O número recorde de menores desacompanhados que emigram para os Estados Unidos, principalmente de países da América Central, e falhas na política migratória do governo Joe Biden em tentar localizar parentes desses jovens em território americano têm contribuído para a exploração laboral de migrantes adolescentes em indústrias de diversos Estados americanos.
Em 2022, o número de crianças desacompanhadas apreendidas na fronteira dos EUA foi de 152.880, o triplo do registrado cinco anos antes: 50.036. Uma vez nos Estados Unidos, esses menores têm cada vez mais recorrido a trabalhos em fábricas, muitas vezes submetidos a jornadas extenuantes.
“Por muito tempo, principalmente no governo (Donald) Trump e no começo do governo (Joe) Biden, houve uma pressão forte contra as crianças ficarem detidas por tanto tempo, 30 dias, 90 dias. Então, o governo Biden tentou agilizar e soltar essas crianças mais rapidamente. Mas aí há menos tempo para verificar para onde elas vão”, explica Gabrielle Oliveira, professora em Harvard e pesquisadora de imigração.
“Muitas acabam em famílias que já vivem com muitas crianças e pouco dinheiro e falam ‘olha, seria bom você trabalhar para poder enviar a renda para sua família’. Professores contam que os alunos terminam as aulas e saem para trabalhar em turnos noturnos em fábricas, por exemplo”, acrescenta.
Longe da família
De acordo com as estatísticas, cerca de um terço das crianças que chegam aos EUA desacompanhadas vão ao encontro de pais ou parentes. O restante acaba com tutores que, por vezes, nem conheciam. Em 2022, dos 152 mil menores que aguardavam detidos, 127.447 foram entregues a esses guardiões legais.
Em alguns casos, segundo estudos sobre imigração infantil nos EUA, o tutor que recebe a criança quer que ela vá para a escola e tem condição para sustentá-la, mas a criança precisa trabalhar para enviar dinheiro à família.
“Entrevistei crianças que chegaram com idades entre 11 e 17 anos e, 10 anos depois, continuam trabalhando sem documentação. Algumas chegaram com 12, 13 anos e começaram a trabalhar lavando louças em lanchonetes, ou como empregadas domésticas”, diz Stephanie Canizales, autora do livro Sin Padres, Ni Papeles (Sem pais ou documentos, em tradução livre).
Vida dura além da fronteira
Stephanie Canizales faz pesquisas com crianças que entraram nos EUA entre 2012 e 2018 sem serem detectadas, ou seja, que não passaram pelo processo de detenção na fronteira americana. Ela relatou histórias em seu livro como as de Diego, Lucinda e Glenda, três imigrantes de Honduras, Guatemala e El Salvador que chegaram desacompanhadas aos EUA, ainda adolescentes.
Lucinda tinha 14 anos quando fez a travessia da Guatemala para os Estados Unidos. Ela foi a terceira de sua família a migrar e acompanhou, à distância, o pai adoecer sem poder fazer nada. Diego deixou Honduras com a mesma idade, após ver os pais e avós serem executados por gangues locais. Glenda vivia sendo maltratada pelos pais em El Salvador e, também com 14 anos, conseguiu deixar o país e cruzar as fronteiras até os EUA.
Diego, depois de chegar aos EUA, começou a trabalhar em uma oficina mecânica. Depois conseguiu um emprego em um armazém. Lucinda chegou aos EUA e viu sua relação familiar mudar. Os irmãos que já estavam por lá se casaram e não tinham como ajudá-la.
Glenda teve um destino diferente. “Ela chegou em Los Angeles e tinha um tio lá. Ele a aceitou, era um homem mais velho, casado com uma mulher que cuidou de Glenda. Quando eu falei com ela, ela estava indo para o colegial e me disse ‘não tive pais que me amaram, não imaginei que alguém fosse me ajudar. Pensei que cresceria desacompanhada, mas aqui estou’”, relata Stephanie.
Em fevereiro, o jornal americano The New York Times publicou uma reportagem mostrando a rotina de trabalho de crianças migrantes nos EUA. Essa mão de obra vem crescendo ao longo dos últimos 10 anos e disparou justamente a partir de 2021, apesar de não haver um monitoramento estatístico oficial de imigrantes menores trabalhando em empresas americanas. O jornal relatou casos em 20 Estados, com destaque para Flórida, Tennessee, Delaware, Mississippi, Carolina do Norte e Dakota do Sul.
“Algumas empresas privadas americanas não se preocupam em passar por veto e, neste momento, o mercado está aquecido por necessidade de preencher vagas de empregos por falta de mão de obra. Isso não é novo, mas deixa mais aparente a questão de as empresas aceitarem mão de obra barata. E as pessoas chegam por meio de contato, primo ou amigo que trabalha no local”, explica Gabrielle.
O que mudar?
Especialistas que monitoram a exposição de menores migrantes a jornadas extenuantes de trabalho nos EUA defendem um trabalho conjunto de atores da sociedade civil, ONGs e agências do governo para amenizar o problema.
“Não adianta apenas dizer que as crianças não podem trabalhar. Elas vão passar a morar na rua, sendo despejadas, sem espaço para viver, sem poder ir para a escola. É uma década de crescimento de crianças migrantes que trabalham nos EUA”, afirma Gabrielle.
Um ponto fundamental, segundo ela, é o governo não perder o rastro de onde estão essas crianças e o contato com elas após serem enviadas a tutores. “Mais de 80 mil crianças repatriadas não têm mais contato com as agências do governo e aí não são monitoradas.”
“As empresas também não checam quem são esses jovens que estão trabalhando. O governo Biden reagiu pedindo que as agências tenham mais controle e acompanhamento sobre para onde essas crianças serão levadas”, completou.
Stephanie tem a mesma impressão. “Um dos problemas é que o governo perde o rastro de milhares de crianças que são liberadas na fronteira. É preciso providenciar serviços sociais, serviços de saúde, acesso a comida, educação. E, se essas crianças precisam trabalhar, precisamos de leis trabalhistas melhores, de um contexto mais humano. Muitos desses migrantes acreditam ser sua obrigação prover para a família que ficou. Precisamos implementar leis humanas a essas crianças, que precisam trabalhar porque não reconhecemos o papel dos EUA no contexto que as levou a deixar seu país.”