THE NEW YORK TIMES - Nos extensos registros da república, a Casa Branca testemunhou perfídia e escândalo, presidentes que traíam suas mulheres e os contribuintes, que abusaram do poder e da confiança do povo.
Mas desde que os primeiros constituintes emergiram do Independence Hall, naquele dia claro e frio na Filadélfia, 236 anos atrás, nenhum presidente retirado da função pelo voto foi acusado de conspirar para seguir no poder num esquema elaborado de mentiras e intimidações que ocasionaria violência nos salões do Congresso.
O que torna o indiciamento contra Donald Trump da terça-feira, 1, tão estarrecedor não é o fato dele ter sido o primeiro ou segundo ex-presidente a ser acusado de um crime. Trump já detinha ambos os títulos. Mas por mais graves que possam ser os casos envolvendo pagamentos em troca de silêncio e documentos secretos, este terceiro indiciamento em quatro meses trata da essência da questão, do tema que definirá o futuro da democracia americana.
No cerne do caso EUA versus Donald Trump está nada menos do que a viabilidade do sistema construído naquele verão na Filadélfia. Um presidente na função pode disseminar mentiras sobre uma eleição e tentar se valer da autoridade do governo com o objetivo de subverter a vontade dos eleitores sem nenhuma consequência? Esta questão teria sido inimaginável até poucos anos atrás, mas o caso Trump levanta um espectro mais comum em países com histórico de golpes de Estado, juntas militares e ditaduras.
Com efeito, Jack Smith, o promotor especial que apresentou o caso, acusou Trump de realizar uma das fraudes mais formidáveis na história dos EUA, “alimentada por mentiras” e animada pela mais baixa das motivações, a sede pelo poder. No indiciamento de 45 páginas, que descreve quatro acusações, Smith descartou a noção de que Trump acreditava na veracidade de suas alegações de fraude. “O réu sabia que eram falsas”, afirma a Promotoria, e as expressou mesmo assim, para “criar uma atmosfera nacional de intensa desconfiança e ódio e erodir a fé pública na condução da eleição”.
Capitólio
Os elementos da suposta conspiração registrados no indiciamento eram na maioria bem conhecidos desde a conclusão da investigação do Congresso sobre o ataque de 6 de janeiro de 2021 contra o Capitólio, sete meses atrás — e muitos deles bem antes disso. Nesse sentido, a revelação do indiciamento mais recente engendrou uma sensação bizarramente anticlímax, dado o que está em jogo.
Mas apesar de longamente adiado, o terceiro indiciamento de Trump costurou toda a intriga que pairou entre a eleição de 3 de novembro de 2020 e a posse de Joe Biden, em 20 de janeiro de 2021, numa narrativa condenatória a respeito de um presidente que pressionou de todas as maneiras aparentemente possíveis para impedir a entrega das chaves da Casa Branca para o adversário que o derrotou nas urnas.
Os primeiros constituintes consideraram a transferência pacífica de poder fundamental à nova forma de governo que definiram. Tratava-se de uma inovação bastante radical em seu tempo, uma era em que reis e imperadores geralmente deixavam o poder apenas em razão de morte natural ou sob mira de armas. Na recém-nascida república, em contraste, os constituintes estabeleceram limites sobre o poder por meio de mandatos presidenciais de quatro anos renováveis somente por meio dos eleitores e do Colégio Eleitoral.
George Washington estabeleceu o precedente de abrir mão voluntariamente do poder após dois mandatos, restrição posteriormente incorporada à Constituição por meio da 22.ª Emenda. John Adams estabeleceu o precedente de entregar o poder pacificamente depois de perder uma eleição. Desde então, todos os presidentes derrotados aceitaram o veredicto dos eleitores e deixaram a função. Conforme Ronald Reagan colocou certa vez, o que “nós aceitamos como normal é um verdadeiro milagre”.
Apesar das muitíssimas acusações feitas contra Trump sobre todo tipo de tema durante seu tempo na arena pública, tudo mais parece menor em comparação. Ao contrário do indiciamento do Estado de Nova York por ele supostamente ter acobertado um pagamento para uma estrela pornô e o indiciamento anterior de Smith por ele supostamente ter colocado em risco segredos nacionais após deixar a Casa Branca, as novas acusações são as primeiras a tratar de ações de um ex-presidente cometidas enquanto ele ocupava a função.
Ainda que tenha fracassado em se aferrar ao poder, Trump minou a credibilidade do sistema eleitoral dos EUA ao convencer 3 em cada 10 americanos de que a eleição de 2020 lhe foi, de alguma maneira, roubada, apesar de não ter sido e de muitos de seus próprios conselheiros e parentes saberem muito bem que não foi.
Levar o caso à Justiça, evidentemente, poderá não restaurar a fé pública no sistema. Milhões de apoiadores de Trump e muitos líderes republicanos aceitaram essa narrativa de vitimização, desacreditando a acusação e interpretando o indiciamento meramente como parte de uma abrangente, multijurisdicional e até bipartidária “caça às bruxas” contra ele.
Indiciamentos
Trump tem se precavido em relação a eventuais indiciamentos há meses, deixando claro para seus apoiadores que eles não devem confiar no que promotores de Justiça dizem. “Por que eles não fizeram isso 2,5 anos atrás?”, escreveu Trump em sua rede social na tarde da terça-feira. “Por que esperaram tanto tempo? Porque queriam enfiar isso bem no meio da minha campanha. Má Conduta da Acusação!”
Um comunicado emitido por sua campanha foi além, comparando promotores com fascistas e comunistas. “A ilegalidade dessas perseguições ao (ex-)presidente Trump e seus apoiadores lembra a Alemanha nazista nos anos 30, a ex-União Soviética e outros regimes autoritários e ditatoriais”, afirmou a campanha. “O (ex-)presidente Trump sempre obedeceu a lei e a Constituição, aconselhado por muitos advogados altamente qualificados.”
Xingar os outros é uma defesa política, não jurídica, mas que até aqui tem sido uma estratégia bem-sucedida em preservar a relevância eleitoral de Trump em sua campanha para voltar à Casa Branca. Apesar de prognósticos contrários, os últimos dois indiciamentos funcionaram apenas para incrementar seu apelo entre os republicanos na disputa pela indicação do partido para desafiar o presidente Biden no próximo ano.
Nos tribunais, contudo, o desafio de Trump será diferente, especialmente diante de um júri selecionado entre moradores de Washington, uma cidade predominantemente democrata, onde ele conquistou apenas 5% dos votos em 2020. A estratégia de Trump poderá ser tentar adiar o julgamento para depois da eleição de 2024 e esperar que, se vencer, ele possa provocar um curto-circuito na acusação ou até tentar perdoar a si mesmo.
Afinal, os fatos mais essenciais do caso não estão em disputa, e ele não negou nenhuma das afirmações feitas no indiciamento da terça-feira. Na ocasião, Trump foi impressionantemente sincero ao declarar que pretendia reverter o resultado da eleição. Desde que deixou a presidência, ele chegou a pedir a “abolição” da Constituição para que fosse restituído à Casa Branca imediatamente.
Mas esses fatos constituírem crimes, conforme alegado ao júri federal por Smith, ou não permanece uma dúvida. Assim como nenhum presidente nunca havia tentado reverter sua derrota nas urnas antes, nenhum promotor havia apresentado acusações a este respeito, o que significa que não há precedentes para aplicar os estatutos codificados para tal circunstância.
Os advogados de Trump argumentam que ele teve razões de boa-fé para contestar os resultados da eleição em vários Estados e que ele não fez nada além de perseguir suas opções legítimas e legais, uma visão que foi compartilhada por 74% dos republicanos ouvidos pela mais recente pesquisa New York Times/Siena. O que Smith está fazendo, sustentam os defensores do ex-presidente, é criminalizar uma disputa política em função de uma justiça de vencedores — na qual o governo Biden pune o algoz que derrotou.
Saiba mais sobre Donald Trump
Mas conforme documentou metodicamente o indiciamento mais recente, Trump ouviu repetidamente de seus próprios conselheiros, aliados e autoridades de governo que as afirmações que eles estava fazendo eram inverídicas, mas ainda assim continuou a pronunciá-las publicamente, às vezes em intervalos de poucas horas.
Trump ouviu que suas afirmações eram falsas de não de um, mas de dois procuradores-gerais, de inúmeras outras autoridades do Departamento de Justiça e do chefe de segurança das eleições — todos nomeados pelo próprio. Trump ouviu isso de seu vice-presidente, de autoridades da campanha e de investigadores que elas contrataram. De governadores republicanos, secretários estaduais e legisladores. Conforme colocou na época um conselheiro de campanha, tudo “não passava de lixo conspiratório transmitido pela nave-mãe”.
Apesar disso tudo, Trump nunca recuou nesses dois anos e meio, mesmo conforme revela-se mentira atrás de mentira. Nenhuma autoridade independente que não tenha se aliado a Trump ou sido paga por ele — e nenhum juiz, nenhum promotor de Justiça, nenhuma agência eleitoral, nenhum governador — jamais validou nenhuma fraude eleitoral substancial que teria chegado perto de reverter os resultados em nenhum dos Estados mais disputados, muito menos os três ou quatro que teriam sido necessários para alterar o vencedor.
Quem tentou defraudar os EUA, acusou Smith, foi Trump, com alegações falsas que ele sabia ser falsas ou tinha toda razão para saber ser falsas, num esforço para permanecer no poder. O ex-presidente argumentará que tudo isso é política e que ele deveria ser restituído ao cargo na eleição do próximo ano, e até aqui milhões de americanos têm se posicionado ao seu lado.
Agora o Judiciário e o sistema eleitoral disputarão uma corrida de 15 meses para ver quem decide primeiro o destino de Trump — e do país. O veredicto verdadeiro sobre a presidência de Trump ainda está por vir. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
- Peter Baker, correspondente-chefe de Casa Branca, cobriu os mandatos dos últimos cinco presidentes americanos radicado em Washington