cooperação no mundo de hoje é kryptonita política.
No contexto da polarização contemporânea na Argentina — e, conjecturamos, em outras partes — a identificação é pessoal: reflete as visões em frequente mudança do líder a respeito de qualquer coisa, de deduções no imposto de renda a protecionismos comerciais, incluindo reformas nas pensões ou imigração ilegal — todos exemplos que, assim como a RBU, foram examinados no artigo com resultados similares. Mas, talvez de forma mais importante, a identificação também é negativa: a polarização age por meio da rejeição, portanto aproximar as visões sobre “eles” é visto como capitulação, ou até traição.
Sem tempo para ‘gatopardismo’
Onde isso nos deixa?
Não há balas de prata nesse esforço. Não só os novos centristas têm de inovar (em suas prioridades, estratégias e abordagens comunicacionais), mas o centrismo deveria se tornar um novo movimento político, em vez de um retorno ao passado.
Um ponto crítico e inicial para reavivar o centro é promover uma nova linhagem de políticos dispostos a romper com as práticas de corrupção, nepotismo e clientelismo que caracterizam há tanto tempo a política latino-americana. O novo centro não pode ser uma reciclagem de figurinhas carimbadas mascarada de transformação. O objetivo não deve ser ressuscitar o centro, mas sim reinventá-lo.
Qualquer mudança falsa de pessoal ou gatopardismo (termo em língua espanhola oriundo do romance “O leopardo”, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, resumido pela ironia paradoxal: “Tudo deve mudar para que tudo fique como está”) seriam notados facilmente, apenas alimentando mais desconfiança. Ainda que nem todo político experiente carregue o mesmo ranço, frequentemente percebido, os novos centristas, e até os antigos, precisariam se afastar do clássico estereótipo do “político”, no qual anos de uniformização — às vezes justificada — os encurralaram. Uma ruptura contundente com os políticos tradicionais é obrigatória. Alianças políticas de curto prazo apenas minarão a viabilidade do projeto político.
Essa nova vertente centrista também precisará aprender a dominar as novas táticas de comunicação em que os populistas se sobressaem, como o uso de mensagens diretas e simples e o apelo à emoção — emoções positivas de esperança em vez de sentimentos negativos de ódio e medo. Isso deve ser feito com cuidado para evitar a armadilha da polarização e de promessas infundadas que levam inevitavelmente à decepção. O novo centrista não poderá se esquivar de suas convicções nem temer enfrentar os populistas e os mitos que eles vendem ao público. Crucialmente, essas táticas têm de ser governadas por uma direção estratégica: moderação e equilíbrio não devem ser confundidos com conveniência e complacência.
Os novos centristas precisam de uma nova agenda política. Terão de combater a exclusão e as desigualdades generalizadas na região, assim como as expectativas diminuídas por trás da atitude não cooperativa e egoísta que com frequência caracteriza o populismo antissistema. E terão de promover políticas que melhorem os padrões de vida a curto prazo sem comprometer a sustentabilidade a longo prazo. Em outras palavras, os novos centristas precisarão produzir resultados tangíveis e ao mesmo tempo evitar a retórica repulsiva que vende “dores no curto prazo para ganhos no longo prazo” e semeia frustrações e ceticismos, em última instância dando poder aos populistas. Inclusividade, transparência e sustentabilidade deveriam ser as palavras-chave do novo chamado à ação.
Mas uma nova agenda centrista também requer uma transformação profunda nos hábitos políticos, uma mudança de quantidade para qualidade, da antiquada e passiva distribuição por meio de transferências ficais que compensem o fracasso do Estado de bem-estar social para políticas modernas e proativas que priorizem a capacitação profissional e o acesso a serviços públicos de qualidade, assim como um Estado menor e mais eficiente. Ações que demonstrem que a política está a serviço do povo, não o contrário, conforme percebe-se frequentemente. Em suma, políticas em prol do que é justo.
Finalmente, uma nova agenda centrista tem a obrigação de ser mais ampla e jovem, cobrindo desafios inescapáveis: cuidado com o meio ambiente, inovação tecnológica, migrações e demografias, segurança e o equilíbrio sempre em mutação entre trabalho e lazer. Isso pode ser crítico para atrair eleitores mais jovens que logo se tornarão maiorias decisivas na maior parte das democracias ocidentais — não somente um gesto oportunista: os representantes precisam representar mais que apenas as preocupações específicas de sua própria faixa etária.
Fazer o centro parecer forte novamente
No esporte, jogadores ruins com frequência desperdiçam energia correndo atrás da bola ou não conseguindo antecipar o oponente, exaurindo-se com movimentos desnecessários. A polarização na América Latina é um pouco parecida com os esses maus jogadores: mudanças políticas imprevisíveis desestimulam os investimentos e fomentam estratégias defensivas (e ineficientes), ou diretamente a saída dos melhores pensadores, empreendedores e trabalhadores. O resultado: exceto por algumas poucas experiências de vida curta, um histórico decepcionante de baixo desenvolvimento e décadas perdidas.
O centrismo tem respostas para muitos problemas da América Latina. Centristas são capazes de alcançar um equilíbrio entre melhorias a curto prazo e resultados a longo prazo. Reformas e investimentos em áreas que surtem impacto direto sobre a capacidade da classe média de crescer progressivamente — educação e assistência de saúde, infraestrutura e segurança pessoal, conectividade e acesso a crédito — preservando, ao mesmo tempo, a estabilidade macroeconômica têm sido a pedra angular da estratégia centrista.
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No entanto, o fracasso dos populistas não está atrelado à reconquista de eleitorados perdidos, mas pode facilmente fazer nossas combalidas democracias entrarem num movimento pendular cada vez maior entre populismos improvisados de direita e de esquerda por vários anos, em um jogo polarizador de soma negativa.
Para evitar esse desfazimento da democracia, nós precisamos de uma mudança verdadeira de regime dentro da classe política: uma nova linhagem de políticos que transformem uma agenda ampla e rejuvenescida de programas tecnocráticos numa plataforma política com um sentimento de missão, incluindo ações concretas nas áreas importantes para a maioria dos eleitores. Se crise é também oportunidade, nós estamos diante da chance do século de redefinir o centro político, a espinha dorsal das democracias liberais do Ocidente. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO