Além do primeiro nome e do partido político, o senador americano Joe Manchin III tem compartilhado outra coisa com o presidente Joe Biden em Washington: o poder. Desde que o Partido Democrata passou a governar com uma minoria apertada no Congresso, em 2021, esse senador da Virgínia Ocidental virou o pivô nas votações mais importantes da legenda. Pouco conhecido até alguns anos atrás, ele ganhou protagonismo por representar o partido num Estado alinhado aos republicanos e por curiosidades, como o fato de, quando estar em Washington, residir num iate de 12 metros ancorado no Rio Potomac.
A principal votação decidida por ele até agora foi a histórica legislação climática aprovada no domingo pelo Senado e na Câmara dos Deputados nesta sexta-feira, 12. Os democratas prenderam a respiração por semanas vendo que ela estava por um fio diante da objeção de Manchin. Chegaram a dar por perdida quando ele a recusou em julho, dizendo que não poderia aceitá-la do jeito que estava, enfurecendo Biden. Algumas generosas concessões mais tarde, um acordo surpresa no domingo permitiu a aprovação da lei e o partido respirou aliviado.
O apoio do senador, porém, passou longe de ser só uma atuação partidária. Segundo o New York Times, para garantir seu voto, os líderes democratas concordaram não apenas em apoiar um gasoduto em seu Estado natal, como também acelerar a aprovação de outras infraestruturas em um amplo conjunto de concessões para o setor de combustíveis fósseis.
Ele tem sido uma das figuras mais importantes e controvertidas no desenho da política energética e climática do governo Biden. Segundo a imprensa americana, Manchin é de longe o principal destinatário das contribuições da indústria de petróleo e gás no Congresso. O senador tem laços financeiros de longa data com a indústria do carvão.
Mesmo assim, Manchin é o presidente da Comissão de Energia e Recursos Naturais do Senado, alimentando as críticas sobre brechas do Congresso que dão aos legisladores poder para regular setores nos quais têm interesses. O cientista político da Universidade Cornell (Nova York) Steven Kyle explica que as comissões são escolhidas por antiguidade, por isso Manchin, de 74 anos e no Senado desde 2010, conseguiu a posição.
Um poder peculiar
“Que o senador Manchin tenha o poder que tem é uma prova das peculiaridades que o sistema americano arcaico às vezes permite. Ele é motivado por dinheiro e poder, acho que há poucas dúvidas sobre isso”, diz Kyle, em entrevista ao Estadão.
O professor de ciências políticas da West Virginia University John Kilwein explica que, por cerca de um ano antes da votação, Manchin forçou Biden e os democratas no Congresso a reduzir o tamanho e o custo do projeto. A lei também prevê um imposto mínimo de 15% para todas as empresas cujos lucros ultrapassem US$ 1 bilhão, a fim de reduzir o déficit público.
Por muito tempo, segundo Kilwein, ele conseguiu convencer os republicanos e conservadores da Virgínia Ocidental de que era um freio de bom senso aos gastos excessivos dos democratas, ainda que estivesse alienando os poucos eleitores de seu partido que restam no Estado. “Ele deve estar preocupado com a reeleição em 2024″, diz Kilwein em entrevista ao Estadão.
Manchin é um democrata conservador que representa um Estado que a cada eleição presidencial se torna mais republicano. O poder que ele consegue exercer nesse momento, segundo cientistas políticos, é muito grande e vai além das questões ligadas à energia, mas deve cair drasticamente após as eleições de meio de mandato, em novembro. Segundo eles, dificilmente o Senado terá a mesma configuração de 50 cadeiras para cada partido - o voto da vice-presidente Kamala Harris, como presidente do Senado, assegura a maioria democrata.
Segundo a revista The New Yorker, que fez um perfil do senador, da última vez que os democratas ocuparam a Casa Branca, Manchin não era uma prioridade. Em oito anos, recebeu três ligações do presidente Barack Obama. Dessa vez, afirma a revista, Biden engajou-se em uma campanha aberta para conquistar seu apoio e, nos primeiros meses de seu governo, conversou ou se encontrou com ele pelo menos meia dúzia de vezes. Biden passou a chamá-lo de Jo-Jo. “‘Não sei de onde ele tirou isso’”, disse Manchin, citado pela revista.
Em casa, num iate
O nome Manchin é cercado de contradições e curiosidades. Seu endereço em Washington é um iate de 12 metros - o Almost Heaven (nome que tirou da música de John Denver Take Me Home, Country Roads - canção que menciona o estado do senador). Avaliado em cerca de US$ 250 mil, ele diz ser uma alternativa mais barata do que comprar uma casa na capital americana.
Ancorado no Potomac River, o Almost Heaven se tornou um endereço popular no Capitólio. Nele, o senador recebe políticos dos dois partidos para reuniões informais, que acontecem durante um cruzeiro ou acompanhadas de pizza, longe dos olhares dos jornalistas. Seus correligionários já se acostumaram a se aproximar dele em caiaques para falar com o senador. Nesse nesse vídeo divulgado pela rede ABC, ele conversa com alguns deles sobre a proposta de lei do clima, em outubro do ano passado.
A defesa de Manchin pelo bipartidarismo, que volta e meia deixa a ala mais radical do Partido Democrata de cabelo em pé, é explicada em sua origem política. Em seus anos como governador da Virgínia Ocidental, reuniu grupos em conflito em questões espinhosas. Para os especialistas, o ressentimento dos habitantes do Estado com a ala liberal democrata também teve seu papel, assim como a convicção de seu pai, John Manchin Jr., um líder cívico democrata que recebeu uma importante ajuda de um congressista republicano.
Manchin é um raro democrata que conseguiu ter popularidade na Virgínia Ocidental graças à forte história sindical forjada pelos trabalhadores das minas de carvão. “Eles gostam dele na Virgínia Ocidental porque ele defende o carvão, setor que faz seu próprio dinheiro, e vota conservadoramente na maioria das questões (em Washington)”, afirma Kyle.
“Não há dúvida de que ele irritou os democratas progressistas, mas a verdade é que o partido não teria seu fraco controle do Senado sem ele e Kyrsten Sinema. Por isso, a liderança é extremamente tolerante com eles”, diz o professor Kilwein, se referindo à senadora do Arizona, que em algumas votações também foi contra os interesses de seu partido.
Um Estado pobre e dependente de energia fóssil
Um dos Estados mais pobres dos EUA - tinha uma taxa de pobreza de 16% antes da pandemia -, a Virgínia Ocidental é o segundo maior produtor de carvão do país, atrás de Wyoming, e respondeu por 5% da produção total de energia americana em 2019. Segundo um ranking da Administração de Informações sobre Energia dos EUA, ocupa o quinto lugar do setor.
Mas o Estado perdeu perdeu milhares de empregos do carvão na última década, à medida que avançou o uso de outras fontes de energia, como gás natural, energia solar e eólica. Na negociação da lei do Senado, como explica Kilwein, além do gasoduto, Manchin conseguiu assegurar vários benefícios para ex-mineradores doentes e apoio para mais uso de combustíveis fósseis.
A Virgínia Ocidental tem sofrido um contínuo declínio populacional e perdeu quase 65 mil residentes em uma década, segundo o último Censo dos EUA. Como resultado, o Estado foi de seis para duas cadeiras na Câmara e seus votos no colégio eleitoral devem cair de cinco para quatro. Mesmo assim, o dano geral para sua representação em Washington pode ser mínimo graças à atual influência de Manchin no Senado.
Segundo o professor Kilwein, o poder que ele exerce atualmente é uma prova de como o Congresso será cada vez mais dependente dos poderes e circunstâncias de seus representantes eleitos individualmente do que do número de cadeiras que um Estado possui. Enquanto a Califórnia contará com 54 votos no colégio eleitoral nas eleições de 2024, por exemplo, a Virgínia Ocidental terá apenas 4. Se Biden perdeu no Estado para Donald Trump em 2020 por uma diferença de 39 pontos, Manchin venceu seis eleições consecutivas. “Por mais que os progressistas condenem sua resistência, ele é tudo que os separa de uma maioria republicana no Senado”, escreveu a New Yorker.