Irã repensa seu papel como encrenqueiro regional; leia o artigo da The Economist


A República Islâmica está preocupada com sua transição para uma nova geração de líderes

Por The Economist
Atualização:

Ao que parece, a guerra em Gaza tem sido boa para o regime clerical do Irã. Primeiro, seu aliado Hamas provou-se horrivelmente mais eficaz do que a maioria dos observadores assumia em seu ataque contra Israel em 7 de outubro. Desde então, outros membros do “eixo de resistência” comprovaram o alcance do Irã, atacando alvos israelenses e americanos no Iraque e na Síria e a partir do Líbano e do Iêmen.

Os houthis, milicianos iemenitas apoiados pelo Irã, atacaram navios petroleiros no Mar Vermelho e dispararam mísseis com 800 quilômetros de alcance, permitindo ao Irã ameaçar o comércio que atravessa o Canal de Suez da mesma forma que já impõe domínio quase total sobre a passagem no Golfo Pérsico. “Eles estão mostrando que o mundo precisa do Irã se quiser manter o Oriente Médio estável”, afirma um ex-diplomata da ONU em Teerã. Em Washington, DC, políticos republicanos apresentam a ameaça regional representada pelo Irã como prova da incompetência geopolítica do presidente Joe Biden.

A exibição de força do Irã ocorre após um ano em que os aiatolás retomaram o controle sobre os cidadãos de seu país. No fim de 2022, manifestações generalizadas, motivadas pela morte sob custódia de uma mulher presa por usar seu hijab inadequadamente, pareceram próximas de derrubar o regime. Mas no fim os protestos que acabaram, não o governo clerical. O isolamento diplomático e econômico do Irã também diminui.

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O líder supremo do Irã, Ayatollah Ali Khamenei, analisa as forças armadas durante uma cerimônia de graduação para oficiais das forças armadas na academia Imam Ali em Teerã, Irã, em 10 de outubro de 2023.  Foto: WANA via REUTERS

Teerã posicionou-se como fornecedor crucial de armas para a Rússia. Suas exportações de petróleo, especialmente para a China, estão bombando. Em março, a China intermediou um acordo para a restauração das relações diplomáticas entre Irã e Arábia Saudita. Em agosto, o Irã foi convidado para aderir ao Brics, o bloco das grandes economias emergentes. E em setembro, os Estados Unidos concordaram em descongelar US$ 6 bilhões em ativos iranianos como parte de uma troca de prisioneiros.

Mas o Irã está menos confiante do que aparenta. Teerã conteve ataques de seus aliados e sinaliza apoio ao Hamas mas não vai longe o suficiente para provocar a vingança furiosa de Israel e dos EUA, cuja Marinha navega próximo às suas costas. Essa cautela, por sua vez, é reflexo de uma fraqueza na economia iraniana e atiça descontentamentos entre os iranianos comuns. Acima de tudo, o Irã está na iminência de mudar a liderança em razão da idade (84 anos) e da fragilidade de seu “líder supremo”, o aiatolá Ali Khamenei. O foco do regime recai cada vez mais em garantir sua manutenção no poder, não em fomentar caos no exterior.

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O sinal mais claro é que, tendo cultivado uma rede de arruaceiros regionais ao longo de décadas, o Irã subitamente parece relutante em permitir-lhes muita arruaça. O apelo do Hamas para os “irmãos da Resistência Islâmica no Líbano, no Irã, no Iêmen, no Iraque e na Síria (…) fundir-se ao povo da Palestina (…) unir-se e expulsar a ocupação nas nossas terras sagradas” foi em grande medida ignorado.

O Hezbollah, uma milícia libanesa aliada ao Irã, tem sido cauteloso, contentando-se com breves combates e ataques de mísseis esporádicos ao longo da fronteira norte de Israel. Um discurso longamente aguardado de seu líder, pronunciado em novembro, não passou de 80 minutos de desculpas. Conforme colocou o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, “ninguém apareceu para ajudar (o Hamas) — nem os iranianos nem o Hezbollah”.

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Autoridades iranianas ainda repetem sua fórmula para a resolução do conflito israelo-palestino: um referendo entre os “habitantes originais” da Palestina (excluindo judeus), que aprovariam a aniquilação de Israel. Mas em semanas recentes os clérigos iranianos também sinalizaram moderação. Um manifesto de teólogos publicando em meados de outubro condenou a matança de civis perpetrada pelo Hamas e por Israel.

O reconhecimento de Israel “cabe aos palestinos, evidentemente”, afirma o conselheiro de política externa de Khamenei, Kamal Kharazzi. “Nós não declararemos oposição a outras partes.” Na Assembleia Geral da ONU, em 27 de outubro, o Irã votou a favor de uma solução de dois Estados, o que implicaria no reconhecimento de Israel, um rompimento com uma antiga política de oposição à existência do Estado judaico. Khamenei chocou os linha-dura recentemente afirmando que o Irã não acredita que “judeus ou sionistas devam ser jogados no mar”. “Nós não somos radicais”, insiste um diplomata iraniano.

Uma foto fornecida pelo escritório do líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei, em 10 de outubro de 2023, mostra-o participando de uma cerimônia de formatura conjunta para cadetes de academias das forças armadas na capital iraniana, Teerã. Foto: KHAMENEI.IR / AFP
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Ou talvez eles prefiram não soar como radicais. O Irã claramente não quer ser culpado pela selvageria do Hamas. Em seu primeiro comentário a respeito do ataque, Khamenei negou o envolvimento do Irã três vezes em 90 segundos — como se pronunciasse seu triplo repúdio em um divórcio islâmico, segundo notou um adulador iraniano. “Os grupos de resistência na região não recebem ordens” do Irã, insiste o porta-voz do Ministério de Relações Exteriores, Nasser Kanani.

Se ele quis dizer que esses grupos são agentes independentes, disse bobagem. Abdolreza Shahlaei, comandante da divisão no Iêmen da Guarda Revolucionária da República Islâmica, a força militar de elite do regime, lidera os houthis das montanhas do Iêmen, de acordo com a inteligência israelense. Desde 7 de outubro, Ismail Qaani, comandante do braço estrangeiro da Guarda Revolucionária, a Força Quds, abriu “um gabinete de operações conjuntas” próximo à linha de frente Síria com Israel e lançou drones de combate da Síria mirando alvos profundos em Israel.

O Irã pode não ter ordenado o ataque de 7 de outubro, mas a Guarda Revolucionária claramente ajudou o Hamas a adquirir as capacidades necessárias para montá-lo. Interferências e ataques de drone contra defesas de Israel demonstraram seu apoio logístico. “Isso é obra de um Estado”, afirma um analista de risco político iraniano.

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A questão não é tanto se o Irã esteve envolvido ou não, e sim por que o país parece agora ansioso por evitar uma escalada. Alguns observadores consideram essa atitude puramente tática: uma forma de retardar um ataque. Uma possibilidade mais interessante seria a de uma guinada estratégica do Irã.

Enquanto o Hamas mergulha a região no caos, a atenção das lideranças iranianas está se voltando para os difíceis assuntos internos. Khamenei não seguirá no poder por muito tempo. Muitos iranianos esperam uma crise de sucessão que poderia desestabilizar o regime. “Para uma transição mais tranquila eles precisariam de uma economia melhor e uma política externa menos catastrófica”, diz Yaser Mirdamadi, estudioso iraniano da religião que vive no exílio.

Aventuras no estrangeiro e caos doméstico não propiciarão este quadro, mas um alívio para as aflições econômicas do Irã poderá fazê-lo. Foi isso que levou Khamenei, nos seis meses anteriores ao 7 de outubro, a cortar em dois terços a produção de urânio enriquecido a 60% (u-235), a interromper o assédio aos transportes marítimos americanos no Estreito de Ormuz e a dissuadir ataques de seus representantes contra alvos americanos.

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Uma foto de divulgação disponibilizada pelo escritório do Exército iraniano mostra drones Karrar caseiros iranianos exibidos durante uma cerimônia de inauguração em Teerã, Irã, em 10 de dezembro de 2023.  Foto: Escritório do Exército do Irã / EFE

Os EUA, por sua vez, optaram por ignorar a negociação do petróleo iraniano, que é alvo de sanções. A exportação de petróleo quadruplicou, passando de 300 mil barris por dia (2022) para mais de 1,2 bilhão de barris atualmente. Quando o Irã conteve seus aliados após o ataque do Hamas, Biden recompensou discretamente o governo ao permitir que o Iraque começasse a transferência de US$ 10 bilhões devidos ao Irã por despesas de energia em aberto.

Problemas domésticos

Tudo isso deve ajudar a economia. A receita do Irã com e sem o petróleo está no seu patamar mais alto desde o retorno das sanções anunciado pelo presidente Donald Trump em 2018, quando ele cancelou um acordo que previa o fim das sanções em troca da promessa iraniana de não desenvolver armas nucleares. As vendas destinadas somente à China aumentaram de 200 mil barris por dia (2020) para mais de 1,2 bilhão nos meses mais recentes. A receita com o petróleo aumentou de US$ 25,5 bilhões (2021) para US$ 42,6 bilhões (2022). O orçamento iraniano prevê que o montante chegue a US$ 71 bilhões em 2024.

Mas é preciso que muito mais ocorra para que o benefício chegue aos cidadãos iranianos. Por mais que as exportações do Irã tenham aumentado vertiginosamente, as sanções americanas ainda dificultam o repatriamento desse lucro. Os negociantes de petróleo da “terra do pistache” chegam com malas cheias de dinheiro em Dubai. Parte é enviada por terra passando pelo Curdistão iraquiano ou pelo Afeganistão, ou é lavada em casas de câmbio informais e transações com criptomoedas em Dubai.

Perto do porto de al-Hamriya há um centro de casas de massagens que, oferecendo seus serviços por dinheiro, provavelmente ajudam a lavá-lo. Ainda assim, “boa parte do dinheiro permanece ali”, diz um diplomat ocidental em Dubai, indicando com um gesto da cabeça os arranha-céus que se estendem até o horizonte. A cidade vibra com novas casas noturnas e centros de arte iranianos.

O Irã não pode arcar com esse custo. Mesmo se todo o dinheiro fosse remetido ao país, o Irã ainda teria diante de si um grande déficit orçamentário. O país precisa exportar 1,5 milhão de barris por dia a um preço de US$ 85 cada para manter o orçamento equilibrado. Mas, atualmente, o petróleo está valendo menos do que isso, e o Irã precisa oferecer aos compradores um desconto substancial sobre o preço de mercado.

Em casa, a Guarda Revolucionária e seus clientes capturam boa parte da renda do petróleo, criando uma economia de dois escalões. Os aghazadehha, filhos da elite, desfilam seus Lamborghinis no norte de Teerã e visitam Londres e Dubai para fazer compras e se divertir. Com dificuldade para obter vistos americanos, mas tão atraídos pelo país quanto as elites pré-revolucionárias, milhares voam para o Canadá. Há tantos iranianos em Toronto que a cidade foi apelidada de Teerãnto.

Iranianos passam de carro por um posto de gasolina fora de serviço em Teerã, Irã, em 18 de dezembro de 2023.  Foto: ABEDIN TAHERKENAREH / EFE
Um tripulante manuseia um tambor de óleo a bordo do convés do navio petroleiro 'Devon' em direção à Ilha Kharq para transportar petróleo bruto para os mercados de exportação em Bandar Abbas, Irã, na sexta-feira, 23 de março de 2018.  Foto: Ali Mohammadi / Bloomberg

A vida é mais difícil para a maioria dos iranianos. A inflação acelerou, ultrapassando o crescimento dos salários. O preço dos alimentos acumulou alta de 40% no ano; o valor da carne aumentou duas vezes mais que isso. A população vivendo na pobreza aumentou de 19% para 30% em uma década, de acordo com números oficiais.

Mais de 26 milhões de pessoas, ou 30% da população, vivem com menos de US$ 7 por dia, critério oficial para a definição da pobreza. Professores universitários fazem bico como motoristas de táxi. Há relatos de iranianos vendendo partes de seus corpos para a Turquia e os Emirados Árabes Unidos. Quem tem dinheiro guarda-o no exterior.

São problemas que desafiariam os políticos mais hábeis. Infelizmente, o governo liderado pelo presidente Ebrahim Raisi é amplamente considerado o mais inepto da história da república islâmica, bem como o mais linha-dura. A maioria dos ministros é de veteranos da Guarda Revolucionária ou de formandos da universidade/seminário Imam Sadiq, situada na capital e conhecida pelo viés ideológico.

É uma liderança mal-equipada. Nos seis meses mais recentes eles importaram gasolina a preço de mercado para compensar a insuficiência na produção local. Ainda assim, eles continuam subsidiando o combustível, mantendo o preço em dois centavos por litro, por medo do tumulto que se seguiria a um eventual aumento nos preços. Governos anteriores avançaram sobre os fundos públicos de pensão. Para lidar com o déficit resultante, o parlamento decidiu no mês passado que os trabalhadores teriam de permanecer nos empregos por cinco anos a mais, levando a manifestações de pensionistas.

O Irã tem muito a oferecer para os investidores estrangeiros, mas as sanções americanas, o protecionismo e a má gestão afastam praticamente todo mundo. A China já assinou pilhas de documentos, mas aguarda a suspensão das sanções para colocar seus planos em ação.

O investimento saudita depende do fim do apoio do Irã aos seus grupos paramilitares aliados. A Rússia é a última esperança. Em troca de armas iranianas, especialmente drones, usadas na invasão russa à Ucrânia, os russos vão investir nos campos de petróleo no país e em uma ferrovia norte-sul para chegar ao Oceano Índico. Mas, até o momento, a maior parceria entre os dois países tem sido na evasão das sanções ocidentais por meio de intermediários em Dubai.

Um manifestante iraniano segura um cartaz anti-Israel durante uma manifestação pró-Palestina na Praça Enqelab-e-Eslami (Revolução Islâmica) em Teerã, Irã, em 18 de novembro de 2023. Foto: Vahid Salemi / AP

Os dramas ambientais se somam aos econômicos. No verão passado, as temperaturas no sul do país chegaram perto dos 60°C. A seca praticamente esvaziou os reservatórios. A desertificação está destruindo a região produtora de alimentos, levando centenas de milhares de pessoas às cidades. Mas essas também estão passando por blecautes e cortes no fornecimento de água, levando a novos protestos. Até 2050 a escassez de água poderá levar 70% dos iranianos a deixarem o país, alertou um assessor da presidência.

Tais estresses tornam a transição vindoura para uma nova liderança ainda mais tensa do que seria. Na tentativa de consolidar o sistema, Khamenei expurgou dele os céticos. Estão marcadas para março as eleições da Assembleia de Especialistas, que escolhe o líder supremo, e do parlamento.

Mas o que antes era um processo relativamente concorrido se assemelha cada vez mais aos teatros encenados por outras autocracias do Oriente Médio. Reformistas e pragmáticos foram expulsos do parlamento. O poder está mais concentrado e, privado de uma base popular, encontra-se fragilizado. “Mudamos de uma forma de democracia para uma ditadura”, diz um analista iraniano que visita Teerã frequentemente.

O que virá a seguir?

Até o momento, Khamenei se recusou a nomear um vice, que seria visto como provável sucessor. Raisi está no páreo para assumir (Khamenei foi presidente antes de se tornar líder supremo). Mas pesa contra Raisi seu histórico de incompetência econômica. Hassan Rouhani, antecessor dele, teve uma presidência melhor, mas os linhas-duras iranianos desconfiam dele. Talvez Khamenei esteja preparando o segundo filho, Mojtaba, para sucedê-lo, mas os herdeiros de uma revolução que depôs uma dinastia relutam em criar outra. A morte ou a aposentadoria de Khamenei pode desencadear uma disputa violenta pelo poder em meio à elite.

Inicialmente, pareceu que a guerra em Gaza poderia levar as tensões domésticas do Irã para além do ponto de retorno. Os iranianos que vivem em más condições se ressentiram ao ver o dinheiro enviado a milícias estrangeiras. “É como se nós fôssemos os aliados deles”, queixou-se um professor universitário, temendo que extremistas palestinos arrastem o Irã para o conflito. Alguns iranianos chegaram até a defender os inimigos do regime.

Nos cafés, baristas prenderam estrelas de Davi em seus aventais. Quando um torcedor leal ao regime agitou uma bandeira da Palestina em um estádio de futebol em Teerã, as torcidas gritaram para que ele a enfiasse em algum lugar. Capturando o clima, um cartunista iraniano retratou um aiatolá depositando uma bandeira de Israel no chão para ser pisoteada pela multidão, que apenas a evita andando na ponta dos pés.

Cadetes da polícia do Irã marcham durante um desfile militar anual nos arredores de Teerã, Irã, sexta-feira, 22 de setembro de 2023.  Foto: Vahid Salemi / AP
Membros das forças pré-militares iranianas (Basij) marcham enquanto o míssil iraniano de longo alcance "Sejil" é exibido durante uma manifestação anti-Israel para mostrar sua solidariedade com o povo de Gaza, em Teerã, Irã, em 24 de novembro de 2023. Foto: ABEDIN TAHERKENAREH / EFE

Por enquanto, o regime busca aplacar seus cidadãos sem se render formalmente a eles. Os policiais da teocracia seguem ativos. Mulheres vestindo chadors e faixas verdes com o verde revolucionário monitoram a adesão do público ao código de vestimenta nas entradas do metrô. Professores universitários podem ser expulsos por permitir a presença de mulheres sem lenço na cabeça durante as aulas. Cafés que burlam o código são multados e fechados.

Mas as autoridades não conseguem fechar todos os cafés. Em muitos deles, mal se vê alguma mulher de lenço. O Conselho dos Guardiães, assembleia de clérigos e notáveis que analisa as leis, decidiu em outubro contra uma lei de castidade aprovada pela ala linha-dura do parlamento, alegando que o seu policiamento seria anti-islâmico. Sem admiti-lo, o regime está cedendo à pressão popular, como ocorreu anteriormente quando foi revogada a proibição a Beethoven, à celebração de festivais pré-islâmicos e ao uso das antenas de TV via satélite.

A elite emergente pode ser instintivamente mais liberal do que seus antecessores. Muitos dos filhos dos ideólogos se sentem tão atraídos pelas liberdades ocidentais quanto os demais iranianos jovens. “Eles veem como é a vida em Dubai ou na Turquia e não vão obedecer às regras islâmicas que o regime ditava no passado”, diz um analista em Teerã. Alguns observadores indicam que, caso suceda ao pai, Mojtaba Khamenei poderia imitar aspectos do governo de Muhammad bin Salman, o autoritário modernizador que governa a Arábia Saudita.

Talvez o Irã se torne mais autocrático, mas mais livre dos rigores religiosos. Outros enxergam na Guarda Revolucionária um motor mais provável de mudanças. De acordo com a constituição, o sucessor de Khamenei deve ser um clérigo qualificado. Mas, se os clérigos não conseguirem concordar com um nome, alguns generais da Guarda Revolucionária poderão ditar a escolha.

Alguns analistas esperam que, com o tempo, a contenção regional que o país demonstrou desde o 7 de outubro possa se tornar a norma. Talvez o Irã prefira a manutenção do status quo ao caos revolucionário. Seus satélites regionais já têm papéis dominantes no Irã, Líbano, Síria e Iêmen; o país pode buscar uma consolidação em lugar de uma expansão.

Alguns analistas israelenses de segurança se perguntam se, depois de conter o Hezbollah, seria possível ao Irã transferir os militantes do movimento para o outro lado do Rio Litani, 29 quilômetros ao norte da fronteira israelense. Um acordo de dois estados entre Israel e os palestinos possibilitaria que o Irã recuasse no seu conflito com Israel. Os iranianos sabem que é improvável que os EUA ressuscitem o moribundo acordo nuclear, suspendendo as sanções em um ano eleitoral. Mas, ainda que difícil, uma negociação ampla com os EUA no médio prazo é concebível.

Apesar da fúria popular, o regime enfrenta pouca oposição interna organizada. A oposição no exílio está fragmentada. Seu canal de TV mais popular, Manoto, anunciou recentemente que encerrará as atividades. Os defensores de uma mudança de governo adiaram suas esperanças para depois da eleição nos EUA, que alguns esperam resultar no retorno de Trump e sua política de pressão total. Mas o regime, que fará 45 anos em 2024, já demonstrou resiliência. Após o ataque do Hamas, revelou-se que talvez este governo não esteja mais disposto a levar uma vida tão perigosa quanto a de seus aliados. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Ao que parece, a guerra em Gaza tem sido boa para o regime clerical do Irã. Primeiro, seu aliado Hamas provou-se horrivelmente mais eficaz do que a maioria dos observadores assumia em seu ataque contra Israel em 7 de outubro. Desde então, outros membros do “eixo de resistência” comprovaram o alcance do Irã, atacando alvos israelenses e americanos no Iraque e na Síria e a partir do Líbano e do Iêmen.

Os houthis, milicianos iemenitas apoiados pelo Irã, atacaram navios petroleiros no Mar Vermelho e dispararam mísseis com 800 quilômetros de alcance, permitindo ao Irã ameaçar o comércio que atravessa o Canal de Suez da mesma forma que já impõe domínio quase total sobre a passagem no Golfo Pérsico. “Eles estão mostrando que o mundo precisa do Irã se quiser manter o Oriente Médio estável”, afirma um ex-diplomata da ONU em Teerã. Em Washington, DC, políticos republicanos apresentam a ameaça regional representada pelo Irã como prova da incompetência geopolítica do presidente Joe Biden.

A exibição de força do Irã ocorre após um ano em que os aiatolás retomaram o controle sobre os cidadãos de seu país. No fim de 2022, manifestações generalizadas, motivadas pela morte sob custódia de uma mulher presa por usar seu hijab inadequadamente, pareceram próximas de derrubar o regime. Mas no fim os protestos que acabaram, não o governo clerical. O isolamento diplomático e econômico do Irã também diminui.

O líder supremo do Irã, Ayatollah Ali Khamenei, analisa as forças armadas durante uma cerimônia de graduação para oficiais das forças armadas na academia Imam Ali em Teerã, Irã, em 10 de outubro de 2023.  Foto: WANA via REUTERS

Teerã posicionou-se como fornecedor crucial de armas para a Rússia. Suas exportações de petróleo, especialmente para a China, estão bombando. Em março, a China intermediou um acordo para a restauração das relações diplomáticas entre Irã e Arábia Saudita. Em agosto, o Irã foi convidado para aderir ao Brics, o bloco das grandes economias emergentes. E em setembro, os Estados Unidos concordaram em descongelar US$ 6 bilhões em ativos iranianos como parte de uma troca de prisioneiros.

Mas o Irã está menos confiante do que aparenta. Teerã conteve ataques de seus aliados e sinaliza apoio ao Hamas mas não vai longe o suficiente para provocar a vingança furiosa de Israel e dos EUA, cuja Marinha navega próximo às suas costas. Essa cautela, por sua vez, é reflexo de uma fraqueza na economia iraniana e atiça descontentamentos entre os iranianos comuns. Acima de tudo, o Irã está na iminência de mudar a liderança em razão da idade (84 anos) e da fragilidade de seu “líder supremo”, o aiatolá Ali Khamenei. O foco do regime recai cada vez mais em garantir sua manutenção no poder, não em fomentar caos no exterior.

O sinal mais claro é que, tendo cultivado uma rede de arruaceiros regionais ao longo de décadas, o Irã subitamente parece relutante em permitir-lhes muita arruaça. O apelo do Hamas para os “irmãos da Resistência Islâmica no Líbano, no Irã, no Iêmen, no Iraque e na Síria (…) fundir-se ao povo da Palestina (…) unir-se e expulsar a ocupação nas nossas terras sagradas” foi em grande medida ignorado.

O Hezbollah, uma milícia libanesa aliada ao Irã, tem sido cauteloso, contentando-se com breves combates e ataques de mísseis esporádicos ao longo da fronteira norte de Israel. Um discurso longamente aguardado de seu líder, pronunciado em novembro, não passou de 80 minutos de desculpas. Conforme colocou o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, “ninguém apareceu para ajudar (o Hamas) — nem os iranianos nem o Hezbollah”.

Autoridades iranianas ainda repetem sua fórmula para a resolução do conflito israelo-palestino: um referendo entre os “habitantes originais” da Palestina (excluindo judeus), que aprovariam a aniquilação de Israel. Mas em semanas recentes os clérigos iranianos também sinalizaram moderação. Um manifesto de teólogos publicando em meados de outubro condenou a matança de civis perpetrada pelo Hamas e por Israel.

O reconhecimento de Israel “cabe aos palestinos, evidentemente”, afirma o conselheiro de política externa de Khamenei, Kamal Kharazzi. “Nós não declararemos oposição a outras partes.” Na Assembleia Geral da ONU, em 27 de outubro, o Irã votou a favor de uma solução de dois Estados, o que implicaria no reconhecimento de Israel, um rompimento com uma antiga política de oposição à existência do Estado judaico. Khamenei chocou os linha-dura recentemente afirmando que o Irã não acredita que “judeus ou sionistas devam ser jogados no mar”. “Nós não somos radicais”, insiste um diplomata iraniano.

Uma foto fornecida pelo escritório do líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei, em 10 de outubro de 2023, mostra-o participando de uma cerimônia de formatura conjunta para cadetes de academias das forças armadas na capital iraniana, Teerã. Foto: KHAMENEI.IR / AFP

Ou talvez eles prefiram não soar como radicais. O Irã claramente não quer ser culpado pela selvageria do Hamas. Em seu primeiro comentário a respeito do ataque, Khamenei negou o envolvimento do Irã três vezes em 90 segundos — como se pronunciasse seu triplo repúdio em um divórcio islâmico, segundo notou um adulador iraniano. “Os grupos de resistência na região não recebem ordens” do Irã, insiste o porta-voz do Ministério de Relações Exteriores, Nasser Kanani.

Se ele quis dizer que esses grupos são agentes independentes, disse bobagem. Abdolreza Shahlaei, comandante da divisão no Iêmen da Guarda Revolucionária da República Islâmica, a força militar de elite do regime, lidera os houthis das montanhas do Iêmen, de acordo com a inteligência israelense. Desde 7 de outubro, Ismail Qaani, comandante do braço estrangeiro da Guarda Revolucionária, a Força Quds, abriu “um gabinete de operações conjuntas” próximo à linha de frente Síria com Israel e lançou drones de combate da Síria mirando alvos profundos em Israel.

O Irã pode não ter ordenado o ataque de 7 de outubro, mas a Guarda Revolucionária claramente ajudou o Hamas a adquirir as capacidades necessárias para montá-lo. Interferências e ataques de drone contra defesas de Israel demonstraram seu apoio logístico. “Isso é obra de um Estado”, afirma um analista de risco político iraniano.

A questão não é tanto se o Irã esteve envolvido ou não, e sim por que o país parece agora ansioso por evitar uma escalada. Alguns observadores consideram essa atitude puramente tática: uma forma de retardar um ataque. Uma possibilidade mais interessante seria a de uma guinada estratégica do Irã.

Enquanto o Hamas mergulha a região no caos, a atenção das lideranças iranianas está se voltando para os difíceis assuntos internos. Khamenei não seguirá no poder por muito tempo. Muitos iranianos esperam uma crise de sucessão que poderia desestabilizar o regime. “Para uma transição mais tranquila eles precisariam de uma economia melhor e uma política externa menos catastrófica”, diz Yaser Mirdamadi, estudioso iraniano da religião que vive no exílio.

Aventuras no estrangeiro e caos doméstico não propiciarão este quadro, mas um alívio para as aflições econômicas do Irã poderá fazê-lo. Foi isso que levou Khamenei, nos seis meses anteriores ao 7 de outubro, a cortar em dois terços a produção de urânio enriquecido a 60% (u-235), a interromper o assédio aos transportes marítimos americanos no Estreito de Ormuz e a dissuadir ataques de seus representantes contra alvos americanos.

Uma foto de divulgação disponibilizada pelo escritório do Exército iraniano mostra drones Karrar caseiros iranianos exibidos durante uma cerimônia de inauguração em Teerã, Irã, em 10 de dezembro de 2023.  Foto: Escritório do Exército do Irã / EFE

Os EUA, por sua vez, optaram por ignorar a negociação do petróleo iraniano, que é alvo de sanções. A exportação de petróleo quadruplicou, passando de 300 mil barris por dia (2022) para mais de 1,2 bilhão de barris atualmente. Quando o Irã conteve seus aliados após o ataque do Hamas, Biden recompensou discretamente o governo ao permitir que o Iraque começasse a transferência de US$ 10 bilhões devidos ao Irã por despesas de energia em aberto.

Problemas domésticos

Tudo isso deve ajudar a economia. A receita do Irã com e sem o petróleo está no seu patamar mais alto desde o retorno das sanções anunciado pelo presidente Donald Trump em 2018, quando ele cancelou um acordo que previa o fim das sanções em troca da promessa iraniana de não desenvolver armas nucleares. As vendas destinadas somente à China aumentaram de 200 mil barris por dia (2020) para mais de 1,2 bilhão nos meses mais recentes. A receita com o petróleo aumentou de US$ 25,5 bilhões (2021) para US$ 42,6 bilhões (2022). O orçamento iraniano prevê que o montante chegue a US$ 71 bilhões em 2024.

Mas é preciso que muito mais ocorra para que o benefício chegue aos cidadãos iranianos. Por mais que as exportações do Irã tenham aumentado vertiginosamente, as sanções americanas ainda dificultam o repatriamento desse lucro. Os negociantes de petróleo da “terra do pistache” chegam com malas cheias de dinheiro em Dubai. Parte é enviada por terra passando pelo Curdistão iraquiano ou pelo Afeganistão, ou é lavada em casas de câmbio informais e transações com criptomoedas em Dubai.

Perto do porto de al-Hamriya há um centro de casas de massagens que, oferecendo seus serviços por dinheiro, provavelmente ajudam a lavá-lo. Ainda assim, “boa parte do dinheiro permanece ali”, diz um diplomat ocidental em Dubai, indicando com um gesto da cabeça os arranha-céus que se estendem até o horizonte. A cidade vibra com novas casas noturnas e centros de arte iranianos.

O Irã não pode arcar com esse custo. Mesmo se todo o dinheiro fosse remetido ao país, o Irã ainda teria diante de si um grande déficit orçamentário. O país precisa exportar 1,5 milhão de barris por dia a um preço de US$ 85 cada para manter o orçamento equilibrado. Mas, atualmente, o petróleo está valendo menos do que isso, e o Irã precisa oferecer aos compradores um desconto substancial sobre o preço de mercado.

Em casa, a Guarda Revolucionária e seus clientes capturam boa parte da renda do petróleo, criando uma economia de dois escalões. Os aghazadehha, filhos da elite, desfilam seus Lamborghinis no norte de Teerã e visitam Londres e Dubai para fazer compras e se divertir. Com dificuldade para obter vistos americanos, mas tão atraídos pelo país quanto as elites pré-revolucionárias, milhares voam para o Canadá. Há tantos iranianos em Toronto que a cidade foi apelidada de Teerãnto.

Iranianos passam de carro por um posto de gasolina fora de serviço em Teerã, Irã, em 18 de dezembro de 2023.  Foto: ABEDIN TAHERKENAREH / EFE
Um tripulante manuseia um tambor de óleo a bordo do convés do navio petroleiro 'Devon' em direção à Ilha Kharq para transportar petróleo bruto para os mercados de exportação em Bandar Abbas, Irã, na sexta-feira, 23 de março de 2018.  Foto: Ali Mohammadi / Bloomberg

A vida é mais difícil para a maioria dos iranianos. A inflação acelerou, ultrapassando o crescimento dos salários. O preço dos alimentos acumulou alta de 40% no ano; o valor da carne aumentou duas vezes mais que isso. A população vivendo na pobreza aumentou de 19% para 30% em uma década, de acordo com números oficiais.

Mais de 26 milhões de pessoas, ou 30% da população, vivem com menos de US$ 7 por dia, critério oficial para a definição da pobreza. Professores universitários fazem bico como motoristas de táxi. Há relatos de iranianos vendendo partes de seus corpos para a Turquia e os Emirados Árabes Unidos. Quem tem dinheiro guarda-o no exterior.

São problemas que desafiariam os políticos mais hábeis. Infelizmente, o governo liderado pelo presidente Ebrahim Raisi é amplamente considerado o mais inepto da história da república islâmica, bem como o mais linha-dura. A maioria dos ministros é de veteranos da Guarda Revolucionária ou de formandos da universidade/seminário Imam Sadiq, situada na capital e conhecida pelo viés ideológico.

É uma liderança mal-equipada. Nos seis meses mais recentes eles importaram gasolina a preço de mercado para compensar a insuficiência na produção local. Ainda assim, eles continuam subsidiando o combustível, mantendo o preço em dois centavos por litro, por medo do tumulto que se seguiria a um eventual aumento nos preços. Governos anteriores avançaram sobre os fundos públicos de pensão. Para lidar com o déficit resultante, o parlamento decidiu no mês passado que os trabalhadores teriam de permanecer nos empregos por cinco anos a mais, levando a manifestações de pensionistas.

O Irã tem muito a oferecer para os investidores estrangeiros, mas as sanções americanas, o protecionismo e a má gestão afastam praticamente todo mundo. A China já assinou pilhas de documentos, mas aguarda a suspensão das sanções para colocar seus planos em ação.

O investimento saudita depende do fim do apoio do Irã aos seus grupos paramilitares aliados. A Rússia é a última esperança. Em troca de armas iranianas, especialmente drones, usadas na invasão russa à Ucrânia, os russos vão investir nos campos de petróleo no país e em uma ferrovia norte-sul para chegar ao Oceano Índico. Mas, até o momento, a maior parceria entre os dois países tem sido na evasão das sanções ocidentais por meio de intermediários em Dubai.

Um manifestante iraniano segura um cartaz anti-Israel durante uma manifestação pró-Palestina na Praça Enqelab-e-Eslami (Revolução Islâmica) em Teerã, Irã, em 18 de novembro de 2023. Foto: Vahid Salemi / AP

Os dramas ambientais se somam aos econômicos. No verão passado, as temperaturas no sul do país chegaram perto dos 60°C. A seca praticamente esvaziou os reservatórios. A desertificação está destruindo a região produtora de alimentos, levando centenas de milhares de pessoas às cidades. Mas essas também estão passando por blecautes e cortes no fornecimento de água, levando a novos protestos. Até 2050 a escassez de água poderá levar 70% dos iranianos a deixarem o país, alertou um assessor da presidência.

Tais estresses tornam a transição vindoura para uma nova liderança ainda mais tensa do que seria. Na tentativa de consolidar o sistema, Khamenei expurgou dele os céticos. Estão marcadas para março as eleições da Assembleia de Especialistas, que escolhe o líder supremo, e do parlamento.

Mas o que antes era um processo relativamente concorrido se assemelha cada vez mais aos teatros encenados por outras autocracias do Oriente Médio. Reformistas e pragmáticos foram expulsos do parlamento. O poder está mais concentrado e, privado de uma base popular, encontra-se fragilizado. “Mudamos de uma forma de democracia para uma ditadura”, diz um analista iraniano que visita Teerã frequentemente.

O que virá a seguir?

Até o momento, Khamenei se recusou a nomear um vice, que seria visto como provável sucessor. Raisi está no páreo para assumir (Khamenei foi presidente antes de se tornar líder supremo). Mas pesa contra Raisi seu histórico de incompetência econômica. Hassan Rouhani, antecessor dele, teve uma presidência melhor, mas os linhas-duras iranianos desconfiam dele. Talvez Khamenei esteja preparando o segundo filho, Mojtaba, para sucedê-lo, mas os herdeiros de uma revolução que depôs uma dinastia relutam em criar outra. A morte ou a aposentadoria de Khamenei pode desencadear uma disputa violenta pelo poder em meio à elite.

Inicialmente, pareceu que a guerra em Gaza poderia levar as tensões domésticas do Irã para além do ponto de retorno. Os iranianos que vivem em más condições se ressentiram ao ver o dinheiro enviado a milícias estrangeiras. “É como se nós fôssemos os aliados deles”, queixou-se um professor universitário, temendo que extremistas palestinos arrastem o Irã para o conflito. Alguns iranianos chegaram até a defender os inimigos do regime.

Nos cafés, baristas prenderam estrelas de Davi em seus aventais. Quando um torcedor leal ao regime agitou uma bandeira da Palestina em um estádio de futebol em Teerã, as torcidas gritaram para que ele a enfiasse em algum lugar. Capturando o clima, um cartunista iraniano retratou um aiatolá depositando uma bandeira de Israel no chão para ser pisoteada pela multidão, que apenas a evita andando na ponta dos pés.

Cadetes da polícia do Irã marcham durante um desfile militar anual nos arredores de Teerã, Irã, sexta-feira, 22 de setembro de 2023.  Foto: Vahid Salemi / AP
Membros das forças pré-militares iranianas (Basij) marcham enquanto o míssil iraniano de longo alcance "Sejil" é exibido durante uma manifestação anti-Israel para mostrar sua solidariedade com o povo de Gaza, em Teerã, Irã, em 24 de novembro de 2023. Foto: ABEDIN TAHERKENAREH / EFE

Por enquanto, o regime busca aplacar seus cidadãos sem se render formalmente a eles. Os policiais da teocracia seguem ativos. Mulheres vestindo chadors e faixas verdes com o verde revolucionário monitoram a adesão do público ao código de vestimenta nas entradas do metrô. Professores universitários podem ser expulsos por permitir a presença de mulheres sem lenço na cabeça durante as aulas. Cafés que burlam o código são multados e fechados.

Mas as autoridades não conseguem fechar todos os cafés. Em muitos deles, mal se vê alguma mulher de lenço. O Conselho dos Guardiães, assembleia de clérigos e notáveis que analisa as leis, decidiu em outubro contra uma lei de castidade aprovada pela ala linha-dura do parlamento, alegando que o seu policiamento seria anti-islâmico. Sem admiti-lo, o regime está cedendo à pressão popular, como ocorreu anteriormente quando foi revogada a proibição a Beethoven, à celebração de festivais pré-islâmicos e ao uso das antenas de TV via satélite.

A elite emergente pode ser instintivamente mais liberal do que seus antecessores. Muitos dos filhos dos ideólogos se sentem tão atraídos pelas liberdades ocidentais quanto os demais iranianos jovens. “Eles veem como é a vida em Dubai ou na Turquia e não vão obedecer às regras islâmicas que o regime ditava no passado”, diz um analista em Teerã. Alguns observadores indicam que, caso suceda ao pai, Mojtaba Khamenei poderia imitar aspectos do governo de Muhammad bin Salman, o autoritário modernizador que governa a Arábia Saudita.

Talvez o Irã se torne mais autocrático, mas mais livre dos rigores religiosos. Outros enxergam na Guarda Revolucionária um motor mais provável de mudanças. De acordo com a constituição, o sucessor de Khamenei deve ser um clérigo qualificado. Mas, se os clérigos não conseguirem concordar com um nome, alguns generais da Guarda Revolucionária poderão ditar a escolha.

Alguns analistas esperam que, com o tempo, a contenção regional que o país demonstrou desde o 7 de outubro possa se tornar a norma. Talvez o Irã prefira a manutenção do status quo ao caos revolucionário. Seus satélites regionais já têm papéis dominantes no Irã, Líbano, Síria e Iêmen; o país pode buscar uma consolidação em lugar de uma expansão.

Alguns analistas israelenses de segurança se perguntam se, depois de conter o Hezbollah, seria possível ao Irã transferir os militantes do movimento para o outro lado do Rio Litani, 29 quilômetros ao norte da fronteira israelense. Um acordo de dois estados entre Israel e os palestinos possibilitaria que o Irã recuasse no seu conflito com Israel. Os iranianos sabem que é improvável que os EUA ressuscitem o moribundo acordo nuclear, suspendendo as sanções em um ano eleitoral. Mas, ainda que difícil, uma negociação ampla com os EUA no médio prazo é concebível.

Apesar da fúria popular, o regime enfrenta pouca oposição interna organizada. A oposição no exílio está fragmentada. Seu canal de TV mais popular, Manoto, anunciou recentemente que encerrará as atividades. Os defensores de uma mudança de governo adiaram suas esperanças para depois da eleição nos EUA, que alguns esperam resultar no retorno de Trump e sua política de pressão total. Mas o regime, que fará 45 anos em 2024, já demonstrou resiliência. Após o ataque do Hamas, revelou-se que talvez este governo não esteja mais disposto a levar uma vida tão perigosa quanto a de seus aliados. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Ao que parece, a guerra em Gaza tem sido boa para o regime clerical do Irã. Primeiro, seu aliado Hamas provou-se horrivelmente mais eficaz do que a maioria dos observadores assumia em seu ataque contra Israel em 7 de outubro. Desde então, outros membros do “eixo de resistência” comprovaram o alcance do Irã, atacando alvos israelenses e americanos no Iraque e na Síria e a partir do Líbano e do Iêmen.

Os houthis, milicianos iemenitas apoiados pelo Irã, atacaram navios petroleiros no Mar Vermelho e dispararam mísseis com 800 quilômetros de alcance, permitindo ao Irã ameaçar o comércio que atravessa o Canal de Suez da mesma forma que já impõe domínio quase total sobre a passagem no Golfo Pérsico. “Eles estão mostrando que o mundo precisa do Irã se quiser manter o Oriente Médio estável”, afirma um ex-diplomata da ONU em Teerã. Em Washington, DC, políticos republicanos apresentam a ameaça regional representada pelo Irã como prova da incompetência geopolítica do presidente Joe Biden.

A exibição de força do Irã ocorre após um ano em que os aiatolás retomaram o controle sobre os cidadãos de seu país. No fim de 2022, manifestações generalizadas, motivadas pela morte sob custódia de uma mulher presa por usar seu hijab inadequadamente, pareceram próximas de derrubar o regime. Mas no fim os protestos que acabaram, não o governo clerical. O isolamento diplomático e econômico do Irã também diminui.

O líder supremo do Irã, Ayatollah Ali Khamenei, analisa as forças armadas durante uma cerimônia de graduação para oficiais das forças armadas na academia Imam Ali em Teerã, Irã, em 10 de outubro de 2023.  Foto: WANA via REUTERS

Teerã posicionou-se como fornecedor crucial de armas para a Rússia. Suas exportações de petróleo, especialmente para a China, estão bombando. Em março, a China intermediou um acordo para a restauração das relações diplomáticas entre Irã e Arábia Saudita. Em agosto, o Irã foi convidado para aderir ao Brics, o bloco das grandes economias emergentes. E em setembro, os Estados Unidos concordaram em descongelar US$ 6 bilhões em ativos iranianos como parte de uma troca de prisioneiros.

Mas o Irã está menos confiante do que aparenta. Teerã conteve ataques de seus aliados e sinaliza apoio ao Hamas mas não vai longe o suficiente para provocar a vingança furiosa de Israel e dos EUA, cuja Marinha navega próximo às suas costas. Essa cautela, por sua vez, é reflexo de uma fraqueza na economia iraniana e atiça descontentamentos entre os iranianos comuns. Acima de tudo, o Irã está na iminência de mudar a liderança em razão da idade (84 anos) e da fragilidade de seu “líder supremo”, o aiatolá Ali Khamenei. O foco do regime recai cada vez mais em garantir sua manutenção no poder, não em fomentar caos no exterior.

O sinal mais claro é que, tendo cultivado uma rede de arruaceiros regionais ao longo de décadas, o Irã subitamente parece relutante em permitir-lhes muita arruaça. O apelo do Hamas para os “irmãos da Resistência Islâmica no Líbano, no Irã, no Iêmen, no Iraque e na Síria (…) fundir-se ao povo da Palestina (…) unir-se e expulsar a ocupação nas nossas terras sagradas” foi em grande medida ignorado.

O Hezbollah, uma milícia libanesa aliada ao Irã, tem sido cauteloso, contentando-se com breves combates e ataques de mísseis esporádicos ao longo da fronteira norte de Israel. Um discurso longamente aguardado de seu líder, pronunciado em novembro, não passou de 80 minutos de desculpas. Conforme colocou o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, “ninguém apareceu para ajudar (o Hamas) — nem os iranianos nem o Hezbollah”.

Autoridades iranianas ainda repetem sua fórmula para a resolução do conflito israelo-palestino: um referendo entre os “habitantes originais” da Palestina (excluindo judeus), que aprovariam a aniquilação de Israel. Mas em semanas recentes os clérigos iranianos também sinalizaram moderação. Um manifesto de teólogos publicando em meados de outubro condenou a matança de civis perpetrada pelo Hamas e por Israel.

O reconhecimento de Israel “cabe aos palestinos, evidentemente”, afirma o conselheiro de política externa de Khamenei, Kamal Kharazzi. “Nós não declararemos oposição a outras partes.” Na Assembleia Geral da ONU, em 27 de outubro, o Irã votou a favor de uma solução de dois Estados, o que implicaria no reconhecimento de Israel, um rompimento com uma antiga política de oposição à existência do Estado judaico. Khamenei chocou os linha-dura recentemente afirmando que o Irã não acredita que “judeus ou sionistas devam ser jogados no mar”. “Nós não somos radicais”, insiste um diplomata iraniano.

Uma foto fornecida pelo escritório do líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei, em 10 de outubro de 2023, mostra-o participando de uma cerimônia de formatura conjunta para cadetes de academias das forças armadas na capital iraniana, Teerã. Foto: KHAMENEI.IR / AFP

Ou talvez eles prefiram não soar como radicais. O Irã claramente não quer ser culpado pela selvageria do Hamas. Em seu primeiro comentário a respeito do ataque, Khamenei negou o envolvimento do Irã três vezes em 90 segundos — como se pronunciasse seu triplo repúdio em um divórcio islâmico, segundo notou um adulador iraniano. “Os grupos de resistência na região não recebem ordens” do Irã, insiste o porta-voz do Ministério de Relações Exteriores, Nasser Kanani.

Se ele quis dizer que esses grupos são agentes independentes, disse bobagem. Abdolreza Shahlaei, comandante da divisão no Iêmen da Guarda Revolucionária da República Islâmica, a força militar de elite do regime, lidera os houthis das montanhas do Iêmen, de acordo com a inteligência israelense. Desde 7 de outubro, Ismail Qaani, comandante do braço estrangeiro da Guarda Revolucionária, a Força Quds, abriu “um gabinete de operações conjuntas” próximo à linha de frente Síria com Israel e lançou drones de combate da Síria mirando alvos profundos em Israel.

O Irã pode não ter ordenado o ataque de 7 de outubro, mas a Guarda Revolucionária claramente ajudou o Hamas a adquirir as capacidades necessárias para montá-lo. Interferências e ataques de drone contra defesas de Israel demonstraram seu apoio logístico. “Isso é obra de um Estado”, afirma um analista de risco político iraniano.

A questão não é tanto se o Irã esteve envolvido ou não, e sim por que o país parece agora ansioso por evitar uma escalada. Alguns observadores consideram essa atitude puramente tática: uma forma de retardar um ataque. Uma possibilidade mais interessante seria a de uma guinada estratégica do Irã.

Enquanto o Hamas mergulha a região no caos, a atenção das lideranças iranianas está se voltando para os difíceis assuntos internos. Khamenei não seguirá no poder por muito tempo. Muitos iranianos esperam uma crise de sucessão que poderia desestabilizar o regime. “Para uma transição mais tranquila eles precisariam de uma economia melhor e uma política externa menos catastrófica”, diz Yaser Mirdamadi, estudioso iraniano da religião que vive no exílio.

Aventuras no estrangeiro e caos doméstico não propiciarão este quadro, mas um alívio para as aflições econômicas do Irã poderá fazê-lo. Foi isso que levou Khamenei, nos seis meses anteriores ao 7 de outubro, a cortar em dois terços a produção de urânio enriquecido a 60% (u-235), a interromper o assédio aos transportes marítimos americanos no Estreito de Ormuz e a dissuadir ataques de seus representantes contra alvos americanos.

Uma foto de divulgação disponibilizada pelo escritório do Exército iraniano mostra drones Karrar caseiros iranianos exibidos durante uma cerimônia de inauguração em Teerã, Irã, em 10 de dezembro de 2023.  Foto: Escritório do Exército do Irã / EFE

Os EUA, por sua vez, optaram por ignorar a negociação do petróleo iraniano, que é alvo de sanções. A exportação de petróleo quadruplicou, passando de 300 mil barris por dia (2022) para mais de 1,2 bilhão de barris atualmente. Quando o Irã conteve seus aliados após o ataque do Hamas, Biden recompensou discretamente o governo ao permitir que o Iraque começasse a transferência de US$ 10 bilhões devidos ao Irã por despesas de energia em aberto.

Problemas domésticos

Tudo isso deve ajudar a economia. A receita do Irã com e sem o petróleo está no seu patamar mais alto desde o retorno das sanções anunciado pelo presidente Donald Trump em 2018, quando ele cancelou um acordo que previa o fim das sanções em troca da promessa iraniana de não desenvolver armas nucleares. As vendas destinadas somente à China aumentaram de 200 mil barris por dia (2020) para mais de 1,2 bilhão nos meses mais recentes. A receita com o petróleo aumentou de US$ 25,5 bilhões (2021) para US$ 42,6 bilhões (2022). O orçamento iraniano prevê que o montante chegue a US$ 71 bilhões em 2024.

Mas é preciso que muito mais ocorra para que o benefício chegue aos cidadãos iranianos. Por mais que as exportações do Irã tenham aumentado vertiginosamente, as sanções americanas ainda dificultam o repatriamento desse lucro. Os negociantes de petróleo da “terra do pistache” chegam com malas cheias de dinheiro em Dubai. Parte é enviada por terra passando pelo Curdistão iraquiano ou pelo Afeganistão, ou é lavada em casas de câmbio informais e transações com criptomoedas em Dubai.

Perto do porto de al-Hamriya há um centro de casas de massagens que, oferecendo seus serviços por dinheiro, provavelmente ajudam a lavá-lo. Ainda assim, “boa parte do dinheiro permanece ali”, diz um diplomat ocidental em Dubai, indicando com um gesto da cabeça os arranha-céus que se estendem até o horizonte. A cidade vibra com novas casas noturnas e centros de arte iranianos.

O Irã não pode arcar com esse custo. Mesmo se todo o dinheiro fosse remetido ao país, o Irã ainda teria diante de si um grande déficit orçamentário. O país precisa exportar 1,5 milhão de barris por dia a um preço de US$ 85 cada para manter o orçamento equilibrado. Mas, atualmente, o petróleo está valendo menos do que isso, e o Irã precisa oferecer aos compradores um desconto substancial sobre o preço de mercado.

Em casa, a Guarda Revolucionária e seus clientes capturam boa parte da renda do petróleo, criando uma economia de dois escalões. Os aghazadehha, filhos da elite, desfilam seus Lamborghinis no norte de Teerã e visitam Londres e Dubai para fazer compras e se divertir. Com dificuldade para obter vistos americanos, mas tão atraídos pelo país quanto as elites pré-revolucionárias, milhares voam para o Canadá. Há tantos iranianos em Toronto que a cidade foi apelidada de Teerãnto.

Iranianos passam de carro por um posto de gasolina fora de serviço em Teerã, Irã, em 18 de dezembro de 2023.  Foto: ABEDIN TAHERKENAREH / EFE
Um tripulante manuseia um tambor de óleo a bordo do convés do navio petroleiro 'Devon' em direção à Ilha Kharq para transportar petróleo bruto para os mercados de exportação em Bandar Abbas, Irã, na sexta-feira, 23 de março de 2018.  Foto: Ali Mohammadi / Bloomberg

A vida é mais difícil para a maioria dos iranianos. A inflação acelerou, ultrapassando o crescimento dos salários. O preço dos alimentos acumulou alta de 40% no ano; o valor da carne aumentou duas vezes mais que isso. A população vivendo na pobreza aumentou de 19% para 30% em uma década, de acordo com números oficiais.

Mais de 26 milhões de pessoas, ou 30% da população, vivem com menos de US$ 7 por dia, critério oficial para a definição da pobreza. Professores universitários fazem bico como motoristas de táxi. Há relatos de iranianos vendendo partes de seus corpos para a Turquia e os Emirados Árabes Unidos. Quem tem dinheiro guarda-o no exterior.

São problemas que desafiariam os políticos mais hábeis. Infelizmente, o governo liderado pelo presidente Ebrahim Raisi é amplamente considerado o mais inepto da história da república islâmica, bem como o mais linha-dura. A maioria dos ministros é de veteranos da Guarda Revolucionária ou de formandos da universidade/seminário Imam Sadiq, situada na capital e conhecida pelo viés ideológico.

É uma liderança mal-equipada. Nos seis meses mais recentes eles importaram gasolina a preço de mercado para compensar a insuficiência na produção local. Ainda assim, eles continuam subsidiando o combustível, mantendo o preço em dois centavos por litro, por medo do tumulto que se seguiria a um eventual aumento nos preços. Governos anteriores avançaram sobre os fundos públicos de pensão. Para lidar com o déficit resultante, o parlamento decidiu no mês passado que os trabalhadores teriam de permanecer nos empregos por cinco anos a mais, levando a manifestações de pensionistas.

O Irã tem muito a oferecer para os investidores estrangeiros, mas as sanções americanas, o protecionismo e a má gestão afastam praticamente todo mundo. A China já assinou pilhas de documentos, mas aguarda a suspensão das sanções para colocar seus planos em ação.

O investimento saudita depende do fim do apoio do Irã aos seus grupos paramilitares aliados. A Rússia é a última esperança. Em troca de armas iranianas, especialmente drones, usadas na invasão russa à Ucrânia, os russos vão investir nos campos de petróleo no país e em uma ferrovia norte-sul para chegar ao Oceano Índico. Mas, até o momento, a maior parceria entre os dois países tem sido na evasão das sanções ocidentais por meio de intermediários em Dubai.

Um manifestante iraniano segura um cartaz anti-Israel durante uma manifestação pró-Palestina na Praça Enqelab-e-Eslami (Revolução Islâmica) em Teerã, Irã, em 18 de novembro de 2023. Foto: Vahid Salemi / AP

Os dramas ambientais se somam aos econômicos. No verão passado, as temperaturas no sul do país chegaram perto dos 60°C. A seca praticamente esvaziou os reservatórios. A desertificação está destruindo a região produtora de alimentos, levando centenas de milhares de pessoas às cidades. Mas essas também estão passando por blecautes e cortes no fornecimento de água, levando a novos protestos. Até 2050 a escassez de água poderá levar 70% dos iranianos a deixarem o país, alertou um assessor da presidência.

Tais estresses tornam a transição vindoura para uma nova liderança ainda mais tensa do que seria. Na tentativa de consolidar o sistema, Khamenei expurgou dele os céticos. Estão marcadas para março as eleições da Assembleia de Especialistas, que escolhe o líder supremo, e do parlamento.

Mas o que antes era um processo relativamente concorrido se assemelha cada vez mais aos teatros encenados por outras autocracias do Oriente Médio. Reformistas e pragmáticos foram expulsos do parlamento. O poder está mais concentrado e, privado de uma base popular, encontra-se fragilizado. “Mudamos de uma forma de democracia para uma ditadura”, diz um analista iraniano que visita Teerã frequentemente.

O que virá a seguir?

Até o momento, Khamenei se recusou a nomear um vice, que seria visto como provável sucessor. Raisi está no páreo para assumir (Khamenei foi presidente antes de se tornar líder supremo). Mas pesa contra Raisi seu histórico de incompetência econômica. Hassan Rouhani, antecessor dele, teve uma presidência melhor, mas os linhas-duras iranianos desconfiam dele. Talvez Khamenei esteja preparando o segundo filho, Mojtaba, para sucedê-lo, mas os herdeiros de uma revolução que depôs uma dinastia relutam em criar outra. A morte ou a aposentadoria de Khamenei pode desencadear uma disputa violenta pelo poder em meio à elite.

Inicialmente, pareceu que a guerra em Gaza poderia levar as tensões domésticas do Irã para além do ponto de retorno. Os iranianos que vivem em más condições se ressentiram ao ver o dinheiro enviado a milícias estrangeiras. “É como se nós fôssemos os aliados deles”, queixou-se um professor universitário, temendo que extremistas palestinos arrastem o Irã para o conflito. Alguns iranianos chegaram até a defender os inimigos do regime.

Nos cafés, baristas prenderam estrelas de Davi em seus aventais. Quando um torcedor leal ao regime agitou uma bandeira da Palestina em um estádio de futebol em Teerã, as torcidas gritaram para que ele a enfiasse em algum lugar. Capturando o clima, um cartunista iraniano retratou um aiatolá depositando uma bandeira de Israel no chão para ser pisoteada pela multidão, que apenas a evita andando na ponta dos pés.

Cadetes da polícia do Irã marcham durante um desfile militar anual nos arredores de Teerã, Irã, sexta-feira, 22 de setembro de 2023.  Foto: Vahid Salemi / AP
Membros das forças pré-militares iranianas (Basij) marcham enquanto o míssil iraniano de longo alcance "Sejil" é exibido durante uma manifestação anti-Israel para mostrar sua solidariedade com o povo de Gaza, em Teerã, Irã, em 24 de novembro de 2023. Foto: ABEDIN TAHERKENAREH / EFE

Por enquanto, o regime busca aplacar seus cidadãos sem se render formalmente a eles. Os policiais da teocracia seguem ativos. Mulheres vestindo chadors e faixas verdes com o verde revolucionário monitoram a adesão do público ao código de vestimenta nas entradas do metrô. Professores universitários podem ser expulsos por permitir a presença de mulheres sem lenço na cabeça durante as aulas. Cafés que burlam o código são multados e fechados.

Mas as autoridades não conseguem fechar todos os cafés. Em muitos deles, mal se vê alguma mulher de lenço. O Conselho dos Guardiães, assembleia de clérigos e notáveis que analisa as leis, decidiu em outubro contra uma lei de castidade aprovada pela ala linha-dura do parlamento, alegando que o seu policiamento seria anti-islâmico. Sem admiti-lo, o regime está cedendo à pressão popular, como ocorreu anteriormente quando foi revogada a proibição a Beethoven, à celebração de festivais pré-islâmicos e ao uso das antenas de TV via satélite.

A elite emergente pode ser instintivamente mais liberal do que seus antecessores. Muitos dos filhos dos ideólogos se sentem tão atraídos pelas liberdades ocidentais quanto os demais iranianos jovens. “Eles veem como é a vida em Dubai ou na Turquia e não vão obedecer às regras islâmicas que o regime ditava no passado”, diz um analista em Teerã. Alguns observadores indicam que, caso suceda ao pai, Mojtaba Khamenei poderia imitar aspectos do governo de Muhammad bin Salman, o autoritário modernizador que governa a Arábia Saudita.

Talvez o Irã se torne mais autocrático, mas mais livre dos rigores religiosos. Outros enxergam na Guarda Revolucionária um motor mais provável de mudanças. De acordo com a constituição, o sucessor de Khamenei deve ser um clérigo qualificado. Mas, se os clérigos não conseguirem concordar com um nome, alguns generais da Guarda Revolucionária poderão ditar a escolha.

Alguns analistas esperam que, com o tempo, a contenção regional que o país demonstrou desde o 7 de outubro possa se tornar a norma. Talvez o Irã prefira a manutenção do status quo ao caos revolucionário. Seus satélites regionais já têm papéis dominantes no Irã, Líbano, Síria e Iêmen; o país pode buscar uma consolidação em lugar de uma expansão.

Alguns analistas israelenses de segurança se perguntam se, depois de conter o Hezbollah, seria possível ao Irã transferir os militantes do movimento para o outro lado do Rio Litani, 29 quilômetros ao norte da fronteira israelense. Um acordo de dois estados entre Israel e os palestinos possibilitaria que o Irã recuasse no seu conflito com Israel. Os iranianos sabem que é improvável que os EUA ressuscitem o moribundo acordo nuclear, suspendendo as sanções em um ano eleitoral. Mas, ainda que difícil, uma negociação ampla com os EUA no médio prazo é concebível.

Apesar da fúria popular, o regime enfrenta pouca oposição interna organizada. A oposição no exílio está fragmentada. Seu canal de TV mais popular, Manoto, anunciou recentemente que encerrará as atividades. Os defensores de uma mudança de governo adiaram suas esperanças para depois da eleição nos EUA, que alguns esperam resultar no retorno de Trump e sua política de pressão total. Mas o regime, que fará 45 anos em 2024, já demonstrou resiliência. Após o ataque do Hamas, revelou-se que talvez este governo não esteja mais disposto a levar uma vida tão perigosa quanto a de seus aliados. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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