Na noite do dia 15 de outubro, a prisão de Evin, em Teerã, foi atingida por grandes incêndios que mataram ao menos 8 pessoas e feriram 61, segundo a mídia estatal. A prisão, símbolo mais visível do autoritarismo da República Islâmica do Irã há mais de 40 anos, tem agitações que raramente rompem os muros, mas desta vez a situação saiu do controle. Segundo parentes dos detentos, os danos podem ter sido ainda maiores.
O desastre coincidiu com manifestações em todo o país que varreram o Irã no mês passado e uma repressão brutal das forças de segurança do país, que mataram dezenas de manifestantes e prenderam milhares de outros. Alguns dos detidos foram levados para Evin, onde grupos de direitos humanos documentaram uma longa história de tortura e outros abusos.
Vídeos da noite do incêndio mostram pessoas gritando “morte ao ditador” e “morte a Khamenei”, uma referência ao líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, e um grito de guerra dos manifestantes, enquanto tiros são disparados e as chamas sobem acima a prisão.
Para entender o que aconteceu naquela noite, o Washington Post analisou dezenas de fotos e vídeos, conversou com ativistas, advogados, ex-prisioneiros e familiares de presos atuais e consultou especialistas em incêndio criminoso, armas e perícia em áudio.
As descobertas são contundentes: pelo menos um incêndio naquela noite parece ter sido iniciado intencionalmente em um momento em que os prisioneiros estão trancados em suas celas. O fogo mais mortal explodiu perto da cena do incêndio criminoso. Enquanto os prisioneiros tentavam fugir do fogo, guardas e outras forças de segurança os agrediam com cassetetes, munição real, chumbinhos de metal e explosivos.
Revolta no Irã
Os incêndios
A agitação começou por volta das 20h45, de acordo com um vídeo postado por Mizan, um site de notícias do judiciário iraniano. O vídeo afirma que uma briga eclodiu na ala 7 e que os prisioneiros atearam fogo a uma oficina têxtil próxima.
As imagens de satélite analisadas pelo The Post mostram, de fato, grandes danos ao telhado do prédio de dois andares no centro da prisão que abriga a oficina têxtil, bem como um salão religioso chamado Hussainiya no nível abaixo.
Esse não foi o único incêndio na prisão naquela noite, no entanto, e provavelmente não foi o primeiro.
Antes que qualquer chama fosse visível do lado de fora da oficina têxtil, vídeos mostram pelo menos três indivíduos jogando líquido inflamável nas chamas no topo de um prédio adjacente na ala 7, de acordo com o investigador de incêndio Phillip Fouts. Segundo Fouts, o fogo no telhado deste prédio provavelmente não pegou devido à falta de material inflamável. Imagens de satélite tiradas na sequência mostram apenas danos mínimos.
No entanto, as imagens mostram outro incêndio dentro da área da Ala 7, perto do local onde os indivíduos do outro vídeo haviam alimentado as chamas no telhado. Este segundo incêndio parece ter se originado na entrada da ala 7, perto de um posto de guarda, de acordo com um ex-detento que passou vários anos dentro de Evin e que conversou com o The Post sob condição de anonimato, temendo reação do governo.
O Post não pode confirmar como o fogo dentro da ala 7 começou, mas a proximidade com o incêndio feito de forma intencional é indicativa. E é o incêndio dentro da ala 7 – que o governo mais tarde atribuiu aos prisioneiros sem fornecer provas – que ofereceu um pretexto para a repressão caótica e mortal aos presos que se seguiu.
De acordo com o ex-prisioneiro, os portões das enfermarias costumam ser trancados às 17h todas as noites após ser feita uma chamada. Famílias de prisioneiros atuais dizem que seus movimentos foram ainda mais restritos desde que os protestos eclodiram no mês passado. Isso torna improvável que os presos possam ter acessado qualquer uma das três áreas onde os incêndios começaram.
A Anistia Internacional informou que os sons de tiros e gritos na ala 7 podiam ser ouvidos por prisioneiros em enfermarias vizinhas às 20h, bem antes das primeiras chamas serem visíveis, e que “as autoridades procuraram justificar sua sangrenta repressão aos prisioneiros sob o pretexto de combater o fogo.” A televisão estatal iraniana disse mais tarde que as forças de segurança estavam respondendo a um plano de fuga “premeditado” dos prisioneiros.
“Foi um incidente estranho o que aconteceu no momento em que os prisioneiros deveriam estar dormindo”, disse Saleh Nikbakht, advogado que tem vários clientes em Evin, falando ao The Post por telefone de Teerã. “Este foi um grande fato.”
Segundo o governo iraniano, a ala 7 abriga ladrões e criminosos financeiros, embora o ex-detento tenha dito que criminosos mais violentos também são mantidos lá. Tão importante quanto isso, faz fronteira com a ala 8, onde são mantidos dissidentes e presos políticos, e onde a fumaça do incêndio acabou se espalhando.
Uma repressão mortal
Enquanto a fumaça saía da ala 7 para a ala 8, o ativista dos direitos trabalhistas Arash Johari começou a tossir e engasgar, disse ele à família.
Johari, de 30 anos, disse que ele e o resto dos prisioneiros da ala 8 precisaram escolher entre atravessar os portões ou morrer sufocado. Ao atravessarem as portas trancadas e entrarem no pátio da prisão, guardas reagiram e os reprimiram com cassetetes, balas e gás lacrimogênio, segundo familiares que falaram sob condição de anonimato por temer represálias.
O especialista em áudio forense, Steven Beck, e pesquisadores da Carnegie Mellon University analisaram separadamente os vídeos fornecidos pelo The Post e descobriram que mais de 100 tiros distintos foram disparados. Ambas as análises identificaram tiros automáticos “consistentes com um AK-47″ e sons que provavelmente vieram de revólveres e fuzis.
Mohammad Khani, um dissidente da ala 8, foi atingido no peito com munições de metal e levou um tiro na lateral do corpo, de acordo com um membro da família, que falou sob condição de anonimato.
Beck determinou que também houve pelo menos duas explosões “consistentes com granadas”. Amael Kotlarski, analista sênior e especialista em armas da Janes, o provedor de defesa de inteligência, examinou imagens e áudio fornecidos pelo The Post e concluiu que granadas de efeito moral provavelmente foram lançadas na prisão, “a julgar pelo flash e explosão audível” ouvido no vídeo.
“[Johari] disse que foi espancado na cabeça com um bastão e que estava tonto e com náuseas”, disse um dos seus parentes. “Ele também disse que tinha visão turva e sua cabeça estava sangrando.”
As experiências de Khani e Johari naquela noite não puderam ser verificadas independentemente pelo The Post, mas foram consistentes com as descobertas da Anistia, bem como com investigações anteriores sobre o uso de força excessiva contra manifestantes do Irã.
Segundo o oficial da prisão Heshmatollah Hayat Al Ghaib, reforços foram enviados a Evin para lidar com a agitação, incluindo “forças de segurança, forças judiciais, Basij e unidades especiais da polícia”. Os Basij são um grupo paramilitar do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica (IRGC) e assumiram um papel de liderança na repressão violenta a manifestantes.
O fogo em Evin foi apagado e a agitação foi controlada pouco antes da meia-noite, segundo o governo. No entanto, fontes ouvidas pelo Post que possuem parentes e amigos morando ao redor da prisão disseram que tiros foram ouvidos até as duas da madrugada do domingo.
Três ônibus cheios de prisioneiros da ala 8, incluindo Johari, foram enviados de Evin para a prisão de Rajai Shahr, cerca de 64 quilômetros a oeste, de acordo com um membro da família de Johari. Um vídeo mostra esses ônibus sendo escoltados por viaturas de polícia com luzes vermelhas piscando.
Segundo a família de Johari, as autoridades prometeram a ele um raio-x para verificar os ferimentos sofridos na cabeça, mas a promessa não foi cumprida.
Khani entrou em contato com a família no domingo para dizer que havia sido gravemente ferido. Os parentes lutaram para que ele recebesse cuidados médicos externos e autoridades prisionais cederam, levando-o para um hospital próximo.
A bala que o atingiu na lateral estava alojado a uma profundidade de dois dedos no corpo, exigindo cirurgia, de acordo com um parente. O mesmo parente alegou que os médicos não costuraram o ferimento de forma correta ou lhe deram antibióticos antes de mandá-lo de volta para a prisão de Evin. Segundo os familiares, a mobilidade de Khani está debilitada e ele precisa da ajuda de outros presos políticos para se mover.
Dezenas de outras famílias se reuniram em Evin no domingo de manhã para receber notícias de seus entes. Eles foram afastados por soldados até que uma grande multidão se formou e começou a bater no portão, exigindo respostas. Muitas mães, pensando que seus filhos estavam mortos, choravam de tristeza.
“Quando as famílias subiam em grupo para fazer perguntas, (os guardas) insistiam que as pessoas subissem uma a uma ou então eles seriam chamados para espancá-los”, disse o parente de Johari, que conversou com as famílias na prisão naquele dia. “Tudo o que eles diziam era ‘Vá para casa e entraremos em contato com você’.”
Mais longe, outras famílias foram dominadas por um medo semelhante. Entre os detidos em Evin, estão Siamak Namazi e Emad Sharghi, dois executivos de negócios iranianos-americanos.
Quando a agitação começou no sábado à noite, Namazi foi transferido da ala 4 para a ala 2A, que é administrada pelo IRGC, de acordo com seu irmão Babak. Namazi ouviu os tiros e sentiu o cheiro da fumaça durante a agitação, disse o irmão ao The Post em entrevista por telefone.
“É importante para o presidente Biden ver o quão perto chegamos. Siamak e Emad poderiam estar entre os mortos”, disse Babak. “Isso mostra a urgência e a situação de risco de vida em que eles estão.”