BRASÍLIA - Dias antes de ter um comboio de agentes humanitários bombardeado na Faixa de Gaza, a organização não-governamental World Central Kitchen (WCK) foi citada pela Embaixada de Israel em Brasília como exemplo de entidade capacitada na distribuição de comida e alternativa para substituir a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA).
O ataque aéreo matou sete pessoas da ONG na segunda-feira, dia 1º. Houve forte repercussão internacional e condenação por países como os Estados Unidos, principal aliado de Israel, e o Brasil. O presidente norte-americano, Joe Biden, disse que o bombardeio ao comboio e a situação humanitária em geral na Faixa de Gaza é “inaceitável”. O Itamaraty falou em “consternação”. Os dois governos cobraram o cumprimento de medidas de proteção a civis e trabalhadores humanitários por parte de Tel Aviv.
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Autoridades civis e militares israelenses, como o premiê Benjamin Netanyahu e o general Herzi Halevi, chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel (FDI), reconheceram a autoria e afirmaram que as mortes foram provocadas por um “erro grave de idenfiticação”. Segundo Israel, o “incidente trágico” levou os militares a atingir involuntariamente pessoas inocentes. O presidente de Israel, Isaac Herzog, pediu “sinceras desculpas”. O Exército informou ter demitido dois oficiais militares, sem identificá-los.
A ONG contestou a versão do governo de Israel. O fundador da World Central Kitchen, o chef espanhol José Andrés, disse à Reuters que o bombardeio foi resultado de uma perseguição “deliberada e sem parar”, carro por carro, por cerca de 1,8 quilômetros e não de uma situação de erro ou “azar”. Ele afirmou que os veículos e seus colaboradores estavam devidamente identificados, sendo claro quem eram e o que faziam. A entidade suspendeu as atividades no território palestino.
A WCK mantinha 65 cozinhas humanitárias em Gaza e era capaz de distribuir cerca de 350 mil quentinhas por dia. Eles preparavam as refeições com toneladas de alimentos embarcados em navios que partiam do Chipre.
Uma semana antes, o embaixador de Israel em Brasília, Daniel Zonshine, citou a WCK como uma das organizações que poderiam assumir protagonismo no lugar da agência da ONU para refugiados, contra quem Israel move uma campanha diplomática. Segundo ele, há outras maneiras de repassar medicamentos e mantimentos a Gaza.
A Embaixada de Israel promoveu uma conversa com jornalistas, da qual o Estadão participou, na segunda-feira, dia 25, para difundir informações sobre a extensão do alegado vínculo entre o grupo terrorista Hamas e a UNRWA. Segundo Tel Aviv, a agência da ONU é “parte do problema” em Gaza e não deve ter suas atividades financiadas ou permitidas.
Em janeiro, Israel denunciou a infiltração de terroristas na agência das Nações Unidas. A ONU abriu uma investigação interna sobre o caso, enquanto 18 países suspenderam doações - orçamento foi de US$ 1,17 bilhão, em 2022, vindo principalmente da União Europeia e dos EUA. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na mão contrária, prometeu ampliar repasses, sob protestos de Israel, com quem o petista vive uma crise diplomática. A embaixada israelense diz esperar que a crise possa “terminar” em breve.
Zonshine disse ao Estadão que considerava a agência da ONU “irrecuperável” e que ela não poderia voltar a atuar em Gaza agora, tampouco após o fim da guerra. E, então, citou a World Central Kitchen.
“A UNRWA não é uma entidade que possa continuar a gerenciar atividades de assistência humanitária em Gaza. Tem que ter outras entidades, por exemplo, a WFP (World Food Programme), que já trabalha lá com a entrada de comida, tem outras ONGs que atuam lá, como a WCK (World Central Kitchen), é uma organização que cozinha e ajuda na entrada de comida. A maior preocupação é realmente a comida”, disse o embaixador israelense em Brasília.
“Será impossível recuperar. A presença do Hamas na UNRWA é tão integrada que é difícil limpar e eliminar os elementos ligados ao Hamas. Tem que achar outra maneira, outra organização, outra operação para verificar que as pessoas que trabalham nisso não serão ligadas ao terrorismo e que a chegada de comida e outros materiais seja mais séria, honesta e prática, como deve ser, e não que em parte vá para venda na rua.”
O porta-voz da embaixada israelense, Or Shaul Keren, disse que os colaboradores da agência da ONU atuavam como um reservistas do braço armado Hamas: “Dão aulas pela manhã e lançam foguetes à tarde. A UNRWA é o Hamas, o Hamas é a UNRWA. É muito difícil diferenciar e separá-los atualmente. Usam uns aos outros”.
“Se quisermos ajudar as pessoas de Gaza a ter assistência, temos que usar agências diferentes. Elas estão disponíveis, sejam da ONU ou não, essas organizações podem assumir a assistência, e já estão fazendo isso na prática. Precisamos de novas ferramentas. A UNRWA não é mais relevante na parte Norte de Gaza. Não podemos confiar mais neles”, argumentou Keren.
Segundo dados levantados pelos serviços de inteligência de Israel, repassados pela embaixada em Brasília, ao menos 15 funcionários da agência participaram ativamente do massacre de 7 de outubro de 2023, planejado e perpetrado por terroristas do Hamas.Os diplomatas israelenses dizem ter identificado alguns desses colaboradores da agência, pagos com recursos doados internacionalmente, capturando corpos nas ruas de parte dos 1,2 mil assassinados em solo israelesene e sequestrando-os até Gaza.
O embaixador Zonshine afirmou, no entanto, que a “infiltração” vai além: 17% dos cerca de 12 mil colaboradores da UNRWA na Faixa de Gaza teriam algum tipo ligação com o Hamas e organizações extremistas, como a Jihad Islâmica. Segundo ele, parte da ajuda humanitária, na forma de alimentos, é desviada de forma “problemática” pelo Hamas e revendida clandestinamente.
Conforme a diplomacia israelense, o governo tem provas de que 2.185 membros do staff da agência para os refugiados teriam dupla militância - desses, 485 atuariam também nas brigadas militares do Hamas, enquanto outros 1.650 seriam somente parte do “movimento” político do Hamas, e fazem parte de equipes de escolas e hospitais.
Ao menos 32 sedes da agência escondiam o que o embaixador chama de “infraestrutura do terror”. Escolas e clínicas ocultavam e abasteciam com energia os túneis construídos pelo Hamas, onde as forças israelenses afirmam ter encontrado paióis com armamentos. Também ficavam a poucos metros de pontos de lançamento de foguetes, a fim de evitar o revide por parte dos caças israelenses.
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O argumento de Tel Aviv é que os prédios da UNRWA seriam um “esconderijo seguro” para os terroristas, porque Israel daria instruções para que as IDF não atacassem nesses lugares de ajuda humanitária aos refugiados. Seria algo similar ao Hospital Al Shifa, o maior de Gaza, palco de operações sangrentas por ser considerado por Israel como um centro oculto de comando e controle do Hamas.
Apesar disso, as Nações Unidas contam 224 agentes humanitários mortos desde o início do conflito, em outubro de 2023. O número é recorde e inclui funcionários da ONU, voluntários e de outras organizações privadas, inclusive os sete recentemente mortos da WCK.
“Esse número é o maior da história da ONU e representa, em menos de seis meses de conflito, quase três vezes mais vítimas entre trabalhadores humanitários do que jamais registrado em um único conflito, no período de um ano”, destacou o Itamaraty.
Já houve ainda ataques a comboios de ambulâncias e de ajuda humanitária, como um que deixou ao menos 100 civis mortos por tiros, e confrontos em hospitais. O Ministério da Saúde em Gaza, controlado pelo Hamas, diz que 484 profissionais de saúde foram mortos e 48 agentes de Defesa Civil durante trabalhos de resgate.
O governo brasileiro afirma que Israel bloqueia a entrada de ajuda humanitária, agravando a situação de fome que provoca mortes, e comete uma violação do direito internacional.
“O Hamas tenta manter o poder através de controle da comida, dentro de Gaza. A responsabilidade israelense é fazer o possível para a entrada de comida, medicamentos, água e energia”, rebateu Zonshine, dizendo que é feito uma vistoria para certificar que não ingressam armas. “Israel não quer bloquear a entrada de assistência humanitária. Mas temos de verificar que não entram coisas como armas.”
Segundo a chancelaria israelense, esses dados passam por constante atualização e investigação para checagem. O embaixador garantiu que esse “escrutínio” pode demorar a chegar à opinião pública, mas confere credibilidade às informações sobre os vínculos entre a agência e o Hamas, que já sofreram questionamentos por parte da comunidade de inteligência dos EUA, por exemplo.
“O envolvimento de pessoas da UNRWA com o Hamas se revelou muito claro quando avançamos com a guerra, que já dura seis meses”, disse Zonshine. “A cada dia que passa sabemos mais sobre esse envolvimento.”
O embaixador voltou a dizer que é necessário libertar os 134 reféns - dos quais estima-se que somente 100 estejam vivos - e que o cessar fogo aprovado no Conselho de Segurança das Nações Unidas não é viável no momento. Entre eles, está o brasileiro Michel Nisenbaum.
“É difícil chegar a uma trégua sem libertar os reféns. É um preço muito doloroso, muito alto, para a sociedade israelense”, afirmou Zonshine.
O chefe da missão diplomática em Brasília afirmou que seu país não tem intenção de ocupar com assentamentos e controlar a Faixa de Gaza a longo prazo, tampouco de exterminar palestinos, mas somente de garantir que o Hamas não volte a perpetrar ataques terroristas - o que significa o extermínio do grupo radical palestino.
“Infelizmente a guerra não é uma coisa agradável, é uma coisa feia”, disse o embaixador. “A maneira que o Hamas escolheu para gerenciar isso está custando muitas vidas de pessoas não envolvidas na parte palestina. Não é nossa intenção, tentamos evitar isso. Não é fácil. Sabemos que os resultados não são bons para os palestinos, nem para Israel. É uma realidade que não escolhemos.”