'Impulso antidemocrático em Israel é insidioso', diz professor da Sciences Po


Autor de 'Israel, uma democracia frágil', Samy Cohen afirma que país do Oriente Médio tem aspectos iliberais desde sua fundação, mas acentuou esse aspecto nas últimas décadas

Por Renato Vasconcelos

Reconhecido como uma democracia consolidada pelos principais rankings ocidentais - e considerado "a única democracia do Oriente Médio" por seus dirigentes políticos -, Israel também foi afetado pela onda antidemocrática e populista que varreu a política global nos últimos anos. No entanto, ao contrário de locais onde essa mudança resultou em perseguições severas, no caso israelense, a coisa aconteceu de forma mais insidiosa.

É o que afirma o professor emérito da Sciences Po, o Instituto de Estudos Políticos de Paris, Samy Cohen. Autor do livro Israel, uma democracia frágil (ainda sem edição em português), Cohen observa uma guinada iliberal durante o segundo governo de Binyamin Netanyahu (2009-2021), mas aponta que Israel tem elementos distantes das democracias liberais consolidadas desde sua fundação.

"Cerca de 20% da população não goza de direitos políticos iguais aos da maioria judaica. Todas as posições-chave do Estado são ocupadas por judeus. Certamente, as liberdades básicas dos cidadãos são preservadas, mas nem todos são iguais em termos de direitos, eu diria que os judeus "são mais iguais do que os árabes".

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Naftali Bennett é o novo primeiro-ministro de Israel Foto: AP Photo/Ariel Schali

Leia a entrevista completa:

Israel é reconhecido como uma democracia nos principais rankings internacionais e foi capaz de organizar quatro eleições em dois anos. Mas que tipo de democracia é Israel?

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Israel é uma democracia híbrida, que combina elementos de liberalismo e iliberalismo. Vou chamá-lo de "semiliberal". Desde o início, os pais fundadores estabeleceram uma democracia bastante distante do modelo liberal. A Declaração da Independência, que prometia igualdade para todos, foi traída. Cerca de 20% da população não goza de direitos políticos iguais aos da maioria judaica. Todas as posições-chave do Estado são ocupadas por judeus. Certamente, as liberdades básicas dos cidadãos são preservadas, mas nem todos são iguais em termos de direitos, eu diria que os judeus "são mais iguais do que os árabes".

A distância de Israel do modelo liberal é clara no que diz respeito ao status dos clérigos. Os ultraortodoxos, uma pequena fração intolerante, receberam o poder de impor a supremacia da Halakha (lei judaica) em vários domínios da vida cotidiana. Esta situação é totalmente estranha às democracias liberais. Israel é, portanto, o único Estado entre as democracias ocidentais que não permite casamentos civis e divórcios. O Estado afirma ser “judeu e democrático”, dois termos que, apesar do que é dito, são difíceis de conciliar. Este coquetel é uma fonte de tensão permanente.

Por que estamos falando sobre erosão democrática no país? Qual o evento ou qual o momento em que essa erosão começou?

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Desde 2009, vimos o desenvolvimento de uma tendência claramente não liberal. Pela primeira vez na história de Israel, o governo atacou abertamente o poder de compensação e sistematicamente acusa seus oponentes de "traição". A coalizão de partidos de direita e extrema-direita está tentando desafiar os avanços democráticos dos anos anteriores a 2009.

Sem atacar o princípio de eleições livres e justas, esta coalizão se esforça para silenciar as vozes que se opõem às suas políticas ou denunciar suas violações de direitos humanos nos territórios ocupados. Tem havido um aumento nas leis ad hoc que afirmam a predominância do caráter judaico do Estado em detrimento de sua dimensão democrática. 

A própria Suprema Corte está em uma posição desconfortável, pressionada a ceder ao poder dos "representantes eleitos do povo". E há uma tendência de eliminar os princípios da contenção e da moderação.

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O premiê israelenseBinyamin Netanyahu, acusado de corrupção Foto: Oded Bality/AP

É possível comparar Israel a outros países como Hungria e os Estados Unidos do governo Trump, por exemplo?

Netanyahu compartilha muitos pontos em comum com a Hungria de Viktor Orbán e os Estados Unidos de Donald Trump. Como em ambos os países, os freios e contrapesos democráticos e os corpos intermediários em Israel são atacados em nome da "vontade do povo". ONGs de direitos humanos sofreram repetidos ataques, comparáveis ​​ao ataque de Viktor Orbán a essas organizações na Hungria.

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Como nos Estados Unidos, a ministra da Justiça, Ayelet Shaked, nomeou juízes “conservadores” para a Suprema Corte, um ato que Trump não rejeitaria. Como Donald Trump, Binyamin Netanyahu busca constantemente dividir a sociedade israelense para governá-la, mas pedirá “unidade nacional” sempre que lhe for conveniente fazê-lo. É difícil dizer se é Trump quem está copiando Netanyahu ou vice-versa.

Em contraste com Viktor Orbán, no entanto, os líderes da direita israelense não definem seu país como uma democracia “iliberal”. Eles afirmam ser a “única democracia no Oriente Médio”, comparável em todos os aspectos às democracias mais avançadas. Afirmam que suas leis são perfeitamente democráticas, pois são votadas pelos representantes do povo, ignorando ou fingindo desconhecimento da dualidade que caracteriza as democracias liberais, que tinham sua legitimidade no governo e também no respeito aos direitos das minorias.

Donald Trump recebe Netanyahu em Washington Foto: Calla Kessler/The New York Times
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Há comparação com a Turquia de Erdogan?

A Israel de Netanyahu não é, como seus detratores às vezes afirmam, comparável à Turquia de Erdogan, que mantém um domínio brutal sobre as instituições do país e colocou centenas de oponentes atrás das grades. O impulso antidemocrático da direita em Israel é “mais suave”, mais insidioso. Os oponentes não são presos, mas são colocados sob pressão. São feitas tentativas para desacreditá-los, para marginalizá-los, para designá-los como traidores. A Suprema Corte não está sendo abolida, mas simplesmente tornou-se inofensiva. A imprensa certamente é livre, mas há cada vez mais pressões vindas da direita para amordaçar os jornalistas.

Nos últimos 12 anos, Binyamin Netanyahu foi o único primeiro-ministro de Israel. Qual a parte dele na erosão democrática? Seus acordos para manter o poder contribuíram para fragilizar a democracia israelense?

Netanyahu desempenhou um papel determinante na mudança antiliberal, e ele até supera os adversáriosquando incita sentimentos nacionalistas, tentando flanquear os partidos de extrema-direita e ganhar o apoio dos colonos. Com suas batalhas judiciais, ele se envolveu em uma ofensiva aberta contra o sistema judiciário, com o objetivo de desacreditar o Ministério Público que o acusou de fraude, corrupção e peculato. Deputados de direita moderada como Dan Meridor, Benny Begin e Reuven Rivlin foram removidos de posições de poder dentro do partido. Netanyahu se cercou de membros leais que são absolutamente devotados a ele, compartilhando a mesma cultura antiliberal.

Nas últimas eleições, Netanyahu perdeu o governo depois de ex-aliados e opositores formarem uma coalizão. Por que figuras tão distintas entre si se uniram para formar governo? Podemos entender essa união como uma oposição ao populismo ou apenas como um movimento para alcançar o poder?

Não é a vontade de se opor à política populista de Netanyahu que encorajou seus ex-aliados a ingressarem em um novo governo de coalizão. O próprio novo primeiro-ministro, Naftali Bennett, é um líder populista, que gastou muita energia nos últimos anos tentando enfraquecer a Suprema Corte. É mais uma manifestação de insatisfeitos com Netanyahu. Ao longo dos anos, ele humilhou muitos de seus aliados que juraram expulsá-lo do cargo.

Naftali Bennett é o novo primeiro-ministro de Israel Foto: AP Photo/Ariel Schali

Mas a coalizão liderada por Bennett e Yair Lapid aprofundam ou melhoram a crise democrática? Podemos classificá-la como a continuidade de um movimento populista?

A nova coalizão é muito heterogênea, reunindo líderes políticos que querem enfraquecer o sistema judiciário e outros que, pelo contrário, querem defendê-lo. Quem ganhará? É muito cedo para responder. Pode-se esperar nos próximos meses ver uma luta entre os dois campos em vários assuntos, entre os quais a nomeação de juízes para a Suprema Corte e o enfraquecimento do poder do Procurador-Geral de Israel.

No último dia 8 de julho, a Suprema Corte manteve a chamada lei do Estado-nação, aprovada em 2018. Na sua opinião, este é um ataque claro aos mecanismos de freios e contrapesos? Alguns analistas dizem que isso está empurrando Israel para uma 'etnocracia', o que você acha disso?

A Suprema Corte esperou três anos antes de tomar medidas sobre esta questão. Isso mostra como os juízes ficaram constrangidos. Eles decidiram alegando que esta lei fundamental estava de acordo coma “identidade democrática do Estado”, apontando que não se refere ao princípio da igualdade. Parece óbvio, neste caso tão sensível como em muitos outros, que o Tribunal pretendia evitar a abertura de um conflito grave com os outros dois poderes. Os deputados de direita há muito vêm proferindo ameaças contra a Corte, alertando-a contra a invalidação da lei. Os juízes se preocupam muito com sua imagem e sua popularidade na opinião pública israelense.

Reconhecido como uma democracia consolidada pelos principais rankings ocidentais - e considerado "a única democracia do Oriente Médio" por seus dirigentes políticos -, Israel também foi afetado pela onda antidemocrática e populista que varreu a política global nos últimos anos. No entanto, ao contrário de locais onde essa mudança resultou em perseguições severas, no caso israelense, a coisa aconteceu de forma mais insidiosa.

É o que afirma o professor emérito da Sciences Po, o Instituto de Estudos Políticos de Paris, Samy Cohen. Autor do livro Israel, uma democracia frágil (ainda sem edição em português), Cohen observa uma guinada iliberal durante o segundo governo de Binyamin Netanyahu (2009-2021), mas aponta que Israel tem elementos distantes das democracias liberais consolidadas desde sua fundação.

"Cerca de 20% da população não goza de direitos políticos iguais aos da maioria judaica. Todas as posições-chave do Estado são ocupadas por judeus. Certamente, as liberdades básicas dos cidadãos são preservadas, mas nem todos são iguais em termos de direitos, eu diria que os judeus "são mais iguais do que os árabes".

Naftali Bennett é o novo primeiro-ministro de Israel Foto: AP Photo/Ariel Schali

Leia a entrevista completa:

Israel é reconhecido como uma democracia nos principais rankings internacionais e foi capaz de organizar quatro eleições em dois anos. Mas que tipo de democracia é Israel?

Israel é uma democracia híbrida, que combina elementos de liberalismo e iliberalismo. Vou chamá-lo de "semiliberal". Desde o início, os pais fundadores estabeleceram uma democracia bastante distante do modelo liberal. A Declaração da Independência, que prometia igualdade para todos, foi traída. Cerca de 20% da população não goza de direitos políticos iguais aos da maioria judaica. Todas as posições-chave do Estado são ocupadas por judeus. Certamente, as liberdades básicas dos cidadãos são preservadas, mas nem todos são iguais em termos de direitos, eu diria que os judeus "são mais iguais do que os árabes".

A distância de Israel do modelo liberal é clara no que diz respeito ao status dos clérigos. Os ultraortodoxos, uma pequena fração intolerante, receberam o poder de impor a supremacia da Halakha (lei judaica) em vários domínios da vida cotidiana. Esta situação é totalmente estranha às democracias liberais. Israel é, portanto, o único Estado entre as democracias ocidentais que não permite casamentos civis e divórcios. O Estado afirma ser “judeu e democrático”, dois termos que, apesar do que é dito, são difíceis de conciliar. Este coquetel é uma fonte de tensão permanente.

Por que estamos falando sobre erosão democrática no país? Qual o evento ou qual o momento em que essa erosão começou?

Desde 2009, vimos o desenvolvimento de uma tendência claramente não liberal. Pela primeira vez na história de Israel, o governo atacou abertamente o poder de compensação e sistematicamente acusa seus oponentes de "traição". A coalizão de partidos de direita e extrema-direita está tentando desafiar os avanços democráticos dos anos anteriores a 2009.

Sem atacar o princípio de eleições livres e justas, esta coalizão se esforça para silenciar as vozes que se opõem às suas políticas ou denunciar suas violações de direitos humanos nos territórios ocupados. Tem havido um aumento nas leis ad hoc que afirmam a predominância do caráter judaico do Estado em detrimento de sua dimensão democrática. 

A própria Suprema Corte está em uma posição desconfortável, pressionada a ceder ao poder dos "representantes eleitos do povo". E há uma tendência de eliminar os princípios da contenção e da moderação.

O premiê israelenseBinyamin Netanyahu, acusado de corrupção Foto: Oded Bality/AP

É possível comparar Israel a outros países como Hungria e os Estados Unidos do governo Trump, por exemplo?

Netanyahu compartilha muitos pontos em comum com a Hungria de Viktor Orbán e os Estados Unidos de Donald Trump. Como em ambos os países, os freios e contrapesos democráticos e os corpos intermediários em Israel são atacados em nome da "vontade do povo". ONGs de direitos humanos sofreram repetidos ataques, comparáveis ​​ao ataque de Viktor Orbán a essas organizações na Hungria.

Como nos Estados Unidos, a ministra da Justiça, Ayelet Shaked, nomeou juízes “conservadores” para a Suprema Corte, um ato que Trump não rejeitaria. Como Donald Trump, Binyamin Netanyahu busca constantemente dividir a sociedade israelense para governá-la, mas pedirá “unidade nacional” sempre que lhe for conveniente fazê-lo. É difícil dizer se é Trump quem está copiando Netanyahu ou vice-versa.

Em contraste com Viktor Orbán, no entanto, os líderes da direita israelense não definem seu país como uma democracia “iliberal”. Eles afirmam ser a “única democracia no Oriente Médio”, comparável em todos os aspectos às democracias mais avançadas. Afirmam que suas leis são perfeitamente democráticas, pois são votadas pelos representantes do povo, ignorando ou fingindo desconhecimento da dualidade que caracteriza as democracias liberais, que tinham sua legitimidade no governo e também no respeito aos direitos das minorias.

Donald Trump recebe Netanyahu em Washington Foto: Calla Kessler/The New York Times

Há comparação com a Turquia de Erdogan?

A Israel de Netanyahu não é, como seus detratores às vezes afirmam, comparável à Turquia de Erdogan, que mantém um domínio brutal sobre as instituições do país e colocou centenas de oponentes atrás das grades. O impulso antidemocrático da direita em Israel é “mais suave”, mais insidioso. Os oponentes não são presos, mas são colocados sob pressão. São feitas tentativas para desacreditá-los, para marginalizá-los, para designá-los como traidores. A Suprema Corte não está sendo abolida, mas simplesmente tornou-se inofensiva. A imprensa certamente é livre, mas há cada vez mais pressões vindas da direita para amordaçar os jornalistas.

Nos últimos 12 anos, Binyamin Netanyahu foi o único primeiro-ministro de Israel. Qual a parte dele na erosão democrática? Seus acordos para manter o poder contribuíram para fragilizar a democracia israelense?

Netanyahu desempenhou um papel determinante na mudança antiliberal, e ele até supera os adversáriosquando incita sentimentos nacionalistas, tentando flanquear os partidos de extrema-direita e ganhar o apoio dos colonos. Com suas batalhas judiciais, ele se envolveu em uma ofensiva aberta contra o sistema judiciário, com o objetivo de desacreditar o Ministério Público que o acusou de fraude, corrupção e peculato. Deputados de direita moderada como Dan Meridor, Benny Begin e Reuven Rivlin foram removidos de posições de poder dentro do partido. Netanyahu se cercou de membros leais que são absolutamente devotados a ele, compartilhando a mesma cultura antiliberal.

Nas últimas eleições, Netanyahu perdeu o governo depois de ex-aliados e opositores formarem uma coalizão. Por que figuras tão distintas entre si se uniram para formar governo? Podemos entender essa união como uma oposição ao populismo ou apenas como um movimento para alcançar o poder?

Não é a vontade de se opor à política populista de Netanyahu que encorajou seus ex-aliados a ingressarem em um novo governo de coalizão. O próprio novo primeiro-ministro, Naftali Bennett, é um líder populista, que gastou muita energia nos últimos anos tentando enfraquecer a Suprema Corte. É mais uma manifestação de insatisfeitos com Netanyahu. Ao longo dos anos, ele humilhou muitos de seus aliados que juraram expulsá-lo do cargo.

Naftali Bennett é o novo primeiro-ministro de Israel Foto: AP Photo/Ariel Schali

Mas a coalizão liderada por Bennett e Yair Lapid aprofundam ou melhoram a crise democrática? Podemos classificá-la como a continuidade de um movimento populista?

A nova coalizão é muito heterogênea, reunindo líderes políticos que querem enfraquecer o sistema judiciário e outros que, pelo contrário, querem defendê-lo. Quem ganhará? É muito cedo para responder. Pode-se esperar nos próximos meses ver uma luta entre os dois campos em vários assuntos, entre os quais a nomeação de juízes para a Suprema Corte e o enfraquecimento do poder do Procurador-Geral de Israel.

No último dia 8 de julho, a Suprema Corte manteve a chamada lei do Estado-nação, aprovada em 2018. Na sua opinião, este é um ataque claro aos mecanismos de freios e contrapesos? Alguns analistas dizem que isso está empurrando Israel para uma 'etnocracia', o que você acha disso?

A Suprema Corte esperou três anos antes de tomar medidas sobre esta questão. Isso mostra como os juízes ficaram constrangidos. Eles decidiram alegando que esta lei fundamental estava de acordo coma “identidade democrática do Estado”, apontando que não se refere ao princípio da igualdade. Parece óbvio, neste caso tão sensível como em muitos outros, que o Tribunal pretendia evitar a abertura de um conflito grave com os outros dois poderes. Os deputados de direita há muito vêm proferindo ameaças contra a Corte, alertando-a contra a invalidação da lei. Os juízes se preocupam muito com sua imagem e sua popularidade na opinião pública israelense.

Reconhecido como uma democracia consolidada pelos principais rankings ocidentais - e considerado "a única democracia do Oriente Médio" por seus dirigentes políticos -, Israel também foi afetado pela onda antidemocrática e populista que varreu a política global nos últimos anos. No entanto, ao contrário de locais onde essa mudança resultou em perseguições severas, no caso israelense, a coisa aconteceu de forma mais insidiosa.

É o que afirma o professor emérito da Sciences Po, o Instituto de Estudos Políticos de Paris, Samy Cohen. Autor do livro Israel, uma democracia frágil (ainda sem edição em português), Cohen observa uma guinada iliberal durante o segundo governo de Binyamin Netanyahu (2009-2021), mas aponta que Israel tem elementos distantes das democracias liberais consolidadas desde sua fundação.

"Cerca de 20% da população não goza de direitos políticos iguais aos da maioria judaica. Todas as posições-chave do Estado são ocupadas por judeus. Certamente, as liberdades básicas dos cidadãos são preservadas, mas nem todos são iguais em termos de direitos, eu diria que os judeus "são mais iguais do que os árabes".

Naftali Bennett é o novo primeiro-ministro de Israel Foto: AP Photo/Ariel Schali

Leia a entrevista completa:

Israel é reconhecido como uma democracia nos principais rankings internacionais e foi capaz de organizar quatro eleições em dois anos. Mas que tipo de democracia é Israel?

Israel é uma democracia híbrida, que combina elementos de liberalismo e iliberalismo. Vou chamá-lo de "semiliberal". Desde o início, os pais fundadores estabeleceram uma democracia bastante distante do modelo liberal. A Declaração da Independência, que prometia igualdade para todos, foi traída. Cerca de 20% da população não goza de direitos políticos iguais aos da maioria judaica. Todas as posições-chave do Estado são ocupadas por judeus. Certamente, as liberdades básicas dos cidadãos são preservadas, mas nem todos são iguais em termos de direitos, eu diria que os judeus "são mais iguais do que os árabes".

A distância de Israel do modelo liberal é clara no que diz respeito ao status dos clérigos. Os ultraortodoxos, uma pequena fração intolerante, receberam o poder de impor a supremacia da Halakha (lei judaica) em vários domínios da vida cotidiana. Esta situação é totalmente estranha às democracias liberais. Israel é, portanto, o único Estado entre as democracias ocidentais que não permite casamentos civis e divórcios. O Estado afirma ser “judeu e democrático”, dois termos que, apesar do que é dito, são difíceis de conciliar. Este coquetel é uma fonte de tensão permanente.

Por que estamos falando sobre erosão democrática no país? Qual o evento ou qual o momento em que essa erosão começou?

Desde 2009, vimos o desenvolvimento de uma tendência claramente não liberal. Pela primeira vez na história de Israel, o governo atacou abertamente o poder de compensação e sistematicamente acusa seus oponentes de "traição". A coalizão de partidos de direita e extrema-direita está tentando desafiar os avanços democráticos dos anos anteriores a 2009.

Sem atacar o princípio de eleições livres e justas, esta coalizão se esforça para silenciar as vozes que se opõem às suas políticas ou denunciar suas violações de direitos humanos nos territórios ocupados. Tem havido um aumento nas leis ad hoc que afirmam a predominância do caráter judaico do Estado em detrimento de sua dimensão democrática. 

A própria Suprema Corte está em uma posição desconfortável, pressionada a ceder ao poder dos "representantes eleitos do povo". E há uma tendência de eliminar os princípios da contenção e da moderação.

O premiê israelenseBinyamin Netanyahu, acusado de corrupção Foto: Oded Bality/AP

É possível comparar Israel a outros países como Hungria e os Estados Unidos do governo Trump, por exemplo?

Netanyahu compartilha muitos pontos em comum com a Hungria de Viktor Orbán e os Estados Unidos de Donald Trump. Como em ambos os países, os freios e contrapesos democráticos e os corpos intermediários em Israel são atacados em nome da "vontade do povo". ONGs de direitos humanos sofreram repetidos ataques, comparáveis ​​ao ataque de Viktor Orbán a essas organizações na Hungria.

Como nos Estados Unidos, a ministra da Justiça, Ayelet Shaked, nomeou juízes “conservadores” para a Suprema Corte, um ato que Trump não rejeitaria. Como Donald Trump, Binyamin Netanyahu busca constantemente dividir a sociedade israelense para governá-la, mas pedirá “unidade nacional” sempre que lhe for conveniente fazê-lo. É difícil dizer se é Trump quem está copiando Netanyahu ou vice-versa.

Em contraste com Viktor Orbán, no entanto, os líderes da direita israelense não definem seu país como uma democracia “iliberal”. Eles afirmam ser a “única democracia no Oriente Médio”, comparável em todos os aspectos às democracias mais avançadas. Afirmam que suas leis são perfeitamente democráticas, pois são votadas pelos representantes do povo, ignorando ou fingindo desconhecimento da dualidade que caracteriza as democracias liberais, que tinham sua legitimidade no governo e também no respeito aos direitos das minorias.

Donald Trump recebe Netanyahu em Washington Foto: Calla Kessler/The New York Times

Há comparação com a Turquia de Erdogan?

A Israel de Netanyahu não é, como seus detratores às vezes afirmam, comparável à Turquia de Erdogan, que mantém um domínio brutal sobre as instituições do país e colocou centenas de oponentes atrás das grades. O impulso antidemocrático da direita em Israel é “mais suave”, mais insidioso. Os oponentes não são presos, mas são colocados sob pressão. São feitas tentativas para desacreditá-los, para marginalizá-los, para designá-los como traidores. A Suprema Corte não está sendo abolida, mas simplesmente tornou-se inofensiva. A imprensa certamente é livre, mas há cada vez mais pressões vindas da direita para amordaçar os jornalistas.

Nos últimos 12 anos, Binyamin Netanyahu foi o único primeiro-ministro de Israel. Qual a parte dele na erosão democrática? Seus acordos para manter o poder contribuíram para fragilizar a democracia israelense?

Netanyahu desempenhou um papel determinante na mudança antiliberal, e ele até supera os adversáriosquando incita sentimentos nacionalistas, tentando flanquear os partidos de extrema-direita e ganhar o apoio dos colonos. Com suas batalhas judiciais, ele se envolveu em uma ofensiva aberta contra o sistema judiciário, com o objetivo de desacreditar o Ministério Público que o acusou de fraude, corrupção e peculato. Deputados de direita moderada como Dan Meridor, Benny Begin e Reuven Rivlin foram removidos de posições de poder dentro do partido. Netanyahu se cercou de membros leais que são absolutamente devotados a ele, compartilhando a mesma cultura antiliberal.

Nas últimas eleições, Netanyahu perdeu o governo depois de ex-aliados e opositores formarem uma coalizão. Por que figuras tão distintas entre si se uniram para formar governo? Podemos entender essa união como uma oposição ao populismo ou apenas como um movimento para alcançar o poder?

Não é a vontade de se opor à política populista de Netanyahu que encorajou seus ex-aliados a ingressarem em um novo governo de coalizão. O próprio novo primeiro-ministro, Naftali Bennett, é um líder populista, que gastou muita energia nos últimos anos tentando enfraquecer a Suprema Corte. É mais uma manifestação de insatisfeitos com Netanyahu. Ao longo dos anos, ele humilhou muitos de seus aliados que juraram expulsá-lo do cargo.

Naftali Bennett é o novo primeiro-ministro de Israel Foto: AP Photo/Ariel Schali

Mas a coalizão liderada por Bennett e Yair Lapid aprofundam ou melhoram a crise democrática? Podemos classificá-la como a continuidade de um movimento populista?

A nova coalizão é muito heterogênea, reunindo líderes políticos que querem enfraquecer o sistema judiciário e outros que, pelo contrário, querem defendê-lo. Quem ganhará? É muito cedo para responder. Pode-se esperar nos próximos meses ver uma luta entre os dois campos em vários assuntos, entre os quais a nomeação de juízes para a Suprema Corte e o enfraquecimento do poder do Procurador-Geral de Israel.

No último dia 8 de julho, a Suprema Corte manteve a chamada lei do Estado-nação, aprovada em 2018. Na sua opinião, este é um ataque claro aos mecanismos de freios e contrapesos? Alguns analistas dizem que isso está empurrando Israel para uma 'etnocracia', o que você acha disso?

A Suprema Corte esperou três anos antes de tomar medidas sobre esta questão. Isso mostra como os juízes ficaram constrangidos. Eles decidiram alegando que esta lei fundamental estava de acordo coma “identidade democrática do Estado”, apontando que não se refere ao princípio da igualdade. Parece óbvio, neste caso tão sensível como em muitos outros, que o Tribunal pretendia evitar a abertura de um conflito grave com os outros dois poderes. Os deputados de direita há muito vêm proferindo ameaças contra a Corte, alertando-a contra a invalidação da lei. Os juízes se preocupam muito com sua imagem e sua popularidade na opinião pública israelense.

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