Inimigos do liberalismo político estão nos mostrando o que ele realmente significa; leia análise


Esse liberalismo tem sido atacado por crises financeiras, pela crise climática, pelas questionáveis respostas à pandemia, por populistas de direita e pela ascendente China

Por Ezra Klein
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - “Depois de duas décadas de dominância, o liberalismo político está perdendo espaço entre as mentes ocidentais”, escreve Matthew Rose em seu poderoso novo livro A World After Liberalism (Um mundo depois do liberalismo).

Rose não se refere ao liberalismo político da maneira que empregamos o termo tipicamente. Não se trata de apoiar um sistema de saúde universal ou de discordar do ministro Samuel Alito, da Suprema Corte. Rose refere-se ao liberalismo enquanto conjunto de percepções compartilhadas no Ocidente: uma crença na dignidade humana, em direitos universais, no florescimento individual e no consentimento de quem é governado.

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Esse liberalismo tem sido atacado por crises financeiras, pela crise climática, pelas questionáveis respostas à pandemia, por populistas de direita e pela ascendente China. Ele parece exaurido, moído, definido pelas contradições e promessas não cumpridas que se seguem à vitória, e não pela criatividade e a inspiração presentes na luta.

Mulher passa por mural que retrata o presidente Vladimir Putin segurando seu próprio corpo, em Sofia Foto: Nikolay Doychinov/AFP

Pelo menos parecia ser assim. A recusa da Ucrânia em se ajoelhar diante de Vladimir Putin lembrou ao Ocidente que, para aqueles que não têm garantido o liberalismo, vale a pena lutar por ele. Mas uma renovação verdadeira exigirá mais do que horror em relação à invasão russa ou louvores à coragem ucraniana. Significará enfrentar as deficiências do liberalismo político e redescobrir o radicalismo em seu núcleo.

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A World After Liberalism é um revigorante ponto de partida para iniciar essa redescoberta, em parte porque tanto da obra se passa na era de ascensão do liberalismo, mesmo enquanto se via sob violenta ameaça. No livro, Rose perfila Oswald Spengler, Julius Evola, Francis Parker Yockey, Alain de Benoist e Samuel Francis, cinco pensadores de extrema direita do século 20 que estão experimentando uma popularidade renovada na atual direita — e cada vez mais no centro. Alguns deles influenciam nosso mundo diretamente.

Para dar um exemplo, Evola, um teórico italiano quase fascista, foi citado por Steve Bannon e traduzido para o russo por Aleksandr Dugin, o filósofo e místico que passou a ser conhecido atualmente como o “Rasputin de Putin”.

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O argumento dos antiliberais é mais ou menos assim: nossas mais verdadeiras identidades têm suas raízes na terra em que nascemos e nos nossos parentes mais próximos. Nossas vidas ganham ordem e significado porque estão inseridas em uma estrutura maior e na luta pelo nosso povo. O liberalismo político e, até certo grau, o cristianismo envenenaram nosso solo cultural, deixando-nos à deriva em um mundo que privilegia o prazer e escarnece da tradição.

O multiculturalismo, nessa narrativa, torna-se um ideal conservador: deveríamos celebrar a força da distinção cultural, rejeitar as ocas compaixões universalistas dos progressistas e insistir na preservação daquilo que diferencia as pessoas. A genialidade dessa crítica, conforme escreve Rose, é que ela redefine as virtudes do liberalismo enquanto vícios.

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Na teoria, o liberalismo político protege os indivíduos de uma autoridade injusta, permitindo-os buscar vidas plenas e independentes da coerção de governos. Na realidade, ele cerra profundos laços de pertencimento, deixando indivíduos expostos ao poder do Estado — e dependentes dele.

Na teoria, o liberalismo propõe uma visão neutra a respeito da natureza humana, depurada de resíduos históricos e livre de distorções ideológicas. Na realidade, ele promove uma visão de mundo burguesa, valorizando mais o poder econômico do que a virtude. Na teoria, o liberalismo torna a política algo mais pacífico, ao colocar o foco no mundano em vez do metafísico. Na realidade, ele torna a vida política caótica ao cingir comunidades em facções e partidos rivais.

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O presidente Volodimir Zelenski disse em uma entrevista transmitida neste domingo nos Estados Unidos que as forças russas estão cometendo 'genocídio' na Ucrânia

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E o processo também é reverso. Tanto o liberalismo político quanto o cristianismo tornam-se eletrizantes quando descritos por seus críticos. Distante do difícil avanço tecnocrático das regulações comerciais e do árduo trabalho de superar o mecanismo de obstrução para aprovar leis, esse liberalismo é um prodígio de imaginação e ambição. É uma ideologia que considera os seres humanos capazes de novas formas de organização social e um movimento capaz de libertá-los de hierarquias inseridas tão profundamente nas nossas sociedades, que foram consideradas uma representação de uma ordem natural — ou até mesmo divina.

O cristianismo, também, emana uma luz com frequência em falta na política atual — e também nos bancos de suas igrejas: eis uma religião que insiste na dignidade de todas as pessoas e coloca os pobres e marginalizados no centro. Na visão de Rose, os sujeitos temem o cristianismo porque temem que ele não possa ser domado; mesmo quando os líderes que eles admiram tentam subvertê-lo para seus próprios objetivos, ele infecta suas sociedades com um igualitarismo latente, armando uma armadilha que será acionada inevitavelmente.

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Parte da sinistra relevância do livro decorre do papel que a Rússia desempenha na obra. Spengler pensou que o Ocidente estava decaindo para a incoerência e que a grande força cultural seguinte poderia muito bem emergir de uma Rússia pós-bolchevique. Yockey, um dos mais notórios supremacistas brancos no zoológico de Rose, escreveu “à espera de uma Rússia ressurgente, que ajudará a corrigir um Ocidente decadente”. É justamente este o papel que Putin reivindica para si mesmo discurso após discurso, insistindo numa identidade arraigada em solo e cultura, num imperialismo justificado por poder e passado; e num conceito de si e da Rússia enquanto bastiões solitários em luta pela cultura europeia tradicional.

Quando Putin profere um discurso de guerra colocando-se ao lado de J.K. Rowling, a autora dos livros do Harry Potter, contra o cancelamento por parte daqueles que buscam direito e reconhecimento de pessoas transgênero, este é o argumento sério por trás da ilógica justaposição: Putin está tentando unir os que sonham com as certezas e conformidades do passado e se ofendem com a constante instabilidade do presente liberal. A lógica que afirma que a Ucrânia pertence à Rússia hoje porque pertenceu à Rússia no passado é parente próxima da lógica que defende as hierarquias sociais de hoje com base em seu poder passado (Rowling, deve-se dizer, não quer nada com Putin).

Terra estrangeira

O choque descabido ao ver Putin agir da mesma maneira que muitos líderes do passado agiram, tentando tomar à força o que quer apenas porque pode fazê-lo, reflete o longo trabalho do liberalismo na reelaboração não somente o que acreditamos ser moral, mas também no que acreditamos ser normal. Em sua melhor forma, e às vezes também na sua pior, o liberalismo político constrói o passado como uma terra verdadeiramente estrangeira, capaz de transformar aqueles que ainda o habitam em anacronismos em relação ao seu próprio tempo. Mas os progressistas enganam-se quando passam a acreditar que isso acontece apenas com os inimigos do liberalismo. Isso também acontece com pretensos amigos do liberalismo.

É possível perceber isso claramente em Ukraine in Histories and Stories (A Ucrânia na História e nas histórias), uma coleção editada por Volodmir Yermolenko. Há uma relevância particular em ler esse livro, já que ele foi lançado em 2019, durante o intervalo entre a anexação da Crimeia e a atual invasão da Rússia à Ucrânia. Esse passado é recente, mas também parece estrangeiro.

Nessa coleção de ensaios escritos por intelectuais ucranianos a Ucrânia não é queridinha do Ocidente, é um país que aspira ser parte do Ocidente e luta contra a indiferença e até contra o desprezo daqueles que admira. A ignorância do Ocidente em relação à Ucrânia é um tema que permeia todo o livro, com autor após autor recordando esforços fúteis em fazer os europeus se interessarem em sua experiência, sua história e suas possibilidades. “Nós, ucranianos, estamos apaixonados pela Europa, e a Europa está apaixonada pela Rússia — enquanto a Rússia odeia tanto a Ucrânia quanto a Europa”, escreve o romancista Yuri Andrukhovich.

Os autores veem a Ucrânia como uma nação enrascada dolorosamente num estado de de vir a ser, nem verdadeiramente moderna nem convictamente tradicional. Andrij Bondar, um ensaísta ucraniano, apresenta uma lista tragicômica do que falta à Ucrânia, incluindo “confiança nas instituições”, “cultura de revistas em quadrinhos”, “ética protestante do trabalho” e “Calvados ou qualquer outro destilado de maçã”. Mas a Ucrânia também tem muita coisa, incluindo “uma sociedade em geral bastante tolerante”, “capacidade de consolidar e unir esforços para alcançar objetivos comuns”, “elementos de democracia” e “um talento para resistir a adversidades”. Hoje ficou claro que é isso o que importa.

Os autores também observam que a Europa não é tudo o que diz ser. “Para nós, cidadãos da Ucrânia, a Europa de hoje ainda parece a Europa do fim do século 20, mas agora ela é completamente diferente”, escreve o filósofo ucraniano Vakhtang Kebuladze. “Entendo isso, e evidentemente me magoa ver as ações dos amigos de direita e de esquerda de Putin na Europa. Eu certamente não gosto dessa Europa.”

Presidente russo, Vladimir Putin, em evento por videoconferência de um gabinete no Kremlin Foto: Mikhail Klimentyev

Profeticamente, Kebuladze expressou a visão de que a renovação do Ocidente pode advir da experiência daqueles que lutam pelo liberalismo político, não daqueles comodamente agasalhados por ele. “Os europeus poderiam olhar para si mesmo através dos olhos daqueles cidadãos da Ucrânia que foram à Maidan defender o futuro europeu do seu país, daqueles que estão morrendo no leste pelo nosso país enquanto o protegem da invasão russa e daqueles que morrem pouco a pouco nas prisões russas, encarcerados sob acusações fabricadas”, escreve ele. “Talvez então vocês gostem de si mesmos? Ou verão uma maneira de superar algo de que não gostam?”

Todos os antiliberais que Rose perfila acreditavam que o liberalismo político prescrevia uma vida sem sacrifício, uma era em que o contentamento individual reinava supremo e na qual a luta coletiva desaparecia. Isso não foi verdade no passado e não é verdade hoje. Eles se equivocaram a respeito do que o liberalismo prega verdadeiramente: que há uma identidade coletiva a ser encontrada no aperfeiçoamento coletivo, que tornar o futuro mais justo que o passado é uma missão tão grandiosa quanto qualquer outra oferecida pela antiguidade.

Mas uma crítica que eles fazem resvala no nosso presente e deveria ser levada a sério: o liberalismo político carece de uma relação melhor com o tempo. O passado pode se tornar um país estrangeiro sem aqueles que ainda vivem lá serem transformados em estrangeiros em sua própria terra? Se o futuro não está mapeado, então como persuadimos quem o teme, ou que desconfia de nós, a concordar em se aventurar em seus campos selvagens?

Suspeito que uma outra maneira de fazer essa mesma pergunta seja: A constante confrontação com nossos fracassos e deficiências é capaz de produzir uma cultura generosa e clemente? E essa cultura é capaz de se preocupar com aqueles que não apenas se sentem deixados para trás, como muitos nos EUA, mas excluídos, como muitos ucranianos se sentiram por tanto tempo?

A resposta para isso — se é que existe — pode estar no cristianismo que os antiliberais temiam, praticado por pouquíssimos na política. O que eu, como um forasteiro ao cristianismo sempre achei mais bonito a respeito dele é o quanto ele é estranho. Aqui temos uma visão de mundo construída sobre um fundamento de pecado universal e insuficiência, uma igualdade que sangra o reconhecimento de que somos imperfeitos, em vez de que todos temos de ser perfeitos. Sempre invejei a prática da confissão, muito em virtude de seu reconhecimento de que sempre há mais para confessar e, portanto, sempre haverá mais oportunidades de sermos perdoados.

É possível perceber algo desse espírito, em forma secular, nos ensaios ucranianos. O tom é absolutamente oposto ao triunfalismo, com a Rússia tomando a Crimeia e o restante da Europa dando de ombros, juntamente com os EUA. A perspectiva é trágica em grande medida e lúcida a respeito do trabalho que pode ser desfeito e da distância a ser percorrida. Mas os escritos também são generosos: imbuídos de amor à pátria, honestidade a respeito de uma história com frequência sangrenta, determinação apesar do decepcionante presente e, acima de tudo, de um compromisso mútuo.

Há muito a aprender com essa fusão entre autocrítica e solidariedade profunda. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE NEW YORK TIMES - “Depois de duas décadas de dominância, o liberalismo político está perdendo espaço entre as mentes ocidentais”, escreve Matthew Rose em seu poderoso novo livro A World After Liberalism (Um mundo depois do liberalismo).

Rose não se refere ao liberalismo político da maneira que empregamos o termo tipicamente. Não se trata de apoiar um sistema de saúde universal ou de discordar do ministro Samuel Alito, da Suprema Corte. Rose refere-se ao liberalismo enquanto conjunto de percepções compartilhadas no Ocidente: uma crença na dignidade humana, em direitos universais, no florescimento individual e no consentimento de quem é governado.

Esse liberalismo tem sido atacado por crises financeiras, pela crise climática, pelas questionáveis respostas à pandemia, por populistas de direita e pela ascendente China. Ele parece exaurido, moído, definido pelas contradições e promessas não cumpridas que se seguem à vitória, e não pela criatividade e a inspiração presentes na luta.

Mulher passa por mural que retrata o presidente Vladimir Putin segurando seu próprio corpo, em Sofia Foto: Nikolay Doychinov/AFP

Pelo menos parecia ser assim. A recusa da Ucrânia em se ajoelhar diante de Vladimir Putin lembrou ao Ocidente que, para aqueles que não têm garantido o liberalismo, vale a pena lutar por ele. Mas uma renovação verdadeira exigirá mais do que horror em relação à invasão russa ou louvores à coragem ucraniana. Significará enfrentar as deficiências do liberalismo político e redescobrir o radicalismo em seu núcleo.

A World After Liberalism é um revigorante ponto de partida para iniciar essa redescoberta, em parte porque tanto da obra se passa na era de ascensão do liberalismo, mesmo enquanto se via sob violenta ameaça. No livro, Rose perfila Oswald Spengler, Julius Evola, Francis Parker Yockey, Alain de Benoist e Samuel Francis, cinco pensadores de extrema direita do século 20 que estão experimentando uma popularidade renovada na atual direita — e cada vez mais no centro. Alguns deles influenciam nosso mundo diretamente.

Para dar um exemplo, Evola, um teórico italiano quase fascista, foi citado por Steve Bannon e traduzido para o russo por Aleksandr Dugin, o filósofo e místico que passou a ser conhecido atualmente como o “Rasputin de Putin”.

O argumento dos antiliberais é mais ou menos assim: nossas mais verdadeiras identidades têm suas raízes na terra em que nascemos e nos nossos parentes mais próximos. Nossas vidas ganham ordem e significado porque estão inseridas em uma estrutura maior e na luta pelo nosso povo. O liberalismo político e, até certo grau, o cristianismo envenenaram nosso solo cultural, deixando-nos à deriva em um mundo que privilegia o prazer e escarnece da tradição.

O multiculturalismo, nessa narrativa, torna-se um ideal conservador: deveríamos celebrar a força da distinção cultural, rejeitar as ocas compaixões universalistas dos progressistas e insistir na preservação daquilo que diferencia as pessoas. A genialidade dessa crítica, conforme escreve Rose, é que ela redefine as virtudes do liberalismo enquanto vícios.

Na teoria, o liberalismo político protege os indivíduos de uma autoridade injusta, permitindo-os buscar vidas plenas e independentes da coerção de governos. Na realidade, ele cerra profundos laços de pertencimento, deixando indivíduos expostos ao poder do Estado — e dependentes dele.

Na teoria, o liberalismo propõe uma visão neutra a respeito da natureza humana, depurada de resíduos históricos e livre de distorções ideológicas. Na realidade, ele promove uma visão de mundo burguesa, valorizando mais o poder econômico do que a virtude. Na teoria, o liberalismo torna a política algo mais pacífico, ao colocar o foco no mundano em vez do metafísico. Na realidade, ele torna a vida política caótica ao cingir comunidades em facções e partidos rivais.

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O presidente Volodimir Zelenski disse em uma entrevista transmitida neste domingo nos Estados Unidos que as forças russas estão cometendo 'genocídio' na Ucrânia

E o processo também é reverso. Tanto o liberalismo político quanto o cristianismo tornam-se eletrizantes quando descritos por seus críticos. Distante do difícil avanço tecnocrático das regulações comerciais e do árduo trabalho de superar o mecanismo de obstrução para aprovar leis, esse liberalismo é um prodígio de imaginação e ambição. É uma ideologia que considera os seres humanos capazes de novas formas de organização social e um movimento capaz de libertá-los de hierarquias inseridas tão profundamente nas nossas sociedades, que foram consideradas uma representação de uma ordem natural — ou até mesmo divina.

O cristianismo, também, emana uma luz com frequência em falta na política atual — e também nos bancos de suas igrejas: eis uma religião que insiste na dignidade de todas as pessoas e coloca os pobres e marginalizados no centro. Na visão de Rose, os sujeitos temem o cristianismo porque temem que ele não possa ser domado; mesmo quando os líderes que eles admiram tentam subvertê-lo para seus próprios objetivos, ele infecta suas sociedades com um igualitarismo latente, armando uma armadilha que será acionada inevitavelmente.

Parte da sinistra relevância do livro decorre do papel que a Rússia desempenha na obra. Spengler pensou que o Ocidente estava decaindo para a incoerência e que a grande força cultural seguinte poderia muito bem emergir de uma Rússia pós-bolchevique. Yockey, um dos mais notórios supremacistas brancos no zoológico de Rose, escreveu “à espera de uma Rússia ressurgente, que ajudará a corrigir um Ocidente decadente”. É justamente este o papel que Putin reivindica para si mesmo discurso após discurso, insistindo numa identidade arraigada em solo e cultura, num imperialismo justificado por poder e passado; e num conceito de si e da Rússia enquanto bastiões solitários em luta pela cultura europeia tradicional.

Quando Putin profere um discurso de guerra colocando-se ao lado de J.K. Rowling, a autora dos livros do Harry Potter, contra o cancelamento por parte daqueles que buscam direito e reconhecimento de pessoas transgênero, este é o argumento sério por trás da ilógica justaposição: Putin está tentando unir os que sonham com as certezas e conformidades do passado e se ofendem com a constante instabilidade do presente liberal. A lógica que afirma que a Ucrânia pertence à Rússia hoje porque pertenceu à Rússia no passado é parente próxima da lógica que defende as hierarquias sociais de hoje com base em seu poder passado (Rowling, deve-se dizer, não quer nada com Putin).

Terra estrangeira

O choque descabido ao ver Putin agir da mesma maneira que muitos líderes do passado agiram, tentando tomar à força o que quer apenas porque pode fazê-lo, reflete o longo trabalho do liberalismo na reelaboração não somente o que acreditamos ser moral, mas também no que acreditamos ser normal. Em sua melhor forma, e às vezes também na sua pior, o liberalismo político constrói o passado como uma terra verdadeiramente estrangeira, capaz de transformar aqueles que ainda o habitam em anacronismos em relação ao seu próprio tempo. Mas os progressistas enganam-se quando passam a acreditar que isso acontece apenas com os inimigos do liberalismo. Isso também acontece com pretensos amigos do liberalismo.

É possível perceber isso claramente em Ukraine in Histories and Stories (A Ucrânia na História e nas histórias), uma coleção editada por Volodmir Yermolenko. Há uma relevância particular em ler esse livro, já que ele foi lançado em 2019, durante o intervalo entre a anexação da Crimeia e a atual invasão da Rússia à Ucrânia. Esse passado é recente, mas também parece estrangeiro.

Nessa coleção de ensaios escritos por intelectuais ucranianos a Ucrânia não é queridinha do Ocidente, é um país que aspira ser parte do Ocidente e luta contra a indiferença e até contra o desprezo daqueles que admira. A ignorância do Ocidente em relação à Ucrânia é um tema que permeia todo o livro, com autor após autor recordando esforços fúteis em fazer os europeus se interessarem em sua experiência, sua história e suas possibilidades. “Nós, ucranianos, estamos apaixonados pela Europa, e a Europa está apaixonada pela Rússia — enquanto a Rússia odeia tanto a Ucrânia quanto a Europa”, escreve o romancista Yuri Andrukhovich.

Os autores veem a Ucrânia como uma nação enrascada dolorosamente num estado de de vir a ser, nem verdadeiramente moderna nem convictamente tradicional. Andrij Bondar, um ensaísta ucraniano, apresenta uma lista tragicômica do que falta à Ucrânia, incluindo “confiança nas instituições”, “cultura de revistas em quadrinhos”, “ética protestante do trabalho” e “Calvados ou qualquer outro destilado de maçã”. Mas a Ucrânia também tem muita coisa, incluindo “uma sociedade em geral bastante tolerante”, “capacidade de consolidar e unir esforços para alcançar objetivos comuns”, “elementos de democracia” e “um talento para resistir a adversidades”. Hoje ficou claro que é isso o que importa.

Os autores também observam que a Europa não é tudo o que diz ser. “Para nós, cidadãos da Ucrânia, a Europa de hoje ainda parece a Europa do fim do século 20, mas agora ela é completamente diferente”, escreve o filósofo ucraniano Vakhtang Kebuladze. “Entendo isso, e evidentemente me magoa ver as ações dos amigos de direita e de esquerda de Putin na Europa. Eu certamente não gosto dessa Europa.”

Presidente russo, Vladimir Putin, em evento por videoconferência de um gabinete no Kremlin Foto: Mikhail Klimentyev

Profeticamente, Kebuladze expressou a visão de que a renovação do Ocidente pode advir da experiência daqueles que lutam pelo liberalismo político, não daqueles comodamente agasalhados por ele. “Os europeus poderiam olhar para si mesmo através dos olhos daqueles cidadãos da Ucrânia que foram à Maidan defender o futuro europeu do seu país, daqueles que estão morrendo no leste pelo nosso país enquanto o protegem da invasão russa e daqueles que morrem pouco a pouco nas prisões russas, encarcerados sob acusações fabricadas”, escreve ele. “Talvez então vocês gostem de si mesmos? Ou verão uma maneira de superar algo de que não gostam?”

Todos os antiliberais que Rose perfila acreditavam que o liberalismo político prescrevia uma vida sem sacrifício, uma era em que o contentamento individual reinava supremo e na qual a luta coletiva desaparecia. Isso não foi verdade no passado e não é verdade hoje. Eles se equivocaram a respeito do que o liberalismo prega verdadeiramente: que há uma identidade coletiva a ser encontrada no aperfeiçoamento coletivo, que tornar o futuro mais justo que o passado é uma missão tão grandiosa quanto qualquer outra oferecida pela antiguidade.

Mas uma crítica que eles fazem resvala no nosso presente e deveria ser levada a sério: o liberalismo político carece de uma relação melhor com o tempo. O passado pode se tornar um país estrangeiro sem aqueles que ainda vivem lá serem transformados em estrangeiros em sua própria terra? Se o futuro não está mapeado, então como persuadimos quem o teme, ou que desconfia de nós, a concordar em se aventurar em seus campos selvagens?

Suspeito que uma outra maneira de fazer essa mesma pergunta seja: A constante confrontação com nossos fracassos e deficiências é capaz de produzir uma cultura generosa e clemente? E essa cultura é capaz de se preocupar com aqueles que não apenas se sentem deixados para trás, como muitos nos EUA, mas excluídos, como muitos ucranianos se sentiram por tanto tempo?

A resposta para isso — se é que existe — pode estar no cristianismo que os antiliberais temiam, praticado por pouquíssimos na política. O que eu, como um forasteiro ao cristianismo sempre achei mais bonito a respeito dele é o quanto ele é estranho. Aqui temos uma visão de mundo construída sobre um fundamento de pecado universal e insuficiência, uma igualdade que sangra o reconhecimento de que somos imperfeitos, em vez de que todos temos de ser perfeitos. Sempre invejei a prática da confissão, muito em virtude de seu reconhecimento de que sempre há mais para confessar e, portanto, sempre haverá mais oportunidades de sermos perdoados.

É possível perceber algo desse espírito, em forma secular, nos ensaios ucranianos. O tom é absolutamente oposto ao triunfalismo, com a Rússia tomando a Crimeia e o restante da Europa dando de ombros, juntamente com os EUA. A perspectiva é trágica em grande medida e lúcida a respeito do trabalho que pode ser desfeito e da distância a ser percorrida. Mas os escritos também são generosos: imbuídos de amor à pátria, honestidade a respeito de uma história com frequência sangrenta, determinação apesar do decepcionante presente e, acima de tudo, de um compromisso mútuo.

Há muito a aprender com essa fusão entre autocrítica e solidariedade profunda. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE NEW YORK TIMES - “Depois de duas décadas de dominância, o liberalismo político está perdendo espaço entre as mentes ocidentais”, escreve Matthew Rose em seu poderoso novo livro A World After Liberalism (Um mundo depois do liberalismo).

Rose não se refere ao liberalismo político da maneira que empregamos o termo tipicamente. Não se trata de apoiar um sistema de saúde universal ou de discordar do ministro Samuel Alito, da Suprema Corte. Rose refere-se ao liberalismo enquanto conjunto de percepções compartilhadas no Ocidente: uma crença na dignidade humana, em direitos universais, no florescimento individual e no consentimento de quem é governado.

Esse liberalismo tem sido atacado por crises financeiras, pela crise climática, pelas questionáveis respostas à pandemia, por populistas de direita e pela ascendente China. Ele parece exaurido, moído, definido pelas contradições e promessas não cumpridas que se seguem à vitória, e não pela criatividade e a inspiração presentes na luta.

Mulher passa por mural que retrata o presidente Vladimir Putin segurando seu próprio corpo, em Sofia Foto: Nikolay Doychinov/AFP

Pelo menos parecia ser assim. A recusa da Ucrânia em se ajoelhar diante de Vladimir Putin lembrou ao Ocidente que, para aqueles que não têm garantido o liberalismo, vale a pena lutar por ele. Mas uma renovação verdadeira exigirá mais do que horror em relação à invasão russa ou louvores à coragem ucraniana. Significará enfrentar as deficiências do liberalismo político e redescobrir o radicalismo em seu núcleo.

A World After Liberalism é um revigorante ponto de partida para iniciar essa redescoberta, em parte porque tanto da obra se passa na era de ascensão do liberalismo, mesmo enquanto se via sob violenta ameaça. No livro, Rose perfila Oswald Spengler, Julius Evola, Francis Parker Yockey, Alain de Benoist e Samuel Francis, cinco pensadores de extrema direita do século 20 que estão experimentando uma popularidade renovada na atual direita — e cada vez mais no centro. Alguns deles influenciam nosso mundo diretamente.

Para dar um exemplo, Evola, um teórico italiano quase fascista, foi citado por Steve Bannon e traduzido para o russo por Aleksandr Dugin, o filósofo e místico que passou a ser conhecido atualmente como o “Rasputin de Putin”.

O argumento dos antiliberais é mais ou menos assim: nossas mais verdadeiras identidades têm suas raízes na terra em que nascemos e nos nossos parentes mais próximos. Nossas vidas ganham ordem e significado porque estão inseridas em uma estrutura maior e na luta pelo nosso povo. O liberalismo político e, até certo grau, o cristianismo envenenaram nosso solo cultural, deixando-nos à deriva em um mundo que privilegia o prazer e escarnece da tradição.

O multiculturalismo, nessa narrativa, torna-se um ideal conservador: deveríamos celebrar a força da distinção cultural, rejeitar as ocas compaixões universalistas dos progressistas e insistir na preservação daquilo que diferencia as pessoas. A genialidade dessa crítica, conforme escreve Rose, é que ela redefine as virtudes do liberalismo enquanto vícios.

Na teoria, o liberalismo político protege os indivíduos de uma autoridade injusta, permitindo-os buscar vidas plenas e independentes da coerção de governos. Na realidade, ele cerra profundos laços de pertencimento, deixando indivíduos expostos ao poder do Estado — e dependentes dele.

Na teoria, o liberalismo propõe uma visão neutra a respeito da natureza humana, depurada de resíduos históricos e livre de distorções ideológicas. Na realidade, ele promove uma visão de mundo burguesa, valorizando mais o poder econômico do que a virtude. Na teoria, o liberalismo torna a política algo mais pacífico, ao colocar o foco no mundano em vez do metafísico. Na realidade, ele torna a vida política caótica ao cingir comunidades em facções e partidos rivais.

Seu navegador não suporta esse video.

O presidente Volodimir Zelenski disse em uma entrevista transmitida neste domingo nos Estados Unidos que as forças russas estão cometendo 'genocídio' na Ucrânia

E o processo também é reverso. Tanto o liberalismo político quanto o cristianismo tornam-se eletrizantes quando descritos por seus críticos. Distante do difícil avanço tecnocrático das regulações comerciais e do árduo trabalho de superar o mecanismo de obstrução para aprovar leis, esse liberalismo é um prodígio de imaginação e ambição. É uma ideologia que considera os seres humanos capazes de novas formas de organização social e um movimento capaz de libertá-los de hierarquias inseridas tão profundamente nas nossas sociedades, que foram consideradas uma representação de uma ordem natural — ou até mesmo divina.

O cristianismo, também, emana uma luz com frequência em falta na política atual — e também nos bancos de suas igrejas: eis uma religião que insiste na dignidade de todas as pessoas e coloca os pobres e marginalizados no centro. Na visão de Rose, os sujeitos temem o cristianismo porque temem que ele não possa ser domado; mesmo quando os líderes que eles admiram tentam subvertê-lo para seus próprios objetivos, ele infecta suas sociedades com um igualitarismo latente, armando uma armadilha que será acionada inevitavelmente.

Parte da sinistra relevância do livro decorre do papel que a Rússia desempenha na obra. Spengler pensou que o Ocidente estava decaindo para a incoerência e que a grande força cultural seguinte poderia muito bem emergir de uma Rússia pós-bolchevique. Yockey, um dos mais notórios supremacistas brancos no zoológico de Rose, escreveu “à espera de uma Rússia ressurgente, que ajudará a corrigir um Ocidente decadente”. É justamente este o papel que Putin reivindica para si mesmo discurso após discurso, insistindo numa identidade arraigada em solo e cultura, num imperialismo justificado por poder e passado; e num conceito de si e da Rússia enquanto bastiões solitários em luta pela cultura europeia tradicional.

Quando Putin profere um discurso de guerra colocando-se ao lado de J.K. Rowling, a autora dos livros do Harry Potter, contra o cancelamento por parte daqueles que buscam direito e reconhecimento de pessoas transgênero, este é o argumento sério por trás da ilógica justaposição: Putin está tentando unir os que sonham com as certezas e conformidades do passado e se ofendem com a constante instabilidade do presente liberal. A lógica que afirma que a Ucrânia pertence à Rússia hoje porque pertenceu à Rússia no passado é parente próxima da lógica que defende as hierarquias sociais de hoje com base em seu poder passado (Rowling, deve-se dizer, não quer nada com Putin).

Terra estrangeira

O choque descabido ao ver Putin agir da mesma maneira que muitos líderes do passado agiram, tentando tomar à força o que quer apenas porque pode fazê-lo, reflete o longo trabalho do liberalismo na reelaboração não somente o que acreditamos ser moral, mas também no que acreditamos ser normal. Em sua melhor forma, e às vezes também na sua pior, o liberalismo político constrói o passado como uma terra verdadeiramente estrangeira, capaz de transformar aqueles que ainda o habitam em anacronismos em relação ao seu próprio tempo. Mas os progressistas enganam-se quando passam a acreditar que isso acontece apenas com os inimigos do liberalismo. Isso também acontece com pretensos amigos do liberalismo.

É possível perceber isso claramente em Ukraine in Histories and Stories (A Ucrânia na História e nas histórias), uma coleção editada por Volodmir Yermolenko. Há uma relevância particular em ler esse livro, já que ele foi lançado em 2019, durante o intervalo entre a anexação da Crimeia e a atual invasão da Rússia à Ucrânia. Esse passado é recente, mas também parece estrangeiro.

Nessa coleção de ensaios escritos por intelectuais ucranianos a Ucrânia não é queridinha do Ocidente, é um país que aspira ser parte do Ocidente e luta contra a indiferença e até contra o desprezo daqueles que admira. A ignorância do Ocidente em relação à Ucrânia é um tema que permeia todo o livro, com autor após autor recordando esforços fúteis em fazer os europeus se interessarem em sua experiência, sua história e suas possibilidades. “Nós, ucranianos, estamos apaixonados pela Europa, e a Europa está apaixonada pela Rússia — enquanto a Rússia odeia tanto a Ucrânia quanto a Europa”, escreve o romancista Yuri Andrukhovich.

Os autores veem a Ucrânia como uma nação enrascada dolorosamente num estado de de vir a ser, nem verdadeiramente moderna nem convictamente tradicional. Andrij Bondar, um ensaísta ucraniano, apresenta uma lista tragicômica do que falta à Ucrânia, incluindo “confiança nas instituições”, “cultura de revistas em quadrinhos”, “ética protestante do trabalho” e “Calvados ou qualquer outro destilado de maçã”. Mas a Ucrânia também tem muita coisa, incluindo “uma sociedade em geral bastante tolerante”, “capacidade de consolidar e unir esforços para alcançar objetivos comuns”, “elementos de democracia” e “um talento para resistir a adversidades”. Hoje ficou claro que é isso o que importa.

Os autores também observam que a Europa não é tudo o que diz ser. “Para nós, cidadãos da Ucrânia, a Europa de hoje ainda parece a Europa do fim do século 20, mas agora ela é completamente diferente”, escreve o filósofo ucraniano Vakhtang Kebuladze. “Entendo isso, e evidentemente me magoa ver as ações dos amigos de direita e de esquerda de Putin na Europa. Eu certamente não gosto dessa Europa.”

Presidente russo, Vladimir Putin, em evento por videoconferência de um gabinete no Kremlin Foto: Mikhail Klimentyev

Profeticamente, Kebuladze expressou a visão de que a renovação do Ocidente pode advir da experiência daqueles que lutam pelo liberalismo político, não daqueles comodamente agasalhados por ele. “Os europeus poderiam olhar para si mesmo através dos olhos daqueles cidadãos da Ucrânia que foram à Maidan defender o futuro europeu do seu país, daqueles que estão morrendo no leste pelo nosso país enquanto o protegem da invasão russa e daqueles que morrem pouco a pouco nas prisões russas, encarcerados sob acusações fabricadas”, escreve ele. “Talvez então vocês gostem de si mesmos? Ou verão uma maneira de superar algo de que não gostam?”

Todos os antiliberais que Rose perfila acreditavam que o liberalismo político prescrevia uma vida sem sacrifício, uma era em que o contentamento individual reinava supremo e na qual a luta coletiva desaparecia. Isso não foi verdade no passado e não é verdade hoje. Eles se equivocaram a respeito do que o liberalismo prega verdadeiramente: que há uma identidade coletiva a ser encontrada no aperfeiçoamento coletivo, que tornar o futuro mais justo que o passado é uma missão tão grandiosa quanto qualquer outra oferecida pela antiguidade.

Mas uma crítica que eles fazem resvala no nosso presente e deveria ser levada a sério: o liberalismo político carece de uma relação melhor com o tempo. O passado pode se tornar um país estrangeiro sem aqueles que ainda vivem lá serem transformados em estrangeiros em sua própria terra? Se o futuro não está mapeado, então como persuadimos quem o teme, ou que desconfia de nós, a concordar em se aventurar em seus campos selvagens?

Suspeito que uma outra maneira de fazer essa mesma pergunta seja: A constante confrontação com nossos fracassos e deficiências é capaz de produzir uma cultura generosa e clemente? E essa cultura é capaz de se preocupar com aqueles que não apenas se sentem deixados para trás, como muitos nos EUA, mas excluídos, como muitos ucranianos se sentiram por tanto tempo?

A resposta para isso — se é que existe — pode estar no cristianismo que os antiliberais temiam, praticado por pouquíssimos na política. O que eu, como um forasteiro ao cristianismo sempre achei mais bonito a respeito dele é o quanto ele é estranho. Aqui temos uma visão de mundo construída sobre um fundamento de pecado universal e insuficiência, uma igualdade que sangra o reconhecimento de que somos imperfeitos, em vez de que todos temos de ser perfeitos. Sempre invejei a prática da confissão, muito em virtude de seu reconhecimento de que sempre há mais para confessar e, portanto, sempre haverá mais oportunidades de sermos perdoados.

É possível perceber algo desse espírito, em forma secular, nos ensaios ucranianos. O tom é absolutamente oposto ao triunfalismo, com a Rússia tomando a Crimeia e o restante da Europa dando de ombros, juntamente com os EUA. A perspectiva é trágica em grande medida e lúcida a respeito do trabalho que pode ser desfeito e da distância a ser percorrida. Mas os escritos também são generosos: imbuídos de amor à pátria, honestidade a respeito de uma história com frequência sangrenta, determinação apesar do decepcionante presente e, acima de tudo, de um compromisso mútuo.

Há muito a aprender com essa fusão entre autocrítica e solidariedade profunda. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE NEW YORK TIMES - “Depois de duas décadas de dominância, o liberalismo político está perdendo espaço entre as mentes ocidentais”, escreve Matthew Rose em seu poderoso novo livro A World After Liberalism (Um mundo depois do liberalismo).

Rose não se refere ao liberalismo político da maneira que empregamos o termo tipicamente. Não se trata de apoiar um sistema de saúde universal ou de discordar do ministro Samuel Alito, da Suprema Corte. Rose refere-se ao liberalismo enquanto conjunto de percepções compartilhadas no Ocidente: uma crença na dignidade humana, em direitos universais, no florescimento individual e no consentimento de quem é governado.

Esse liberalismo tem sido atacado por crises financeiras, pela crise climática, pelas questionáveis respostas à pandemia, por populistas de direita e pela ascendente China. Ele parece exaurido, moído, definido pelas contradições e promessas não cumpridas que se seguem à vitória, e não pela criatividade e a inspiração presentes na luta.

Mulher passa por mural que retrata o presidente Vladimir Putin segurando seu próprio corpo, em Sofia Foto: Nikolay Doychinov/AFP

Pelo menos parecia ser assim. A recusa da Ucrânia em se ajoelhar diante de Vladimir Putin lembrou ao Ocidente que, para aqueles que não têm garantido o liberalismo, vale a pena lutar por ele. Mas uma renovação verdadeira exigirá mais do que horror em relação à invasão russa ou louvores à coragem ucraniana. Significará enfrentar as deficiências do liberalismo político e redescobrir o radicalismo em seu núcleo.

A World After Liberalism é um revigorante ponto de partida para iniciar essa redescoberta, em parte porque tanto da obra se passa na era de ascensão do liberalismo, mesmo enquanto se via sob violenta ameaça. No livro, Rose perfila Oswald Spengler, Julius Evola, Francis Parker Yockey, Alain de Benoist e Samuel Francis, cinco pensadores de extrema direita do século 20 que estão experimentando uma popularidade renovada na atual direita — e cada vez mais no centro. Alguns deles influenciam nosso mundo diretamente.

Para dar um exemplo, Evola, um teórico italiano quase fascista, foi citado por Steve Bannon e traduzido para o russo por Aleksandr Dugin, o filósofo e místico que passou a ser conhecido atualmente como o “Rasputin de Putin”.

O argumento dos antiliberais é mais ou menos assim: nossas mais verdadeiras identidades têm suas raízes na terra em que nascemos e nos nossos parentes mais próximos. Nossas vidas ganham ordem e significado porque estão inseridas em uma estrutura maior e na luta pelo nosso povo. O liberalismo político e, até certo grau, o cristianismo envenenaram nosso solo cultural, deixando-nos à deriva em um mundo que privilegia o prazer e escarnece da tradição.

O multiculturalismo, nessa narrativa, torna-se um ideal conservador: deveríamos celebrar a força da distinção cultural, rejeitar as ocas compaixões universalistas dos progressistas e insistir na preservação daquilo que diferencia as pessoas. A genialidade dessa crítica, conforme escreve Rose, é que ela redefine as virtudes do liberalismo enquanto vícios.

Na teoria, o liberalismo político protege os indivíduos de uma autoridade injusta, permitindo-os buscar vidas plenas e independentes da coerção de governos. Na realidade, ele cerra profundos laços de pertencimento, deixando indivíduos expostos ao poder do Estado — e dependentes dele.

Na teoria, o liberalismo propõe uma visão neutra a respeito da natureza humana, depurada de resíduos históricos e livre de distorções ideológicas. Na realidade, ele promove uma visão de mundo burguesa, valorizando mais o poder econômico do que a virtude. Na teoria, o liberalismo torna a política algo mais pacífico, ao colocar o foco no mundano em vez do metafísico. Na realidade, ele torna a vida política caótica ao cingir comunidades em facções e partidos rivais.

Seu navegador não suporta esse video.

O presidente Volodimir Zelenski disse em uma entrevista transmitida neste domingo nos Estados Unidos que as forças russas estão cometendo 'genocídio' na Ucrânia

E o processo também é reverso. Tanto o liberalismo político quanto o cristianismo tornam-se eletrizantes quando descritos por seus críticos. Distante do difícil avanço tecnocrático das regulações comerciais e do árduo trabalho de superar o mecanismo de obstrução para aprovar leis, esse liberalismo é um prodígio de imaginação e ambição. É uma ideologia que considera os seres humanos capazes de novas formas de organização social e um movimento capaz de libertá-los de hierarquias inseridas tão profundamente nas nossas sociedades, que foram consideradas uma representação de uma ordem natural — ou até mesmo divina.

O cristianismo, também, emana uma luz com frequência em falta na política atual — e também nos bancos de suas igrejas: eis uma religião que insiste na dignidade de todas as pessoas e coloca os pobres e marginalizados no centro. Na visão de Rose, os sujeitos temem o cristianismo porque temem que ele não possa ser domado; mesmo quando os líderes que eles admiram tentam subvertê-lo para seus próprios objetivos, ele infecta suas sociedades com um igualitarismo latente, armando uma armadilha que será acionada inevitavelmente.

Parte da sinistra relevância do livro decorre do papel que a Rússia desempenha na obra. Spengler pensou que o Ocidente estava decaindo para a incoerência e que a grande força cultural seguinte poderia muito bem emergir de uma Rússia pós-bolchevique. Yockey, um dos mais notórios supremacistas brancos no zoológico de Rose, escreveu “à espera de uma Rússia ressurgente, que ajudará a corrigir um Ocidente decadente”. É justamente este o papel que Putin reivindica para si mesmo discurso após discurso, insistindo numa identidade arraigada em solo e cultura, num imperialismo justificado por poder e passado; e num conceito de si e da Rússia enquanto bastiões solitários em luta pela cultura europeia tradicional.

Quando Putin profere um discurso de guerra colocando-se ao lado de J.K. Rowling, a autora dos livros do Harry Potter, contra o cancelamento por parte daqueles que buscam direito e reconhecimento de pessoas transgênero, este é o argumento sério por trás da ilógica justaposição: Putin está tentando unir os que sonham com as certezas e conformidades do passado e se ofendem com a constante instabilidade do presente liberal. A lógica que afirma que a Ucrânia pertence à Rússia hoje porque pertenceu à Rússia no passado é parente próxima da lógica que defende as hierarquias sociais de hoje com base em seu poder passado (Rowling, deve-se dizer, não quer nada com Putin).

Terra estrangeira

O choque descabido ao ver Putin agir da mesma maneira que muitos líderes do passado agiram, tentando tomar à força o que quer apenas porque pode fazê-lo, reflete o longo trabalho do liberalismo na reelaboração não somente o que acreditamos ser moral, mas também no que acreditamos ser normal. Em sua melhor forma, e às vezes também na sua pior, o liberalismo político constrói o passado como uma terra verdadeiramente estrangeira, capaz de transformar aqueles que ainda o habitam em anacronismos em relação ao seu próprio tempo. Mas os progressistas enganam-se quando passam a acreditar que isso acontece apenas com os inimigos do liberalismo. Isso também acontece com pretensos amigos do liberalismo.

É possível perceber isso claramente em Ukraine in Histories and Stories (A Ucrânia na História e nas histórias), uma coleção editada por Volodmir Yermolenko. Há uma relevância particular em ler esse livro, já que ele foi lançado em 2019, durante o intervalo entre a anexação da Crimeia e a atual invasão da Rússia à Ucrânia. Esse passado é recente, mas também parece estrangeiro.

Nessa coleção de ensaios escritos por intelectuais ucranianos a Ucrânia não é queridinha do Ocidente, é um país que aspira ser parte do Ocidente e luta contra a indiferença e até contra o desprezo daqueles que admira. A ignorância do Ocidente em relação à Ucrânia é um tema que permeia todo o livro, com autor após autor recordando esforços fúteis em fazer os europeus se interessarem em sua experiência, sua história e suas possibilidades. “Nós, ucranianos, estamos apaixonados pela Europa, e a Europa está apaixonada pela Rússia — enquanto a Rússia odeia tanto a Ucrânia quanto a Europa”, escreve o romancista Yuri Andrukhovich.

Os autores veem a Ucrânia como uma nação enrascada dolorosamente num estado de de vir a ser, nem verdadeiramente moderna nem convictamente tradicional. Andrij Bondar, um ensaísta ucraniano, apresenta uma lista tragicômica do que falta à Ucrânia, incluindo “confiança nas instituições”, “cultura de revistas em quadrinhos”, “ética protestante do trabalho” e “Calvados ou qualquer outro destilado de maçã”. Mas a Ucrânia também tem muita coisa, incluindo “uma sociedade em geral bastante tolerante”, “capacidade de consolidar e unir esforços para alcançar objetivos comuns”, “elementos de democracia” e “um talento para resistir a adversidades”. Hoje ficou claro que é isso o que importa.

Os autores também observam que a Europa não é tudo o que diz ser. “Para nós, cidadãos da Ucrânia, a Europa de hoje ainda parece a Europa do fim do século 20, mas agora ela é completamente diferente”, escreve o filósofo ucraniano Vakhtang Kebuladze. “Entendo isso, e evidentemente me magoa ver as ações dos amigos de direita e de esquerda de Putin na Europa. Eu certamente não gosto dessa Europa.”

Presidente russo, Vladimir Putin, em evento por videoconferência de um gabinete no Kremlin Foto: Mikhail Klimentyev

Profeticamente, Kebuladze expressou a visão de que a renovação do Ocidente pode advir da experiência daqueles que lutam pelo liberalismo político, não daqueles comodamente agasalhados por ele. “Os europeus poderiam olhar para si mesmo através dos olhos daqueles cidadãos da Ucrânia que foram à Maidan defender o futuro europeu do seu país, daqueles que estão morrendo no leste pelo nosso país enquanto o protegem da invasão russa e daqueles que morrem pouco a pouco nas prisões russas, encarcerados sob acusações fabricadas”, escreve ele. “Talvez então vocês gostem de si mesmos? Ou verão uma maneira de superar algo de que não gostam?”

Todos os antiliberais que Rose perfila acreditavam que o liberalismo político prescrevia uma vida sem sacrifício, uma era em que o contentamento individual reinava supremo e na qual a luta coletiva desaparecia. Isso não foi verdade no passado e não é verdade hoje. Eles se equivocaram a respeito do que o liberalismo prega verdadeiramente: que há uma identidade coletiva a ser encontrada no aperfeiçoamento coletivo, que tornar o futuro mais justo que o passado é uma missão tão grandiosa quanto qualquer outra oferecida pela antiguidade.

Mas uma crítica que eles fazem resvala no nosso presente e deveria ser levada a sério: o liberalismo político carece de uma relação melhor com o tempo. O passado pode se tornar um país estrangeiro sem aqueles que ainda vivem lá serem transformados em estrangeiros em sua própria terra? Se o futuro não está mapeado, então como persuadimos quem o teme, ou que desconfia de nós, a concordar em se aventurar em seus campos selvagens?

Suspeito que uma outra maneira de fazer essa mesma pergunta seja: A constante confrontação com nossos fracassos e deficiências é capaz de produzir uma cultura generosa e clemente? E essa cultura é capaz de se preocupar com aqueles que não apenas se sentem deixados para trás, como muitos nos EUA, mas excluídos, como muitos ucranianos se sentiram por tanto tempo?

A resposta para isso — se é que existe — pode estar no cristianismo que os antiliberais temiam, praticado por pouquíssimos na política. O que eu, como um forasteiro ao cristianismo sempre achei mais bonito a respeito dele é o quanto ele é estranho. Aqui temos uma visão de mundo construída sobre um fundamento de pecado universal e insuficiência, uma igualdade que sangra o reconhecimento de que somos imperfeitos, em vez de que todos temos de ser perfeitos. Sempre invejei a prática da confissão, muito em virtude de seu reconhecimento de que sempre há mais para confessar e, portanto, sempre haverá mais oportunidades de sermos perdoados.

É possível perceber algo desse espírito, em forma secular, nos ensaios ucranianos. O tom é absolutamente oposto ao triunfalismo, com a Rússia tomando a Crimeia e o restante da Europa dando de ombros, juntamente com os EUA. A perspectiva é trágica em grande medida e lúcida a respeito do trabalho que pode ser desfeito e da distância a ser percorrida. Mas os escritos também são generosos: imbuídos de amor à pátria, honestidade a respeito de uma história com frequência sangrenta, determinação apesar do decepcionante presente e, acima de tudo, de um compromisso mútuo.

Há muito a aprender com essa fusão entre autocrítica e solidariedade profunda. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE NEW YORK TIMES - “Depois de duas décadas de dominância, o liberalismo político está perdendo espaço entre as mentes ocidentais”, escreve Matthew Rose em seu poderoso novo livro A World After Liberalism (Um mundo depois do liberalismo).

Rose não se refere ao liberalismo político da maneira que empregamos o termo tipicamente. Não se trata de apoiar um sistema de saúde universal ou de discordar do ministro Samuel Alito, da Suprema Corte. Rose refere-se ao liberalismo enquanto conjunto de percepções compartilhadas no Ocidente: uma crença na dignidade humana, em direitos universais, no florescimento individual e no consentimento de quem é governado.

Esse liberalismo tem sido atacado por crises financeiras, pela crise climática, pelas questionáveis respostas à pandemia, por populistas de direita e pela ascendente China. Ele parece exaurido, moído, definido pelas contradições e promessas não cumpridas que se seguem à vitória, e não pela criatividade e a inspiração presentes na luta.

Mulher passa por mural que retrata o presidente Vladimir Putin segurando seu próprio corpo, em Sofia Foto: Nikolay Doychinov/AFP

Pelo menos parecia ser assim. A recusa da Ucrânia em se ajoelhar diante de Vladimir Putin lembrou ao Ocidente que, para aqueles que não têm garantido o liberalismo, vale a pena lutar por ele. Mas uma renovação verdadeira exigirá mais do que horror em relação à invasão russa ou louvores à coragem ucraniana. Significará enfrentar as deficiências do liberalismo político e redescobrir o radicalismo em seu núcleo.

A World After Liberalism é um revigorante ponto de partida para iniciar essa redescoberta, em parte porque tanto da obra se passa na era de ascensão do liberalismo, mesmo enquanto se via sob violenta ameaça. No livro, Rose perfila Oswald Spengler, Julius Evola, Francis Parker Yockey, Alain de Benoist e Samuel Francis, cinco pensadores de extrema direita do século 20 que estão experimentando uma popularidade renovada na atual direita — e cada vez mais no centro. Alguns deles influenciam nosso mundo diretamente.

Para dar um exemplo, Evola, um teórico italiano quase fascista, foi citado por Steve Bannon e traduzido para o russo por Aleksandr Dugin, o filósofo e místico que passou a ser conhecido atualmente como o “Rasputin de Putin”.

O argumento dos antiliberais é mais ou menos assim: nossas mais verdadeiras identidades têm suas raízes na terra em que nascemos e nos nossos parentes mais próximos. Nossas vidas ganham ordem e significado porque estão inseridas em uma estrutura maior e na luta pelo nosso povo. O liberalismo político e, até certo grau, o cristianismo envenenaram nosso solo cultural, deixando-nos à deriva em um mundo que privilegia o prazer e escarnece da tradição.

O multiculturalismo, nessa narrativa, torna-se um ideal conservador: deveríamos celebrar a força da distinção cultural, rejeitar as ocas compaixões universalistas dos progressistas e insistir na preservação daquilo que diferencia as pessoas. A genialidade dessa crítica, conforme escreve Rose, é que ela redefine as virtudes do liberalismo enquanto vícios.

Na teoria, o liberalismo político protege os indivíduos de uma autoridade injusta, permitindo-os buscar vidas plenas e independentes da coerção de governos. Na realidade, ele cerra profundos laços de pertencimento, deixando indivíduos expostos ao poder do Estado — e dependentes dele.

Na teoria, o liberalismo propõe uma visão neutra a respeito da natureza humana, depurada de resíduos históricos e livre de distorções ideológicas. Na realidade, ele promove uma visão de mundo burguesa, valorizando mais o poder econômico do que a virtude. Na teoria, o liberalismo torna a política algo mais pacífico, ao colocar o foco no mundano em vez do metafísico. Na realidade, ele torna a vida política caótica ao cingir comunidades em facções e partidos rivais.

Seu navegador não suporta esse video.

O presidente Volodimir Zelenski disse em uma entrevista transmitida neste domingo nos Estados Unidos que as forças russas estão cometendo 'genocídio' na Ucrânia

E o processo também é reverso. Tanto o liberalismo político quanto o cristianismo tornam-se eletrizantes quando descritos por seus críticos. Distante do difícil avanço tecnocrático das regulações comerciais e do árduo trabalho de superar o mecanismo de obstrução para aprovar leis, esse liberalismo é um prodígio de imaginação e ambição. É uma ideologia que considera os seres humanos capazes de novas formas de organização social e um movimento capaz de libertá-los de hierarquias inseridas tão profundamente nas nossas sociedades, que foram consideradas uma representação de uma ordem natural — ou até mesmo divina.

O cristianismo, também, emana uma luz com frequência em falta na política atual — e também nos bancos de suas igrejas: eis uma religião que insiste na dignidade de todas as pessoas e coloca os pobres e marginalizados no centro. Na visão de Rose, os sujeitos temem o cristianismo porque temem que ele não possa ser domado; mesmo quando os líderes que eles admiram tentam subvertê-lo para seus próprios objetivos, ele infecta suas sociedades com um igualitarismo latente, armando uma armadilha que será acionada inevitavelmente.

Parte da sinistra relevância do livro decorre do papel que a Rússia desempenha na obra. Spengler pensou que o Ocidente estava decaindo para a incoerência e que a grande força cultural seguinte poderia muito bem emergir de uma Rússia pós-bolchevique. Yockey, um dos mais notórios supremacistas brancos no zoológico de Rose, escreveu “à espera de uma Rússia ressurgente, que ajudará a corrigir um Ocidente decadente”. É justamente este o papel que Putin reivindica para si mesmo discurso após discurso, insistindo numa identidade arraigada em solo e cultura, num imperialismo justificado por poder e passado; e num conceito de si e da Rússia enquanto bastiões solitários em luta pela cultura europeia tradicional.

Quando Putin profere um discurso de guerra colocando-se ao lado de J.K. Rowling, a autora dos livros do Harry Potter, contra o cancelamento por parte daqueles que buscam direito e reconhecimento de pessoas transgênero, este é o argumento sério por trás da ilógica justaposição: Putin está tentando unir os que sonham com as certezas e conformidades do passado e se ofendem com a constante instabilidade do presente liberal. A lógica que afirma que a Ucrânia pertence à Rússia hoje porque pertenceu à Rússia no passado é parente próxima da lógica que defende as hierarquias sociais de hoje com base em seu poder passado (Rowling, deve-se dizer, não quer nada com Putin).

Terra estrangeira

O choque descabido ao ver Putin agir da mesma maneira que muitos líderes do passado agiram, tentando tomar à força o que quer apenas porque pode fazê-lo, reflete o longo trabalho do liberalismo na reelaboração não somente o que acreditamos ser moral, mas também no que acreditamos ser normal. Em sua melhor forma, e às vezes também na sua pior, o liberalismo político constrói o passado como uma terra verdadeiramente estrangeira, capaz de transformar aqueles que ainda o habitam em anacronismos em relação ao seu próprio tempo. Mas os progressistas enganam-se quando passam a acreditar que isso acontece apenas com os inimigos do liberalismo. Isso também acontece com pretensos amigos do liberalismo.

É possível perceber isso claramente em Ukraine in Histories and Stories (A Ucrânia na História e nas histórias), uma coleção editada por Volodmir Yermolenko. Há uma relevância particular em ler esse livro, já que ele foi lançado em 2019, durante o intervalo entre a anexação da Crimeia e a atual invasão da Rússia à Ucrânia. Esse passado é recente, mas também parece estrangeiro.

Nessa coleção de ensaios escritos por intelectuais ucranianos a Ucrânia não é queridinha do Ocidente, é um país que aspira ser parte do Ocidente e luta contra a indiferença e até contra o desprezo daqueles que admira. A ignorância do Ocidente em relação à Ucrânia é um tema que permeia todo o livro, com autor após autor recordando esforços fúteis em fazer os europeus se interessarem em sua experiência, sua história e suas possibilidades. “Nós, ucranianos, estamos apaixonados pela Europa, e a Europa está apaixonada pela Rússia — enquanto a Rússia odeia tanto a Ucrânia quanto a Europa”, escreve o romancista Yuri Andrukhovich.

Os autores veem a Ucrânia como uma nação enrascada dolorosamente num estado de de vir a ser, nem verdadeiramente moderna nem convictamente tradicional. Andrij Bondar, um ensaísta ucraniano, apresenta uma lista tragicômica do que falta à Ucrânia, incluindo “confiança nas instituições”, “cultura de revistas em quadrinhos”, “ética protestante do trabalho” e “Calvados ou qualquer outro destilado de maçã”. Mas a Ucrânia também tem muita coisa, incluindo “uma sociedade em geral bastante tolerante”, “capacidade de consolidar e unir esforços para alcançar objetivos comuns”, “elementos de democracia” e “um talento para resistir a adversidades”. Hoje ficou claro que é isso o que importa.

Os autores também observam que a Europa não é tudo o que diz ser. “Para nós, cidadãos da Ucrânia, a Europa de hoje ainda parece a Europa do fim do século 20, mas agora ela é completamente diferente”, escreve o filósofo ucraniano Vakhtang Kebuladze. “Entendo isso, e evidentemente me magoa ver as ações dos amigos de direita e de esquerda de Putin na Europa. Eu certamente não gosto dessa Europa.”

Presidente russo, Vladimir Putin, em evento por videoconferência de um gabinete no Kremlin Foto: Mikhail Klimentyev

Profeticamente, Kebuladze expressou a visão de que a renovação do Ocidente pode advir da experiência daqueles que lutam pelo liberalismo político, não daqueles comodamente agasalhados por ele. “Os europeus poderiam olhar para si mesmo através dos olhos daqueles cidadãos da Ucrânia que foram à Maidan defender o futuro europeu do seu país, daqueles que estão morrendo no leste pelo nosso país enquanto o protegem da invasão russa e daqueles que morrem pouco a pouco nas prisões russas, encarcerados sob acusações fabricadas”, escreve ele. “Talvez então vocês gostem de si mesmos? Ou verão uma maneira de superar algo de que não gostam?”

Todos os antiliberais que Rose perfila acreditavam que o liberalismo político prescrevia uma vida sem sacrifício, uma era em que o contentamento individual reinava supremo e na qual a luta coletiva desaparecia. Isso não foi verdade no passado e não é verdade hoje. Eles se equivocaram a respeito do que o liberalismo prega verdadeiramente: que há uma identidade coletiva a ser encontrada no aperfeiçoamento coletivo, que tornar o futuro mais justo que o passado é uma missão tão grandiosa quanto qualquer outra oferecida pela antiguidade.

Mas uma crítica que eles fazem resvala no nosso presente e deveria ser levada a sério: o liberalismo político carece de uma relação melhor com o tempo. O passado pode se tornar um país estrangeiro sem aqueles que ainda vivem lá serem transformados em estrangeiros em sua própria terra? Se o futuro não está mapeado, então como persuadimos quem o teme, ou que desconfia de nós, a concordar em se aventurar em seus campos selvagens?

Suspeito que uma outra maneira de fazer essa mesma pergunta seja: A constante confrontação com nossos fracassos e deficiências é capaz de produzir uma cultura generosa e clemente? E essa cultura é capaz de se preocupar com aqueles que não apenas se sentem deixados para trás, como muitos nos EUA, mas excluídos, como muitos ucranianos se sentiram por tanto tempo?

A resposta para isso — se é que existe — pode estar no cristianismo que os antiliberais temiam, praticado por pouquíssimos na política. O que eu, como um forasteiro ao cristianismo sempre achei mais bonito a respeito dele é o quanto ele é estranho. Aqui temos uma visão de mundo construída sobre um fundamento de pecado universal e insuficiência, uma igualdade que sangra o reconhecimento de que somos imperfeitos, em vez de que todos temos de ser perfeitos. Sempre invejei a prática da confissão, muito em virtude de seu reconhecimento de que sempre há mais para confessar e, portanto, sempre haverá mais oportunidades de sermos perdoados.

É possível perceber algo desse espírito, em forma secular, nos ensaios ucranianos. O tom é absolutamente oposto ao triunfalismo, com a Rússia tomando a Crimeia e o restante da Europa dando de ombros, juntamente com os EUA. A perspectiva é trágica em grande medida e lúcida a respeito do trabalho que pode ser desfeito e da distância a ser percorrida. Mas os escritos também são generosos: imbuídos de amor à pátria, honestidade a respeito de uma história com frequência sangrenta, determinação apesar do decepcionante presente e, acima de tudo, de um compromisso mútuo.

Há muito a aprender com essa fusão entre autocrítica e solidariedade profunda. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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