As tropas terrestres de Israel estão prontas para invadir a Faixa de Gaza. O Exército do país se concentra na fronteira, à espera de uma ordem para invadir o território palestino controlado pelo Hamas. Do outro lado, o grupo terrorista, que tem em seu poder quase 200 reféns israelenses, tem uma armadilha composta por um complexo de cerca de 300 km de túneis, vielas apertadas e prédios superlotados, alguns até mesmo semidestruídos.
Num terreno com uma das maiores densidades populacionais do planeta — quase 5,5 mil pessoas por quilômetro quadrado — os militares israelenses terão dificuldade de separar combatentes de civis, em uma guerra de guerrilha urbana que, segundo analistas consultados pelo Estadão, será sangrenta e cheias de incertezas.
A operação envolve uma série de fatores e riscos altos tanto no campo de batalha quanto no campo político, mas Israel está disposta a fazê-la. Na quinta-feira, 19, o ministro de Defesa israelense, Yoav Gallant, garantiu que haveria manobras militares terrestres e disse para todos os soldados estarem prontos. Os ataques aéreos atuais são vistos como preparação do terreno para a invasão.
Com grau de incerteza alto, conflitos urbanos em lugares como a Faixa de Gaza são descritos como lentos e arriscados. Nas duas últimas operações de Israel dentro do território, em 2009 e 2014, as incursões foram limitadas, diferentemente do que aparenta ser o plano preparado para retaliar os atentados terroristas de 7 de outubro.
Apesar de limitada, no entanto a invasão de 2014 foi custosa para o Exército israelense. Durou 50 dias e levou à morte de 66 soldados e 2,2 mil palestinos, segundo a ONU. A operação de 2009 deixou 1,3 mil palestinos mortos.
Como seria uma operação terrestre de Israel na Faixa de Gaza?
Dificilmente a operação atual seria igual às anteriores. Segundo analistas, guerras urbanas têm variáveis que as tornam muito diferentes entre si. Apesar disso, semelhanças existem e são fundamentais para compreender o que está em jogo. “As guerras urbanas são sempre lentas, sangrentas e cheias de surpresas”, disse o analista em segurança internacional Salvador Raza, diretor do instituto de segurança e defesa Cetris e professor-visitante da National Defense University, em Washington.
Os manuais de guerras urbanas determinam que uma operação desse tipo envolva ataques em todas as dimensões (terrestre, marítima e aérea) e em pelo menos três flancos, um pelo norte e dois laterais, para cercar toda a área. Entretanto, a Faixa de Gaza foge de qualquer padrão pelas suas características.
O território tem uma área de 365 km² habitada por 2,3 milhões de pessoas, a grande maioria civis. É uma área de vielas, ruas estreitas, escombros e muitos prédios adensados, comandada por um grupo que conta com um arsenal paramilitar e uma rede de túneis debaixo da terra que equivale a 300 km, o triplo da extensão do metrô de São Paulo. “Quando você junta guerra urbana, espaço comprimido e território abaixo da superfície, você foge do padrão da guerra urbana”, explicou Raza.
As Forças de Defesa de Israel têm à disposição armamentos pesados e de última geração para resistir ao poder de fogo do Hamas e adentrar na área, como tanques, obuses e drones (utilizados para dar cobertura e para “preparar o terreno” com bombardeios aéreos). Utilizá-los é uma escolha que aumentaria o número de assassinatos em uma operação desse tipo, mas possibilitaria ultrapassar o terreno mais facilmente. “Um tanque Merkava consegue passar por cima de tudo, incluindo um prédio”, disse o jornalista especialista em defesa Roberto Godoy, repórter especial do Estadão.
Luta esquina por esquina
Na análise de Godoy, uma invasão terrestre nesse modelo causaria uma destruição massiva na Faixa de Gaza. Israel tem a vantagem militar, com mais armas, soldados e inteligência, mas uma vez dentro desse espaço precisaria enfrentar os combatentes do Hamas em posição de defesa, com atiradores no alto de prédios, o conhecimento da rede de túneis e a vantagem de já estarem na área. “Israel também vai se deparar com um Hamas muito mais militarizado, treinado e mais forte que antes”, declarou. “O Hamas hoje tem um modelo militar clássico.”
Para ganhar o terreno, as tropas precisam neutralizar a superfície com bombardeios, destruindo centros de comandos e acesso à túneis. É isso que Israel tem feito antes de invadir Gaza, e os bombardeios já resultaram em mais de 4 mil civis mortos e cerca de 9 comandantes do Hamas. Mas depois depois o avanço seria metro a metro, esquina a esquina, rua a rua.
Os efeitos desse modelo puderam ser vistos na Batalha de Mossul, que aconteceu entre o Exército do Iraque e o Estado Islâmico em 2016, na cidade iraquiana de Mossul. O conflito urbano durou nove meses e deixou milhares de mortos e a cidade em ruínas. Bairros inteiros foram destruídos, corpos permaneceram debaixo de escombros e ruas ficaram repletas de munições e minas terrestres não detonadas. “Em uma operação urbana, você entra e não sabe quando sai”, disse André Lajst, que serviu às Forças de Defesa de Israel e hoje preside a organização Stand With Us.
Faixa de Gaza
Rede de túneis do Hamas
O terreno é ainda mais complexo na Faixa de Gaza por causa da rede de túneis do Hamas, construída para facilitar o contrabando de armas e servir de depósitos e abrigo. Em 2021, Israel alegou ter destruído 100 km de túneis na região, mas o Hamas afirma possuir uma rede de 500 km, o que significaria cinco vezes a extensão do metrô de São Paulo.
Analistas estimam que a extensão pode ser um pouco menor que a anunciada pelo Hamas, de 300 km. Independente de seu tamanho, a função estratégica é crucial e precisa ser considerada por Israel. Desde que os bombardeiros aéreos na Faixa de Gaza tiveram início após o ataque do Hamas no dia 7, Israel afirma ter rastreado e explodido diversos acessos a esses túneis.
Os túneis podem servir para os combatentes do Hamas se deslocarem e surpreenderem as tropas israelenses por trás. Por isso, qualquer operação israelense no território de Gaza também precisa colocar tropas no subterrâneo. “Se Israel quiser dominar Gaza, vai ter que entrar pelos túneis”, disse Salvador Raza. Uma série de riscos envolve essa ação:
- Armadilhas de bombas escondidas que podem ser disparadas com detonadores;
- Ambiente escuro. As tropas israelenses necessitariam de luz para avançar, enquanto o Hamas estaria em posição de defesa. A luz denunciaria as posições israelenses;
- Armas químicas, que poderiam intensificar o poder de fogo do Hamas. Gases inflamáveis poderiam ser soltados dentro desses locais.
As Forças de Defesa de Israel contam com uma unidade especializada nos túneis, criada após a inteligência descobrir a existência deles em 2014. A unidade treina em túneis simulados, e em paralelo a inteligência israelense, considerada uma das melhores do mundo, intensifica as operações para descobrir mais sobre a rede subterrânea. O quanto que se tem conhecimento dessa arquitetura do Hamas, no entanto, é algo que não se sabe. “Não se sabe nem o quanto de informação Israel tem dos túneis, e nem o quanto essas informações correspondem a toda rede de túneis”, disse Lajst.
Os acessos à rede subterrânea estão espalhados por toda a Faixa de Gaza. Parte dos túneis liga o território com Israel. Nesta sexta-feira, 20, o Exército israelense divulgou imagens de bombardeios a uma série de infraestruturas que alegam pertencer ao Hamas. Entre elas, estão alguns desses acessos, informou o exército.
Reféns
Outro risco que envolve o cálculo de entrar ou não na Faixa de Gaza é a existência de reféns. Segundo os militares israelenses, 197 pessoas, incluindo crianças, idosos e muitas nacionalidades, estão com os terroristas. A operação terrestre aumenta o risco à vida desses civis.
Para Roberto Godoy, a existência dos reféns pode ser o motivo pelo qual Israel ainda não invadiu a Faixa de Gaza. “Há reféns de outras nacionalidades, existe uma pressão internacional muito grande. Eu avalio que Israel só não invadiu até agora por causa dessa pressão”, declarou. “Uma operação urbana é uma operação onde a tropa vai para matar, não para libertar reféns”, acrescentou.
Segundo Salvador Raza, Israel tem entre suas prioridades o resgate dos reféns, mas estariam dispostos a aceitar baixas. “O slogan de Israel é ‘Hamas nunca mais’. A prioridade é eliminar o Hamas, o que deixa o país disposto a essas baixas”, declarou.
Cálculo político e corrida contra o tempo
Os riscos no campo de batalha não são os únicos a entrar na equação de uma operação urbana na Faixa de Gaza. Os riscos políticos também são altos, e o tempo pode correr contra Israel. “Um conflito desse tipo é muito sangrento e envolve baixas dos dois lados, tanto de civis, quanto de militares”, avaliou Salvador Raza.
Os riscos políticos são internos e externos. Uma operação sangrenta com muitas baixas de soldados israelenses poderia provocar uma reação pública em Israel, considerando que o país convocou 400 mil soldados para a guerra e o número de famílias envolvidas é enorme. Externamente, Israel pode perder apoio a depender da quantidade de civis mortos. Os reféns também entram no cálculo político do apoio interno e externo.
Os movimentos militares recentes, no entanto, mostram que a operação terrestre continua nos planos de Israel. A meta declarada do governo desde o ataque do Hamas é exterminar o braço militar do grupo e, para isso, a operação terrestre é vista como imprescindível. “Apenas com uma vitória no solo é que você declara vitória sobre um território, porque você vasculha, domina o território, domina o inimigo”, declarou André Lajst. “É uma operação mais minuciosa, diferente de todos os outros meios.”