Kim Jong-un está cada vez mais agressivo com a Coreia do Sul; entenda os riscos de um confronto


Mesmo sabendo que o poderio militar da Coreia do Norte não é páreo para o Sul e os Estados Unidos, ditador tem adotado postura hostil que coloca a Península Coreana em estado de alerta

Por Isabel Gomes

“É um fato consumado que uma guerra pode eclodir a qualquer momento na península coreana”. A declaração dada por Kim Jon-un na véspera de Ano Novo, ordenando que o Exército se preparasse para “pacificar todo o território da Coreia do Sul”, deu início a 2024 exatamente como ele foi para a Península Coreana em 2023: de forma enérgica e rodeado de tensões pelo temor de um novo conflito entre os dois países.

Se em 1953, a guerra entre as Coreias acabou com um armistício em vez de um acordo de paz, 70 anos depois isso continua distante. Neste mês, Kim chegou a ordenar uma mudança na constituição do Norte, declarando o Sul como um permanente adversário e “inimigo primário”, desconsiderando-o como um potencial parceiro de reconciliação. A medida se soma a uma extensa campanha de intimidação por parte do Norte, que inclui lançamentos de mísseis a retirada de acordo para redução de tensões.

Qualquer possibilidade de conciliação a curto prazo parece ter sido destruída. Na semana passada, imagens de satélite revelaram que a Coreia do Norte demoliu um monumento em forma de arco em Pyongyang que simbolizava a reconciliação com o Sul.

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Mas, afinal, o ditador norte-coreano está preparando terreno para uma guerra? Analistas ouvidos pelo Estadão avaliam que não, e o argumento para isso não é exatamente uma novidade: as forças de Kim não são páreas para a Coreia do Sul e seus aliados, e a puxada de um conflito pela Coreia do Norte dificilmente não resultaria uma autoaniquilação de seu regime, conforme pontua Pedro Brites, professor de Relações Internacionais da FGV e especialista em Ásia.

“Se a Coreia do Norte olha para o balanço (de forças), ela não ganha do Sul. A não ser que use armas nucleares, o que teria um custo muito alto, porque ela poderia ser retalhada de forma muito violenta a ponto de ser devastada”, avalia Brites, que argumenta que este cálculo estratégico de poderio sequer precisa incluir os Estados Unidos como adversário.

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No dia 30 de dezembro, Kim Jong-un declarou que era um 'fato consumado' a possibilidade de eclosão de uma nova entre as Coreias. Foto: KCNA via KNS/ AFP

A eclosão de um novo conflito, porém, dificilmente não atrairia uma reação americana, de acordo com Jenny Town, diretora do programa de pesquisa sobre Coreia do Norte do Stimson Center. “Parece bastante claro, a curto prazo, que qualquer ação da Coreia do Norte que inicie um conflito seria recebida com respostas trilaterais dos Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão. A cooperação trilateral está atualmente em uma base bastante sólida e é provável que assim continue.”

Guerra interessa a (quase) nenhum ator envolvido

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Um dos poucos cenários em que Kim Jong-un mudaria seu cálculo estratégico e iniciasse um novo conflito, na avaliação de Brites, seria em caso de uma ameaça latente de seus oponentes. “Se fosse crível de que se está tentando uma derrubada de governo mais efetiva, com, por exemplo, mobilização de fronteira por parte da Coreia do Sul ou também os Estados Unidos deslocando alguma das suas divisões marítimas para lá”, elucida.

Mas em um cenário que o principal aliado do Sul, os Estados Unidos, tenta equilibrar os pratos com a guerra na Ucrâniacuja ajuda financeira está comprometida — e mais recentemente com a guerra de Israel na Faixa de Gaza, os especialistas acreditam que há pouco, ou nenhum, interesse por um conflito de qualquer país envolvido, conforme aponta Alexandre Uehara, professor de relações internacionais da ESPM e especialista em Ásia.

“Se do lado diplomático e militar a relação com os Estados Unidos é muito importante para a Coreia do Sul, do lado comercial a China hoje também é um importante parceiro e que da mesma forma que não tem nenhum interesse (na guerra)”, esclarece o especialista, pontuando que uma unificação da Península a partir de uma ação com envolvimento dos Estados Unidos abriria brecha para tropas americanas chegarem até as fronteiras da China, o que o país evita fortemente.

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Para os analistas, possivelmente o único ator que teria algo a ganhar com a guerra seria a Rússia, que atualmente é o maior parceiro diplomático de Kim Jong-un. Em um momento da guerra em que a Ucrânia tem se visto correndo contra o tempo para tentar mais dinheiro, custos para os Estados Unidos em outros lugares seriam benéficos ao país.

“Mas é muito pouco claro o quanto (os russos) seriam realmente capazes de fazer se a guerra na Ucrânia continuasse, especialmente quando a Rússia já está recebendo ajuda da Coreia do Norte em seu próprio esforço de guerra”, avalia Jenny, referindo-se a acusação recente por parte Estados Unidos, de que o Norte proporcionou ao governo de Putin sistemas de lançamento de mísseis balísticos e mísseis balísticos.

Mas se o Norte não pretende iniciar uma guerra, quais são suas intenções com uma postura de hostilidade tão intensa?

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Olhos para o Norte

Contraditoriamente, para os especialistas, o aumento de tensões por parte do Norte pode ser, na verdade, uma tentativa de diálogo. “A Coreia do Norte, como já fez em muitos episódios, utiliza esses momentos em que ela está sentindo isolada, em que o seu tema não está mobilizando a agenda internacional, e comete alguns ‘atos de mobilização’”, explica Brites, em referência a ações como testes nucleares ou lançamento de satélite. “É como um black mail, uma chantagem.”

Portanto, não é coincidência que essa campanha militar de Kim se intensifique com a chegada de um ano em que há eleições legislativas marcadas na Coreia do Sul em abril e eleições presidenciais nos Estados Unidos em novembro. “Historicamente, sempre quando há períodos eleitorais, seja nos Estados Unidos ou no Sul, a Coreia do Norte tem algum nível de ação mais agressiva, justamente para que o tema dela não seja esquecido como prioritário nas eleições”, explica Brites.

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Da mesma forma, a Coreia do Norte possui uma extensa trajetória de intensificar a pressão sobre a Coreia do Sul quando suas demandas não são atendidas por Washington. Nesse contexto, Kim pode estar buscando induzir negociações diretas com os Estados Unidos para solidificar seu status nuclear.

“Faz parte da estratégia do governo norte-coreano de ter sobre si a atenção. Se o Norte não tivesse essa postura, o mundo não daria muita atenção a eles, porque é um país pequeno, a fronteira é fechada. Se não houvesse essa preocupação com a área da segurança e com os testes que o país vem fazendo, o mundo daria muito menos atenção a eles”, diz Uehara, professor da ESPM.

Kim mudou sua visão

A campanha militar de Kim também parece ser uma demonstração de uma mudança fundamental em sua visão sobre a Península Coreana e o objetivo histórico do Norte de reunificar os dois países sob o controle de Pyongyang. O ditador refutou essencialmente os princípios de seu avô, Kim Il-sung, e agora, o Norte percebe a Coreia do Sul como uma potência estrangeira, em vez de parte de uma Coreia única, porém dividida.

“Isso é um reflexo do cálculo da Coreia do Norte de que não tem nada a ganhar com os EUA ou a Coreia do Sul [...] Esta é uma grande mudança feita de uma forma que Kim não será capaz de reverter facilmente no futuro, mesmo que a situação política melhore. Se não há nada a perder, então não há necessidade de tentar manter a paz (a não ser realmente iniciar uma guerra)”, avalia Jenny.

Respostas a exercícios militares

Os ataques do Norte são interpretados, também, como uma resposta aos exercícios militares promovidos pelos Estados Unidos e pela Coreia do Sul na Península Coreana. Kim, que deseja a todo custo reforçar sua capacidade de ataque nuclear contra seus rivais, busca realizar seus exercícios como uma contestação de sua força. Ciclicamente, os países, por sua vez, declaram que os testes são respostas às ações da Coreia do Norte.

Com ambas as partes expressando suas posições e reagindo às mensagens uma da outra, os especialistas destacam, no entanto, que, mesmo que nenhum dos lados tenha a intenção de iniciar uma guerra, não é o momento de baixar a guarda. As perspectivas de que pequenos incidentes possam evoluir para conflitos permanecem elevadas.

“Se um foguete desse cai em território japonês ou se atinge uma embarcação da Coreia do Sul, ou vice-versa, em um momento de tensão como estamos agora, é muito preocupante. Isso pode gerar uma dificuldade de explicação, e depende da animosidade da outra parte de tentar entender ou não esse incidente como algo hostil ou incidente de fato, o que pode deflagrar um conflito maior”, avalia Uehara.

Foto fornecida pelo governo norte-coreano mostra Kim Jong-un visitando fábricas de munições do país no dia 8 de janeiro. Foto: Agência Central de Notícias da Coreia/Serviço de Notícias da Coreia via AP, Arquivo

Se ambos os lados parecem determinados a não se intimidarem com as ações alheias, para os analistas, esse clima de pré-guerra não terá fim enquanto um dos lados não decidirem cessar suas reações individuais, e isso não deve partir do Norte, de acordo com Jenny.

“Isso deveria ser iniciado pela parte mais forte (EUA-Coreia do Sul) para criar espaço para a parte mais fraca seguir o exemplo. Afinal, quantas vezes esses países precisam lembrar a Coreia do Norte que eles poderiam ‘totalmente destruí-lo’?”.

“É um fato consumado que uma guerra pode eclodir a qualquer momento na península coreana”. A declaração dada por Kim Jon-un na véspera de Ano Novo, ordenando que o Exército se preparasse para “pacificar todo o território da Coreia do Sul”, deu início a 2024 exatamente como ele foi para a Península Coreana em 2023: de forma enérgica e rodeado de tensões pelo temor de um novo conflito entre os dois países.

Se em 1953, a guerra entre as Coreias acabou com um armistício em vez de um acordo de paz, 70 anos depois isso continua distante. Neste mês, Kim chegou a ordenar uma mudança na constituição do Norte, declarando o Sul como um permanente adversário e “inimigo primário”, desconsiderando-o como um potencial parceiro de reconciliação. A medida se soma a uma extensa campanha de intimidação por parte do Norte, que inclui lançamentos de mísseis a retirada de acordo para redução de tensões.

Qualquer possibilidade de conciliação a curto prazo parece ter sido destruída. Na semana passada, imagens de satélite revelaram que a Coreia do Norte demoliu um monumento em forma de arco em Pyongyang que simbolizava a reconciliação com o Sul.

Mas, afinal, o ditador norte-coreano está preparando terreno para uma guerra? Analistas ouvidos pelo Estadão avaliam que não, e o argumento para isso não é exatamente uma novidade: as forças de Kim não são páreas para a Coreia do Sul e seus aliados, e a puxada de um conflito pela Coreia do Norte dificilmente não resultaria uma autoaniquilação de seu regime, conforme pontua Pedro Brites, professor de Relações Internacionais da FGV e especialista em Ásia.

“Se a Coreia do Norte olha para o balanço (de forças), ela não ganha do Sul. A não ser que use armas nucleares, o que teria um custo muito alto, porque ela poderia ser retalhada de forma muito violenta a ponto de ser devastada”, avalia Brites, que argumenta que este cálculo estratégico de poderio sequer precisa incluir os Estados Unidos como adversário.

No dia 30 de dezembro, Kim Jong-un declarou que era um 'fato consumado' a possibilidade de eclosão de uma nova entre as Coreias. Foto: KCNA via KNS/ AFP

A eclosão de um novo conflito, porém, dificilmente não atrairia uma reação americana, de acordo com Jenny Town, diretora do programa de pesquisa sobre Coreia do Norte do Stimson Center. “Parece bastante claro, a curto prazo, que qualquer ação da Coreia do Norte que inicie um conflito seria recebida com respostas trilaterais dos Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão. A cooperação trilateral está atualmente em uma base bastante sólida e é provável que assim continue.”

Guerra interessa a (quase) nenhum ator envolvido

Um dos poucos cenários em que Kim Jong-un mudaria seu cálculo estratégico e iniciasse um novo conflito, na avaliação de Brites, seria em caso de uma ameaça latente de seus oponentes. “Se fosse crível de que se está tentando uma derrubada de governo mais efetiva, com, por exemplo, mobilização de fronteira por parte da Coreia do Sul ou também os Estados Unidos deslocando alguma das suas divisões marítimas para lá”, elucida.

Mas em um cenário que o principal aliado do Sul, os Estados Unidos, tenta equilibrar os pratos com a guerra na Ucrâniacuja ajuda financeira está comprometida — e mais recentemente com a guerra de Israel na Faixa de Gaza, os especialistas acreditam que há pouco, ou nenhum, interesse por um conflito de qualquer país envolvido, conforme aponta Alexandre Uehara, professor de relações internacionais da ESPM e especialista em Ásia.

“Se do lado diplomático e militar a relação com os Estados Unidos é muito importante para a Coreia do Sul, do lado comercial a China hoje também é um importante parceiro e que da mesma forma que não tem nenhum interesse (na guerra)”, esclarece o especialista, pontuando que uma unificação da Península a partir de uma ação com envolvimento dos Estados Unidos abriria brecha para tropas americanas chegarem até as fronteiras da China, o que o país evita fortemente.

Para os analistas, possivelmente o único ator que teria algo a ganhar com a guerra seria a Rússia, que atualmente é o maior parceiro diplomático de Kim Jong-un. Em um momento da guerra em que a Ucrânia tem se visto correndo contra o tempo para tentar mais dinheiro, custos para os Estados Unidos em outros lugares seriam benéficos ao país.

“Mas é muito pouco claro o quanto (os russos) seriam realmente capazes de fazer se a guerra na Ucrânia continuasse, especialmente quando a Rússia já está recebendo ajuda da Coreia do Norte em seu próprio esforço de guerra”, avalia Jenny, referindo-se a acusação recente por parte Estados Unidos, de que o Norte proporcionou ao governo de Putin sistemas de lançamento de mísseis balísticos e mísseis balísticos.

Mas se o Norte não pretende iniciar uma guerra, quais são suas intenções com uma postura de hostilidade tão intensa?

Olhos para o Norte

Contraditoriamente, para os especialistas, o aumento de tensões por parte do Norte pode ser, na verdade, uma tentativa de diálogo. “A Coreia do Norte, como já fez em muitos episódios, utiliza esses momentos em que ela está sentindo isolada, em que o seu tema não está mobilizando a agenda internacional, e comete alguns ‘atos de mobilização’”, explica Brites, em referência a ações como testes nucleares ou lançamento de satélite. “É como um black mail, uma chantagem.”

Portanto, não é coincidência que essa campanha militar de Kim se intensifique com a chegada de um ano em que há eleições legislativas marcadas na Coreia do Sul em abril e eleições presidenciais nos Estados Unidos em novembro. “Historicamente, sempre quando há períodos eleitorais, seja nos Estados Unidos ou no Sul, a Coreia do Norte tem algum nível de ação mais agressiva, justamente para que o tema dela não seja esquecido como prioritário nas eleições”, explica Brites.

Da mesma forma, a Coreia do Norte possui uma extensa trajetória de intensificar a pressão sobre a Coreia do Sul quando suas demandas não são atendidas por Washington. Nesse contexto, Kim pode estar buscando induzir negociações diretas com os Estados Unidos para solidificar seu status nuclear.

“Faz parte da estratégia do governo norte-coreano de ter sobre si a atenção. Se o Norte não tivesse essa postura, o mundo não daria muita atenção a eles, porque é um país pequeno, a fronteira é fechada. Se não houvesse essa preocupação com a área da segurança e com os testes que o país vem fazendo, o mundo daria muito menos atenção a eles”, diz Uehara, professor da ESPM.

Kim mudou sua visão

A campanha militar de Kim também parece ser uma demonstração de uma mudança fundamental em sua visão sobre a Península Coreana e o objetivo histórico do Norte de reunificar os dois países sob o controle de Pyongyang. O ditador refutou essencialmente os princípios de seu avô, Kim Il-sung, e agora, o Norte percebe a Coreia do Sul como uma potência estrangeira, em vez de parte de uma Coreia única, porém dividida.

“Isso é um reflexo do cálculo da Coreia do Norte de que não tem nada a ganhar com os EUA ou a Coreia do Sul [...] Esta é uma grande mudança feita de uma forma que Kim não será capaz de reverter facilmente no futuro, mesmo que a situação política melhore. Se não há nada a perder, então não há necessidade de tentar manter a paz (a não ser realmente iniciar uma guerra)”, avalia Jenny.

Respostas a exercícios militares

Os ataques do Norte são interpretados, também, como uma resposta aos exercícios militares promovidos pelos Estados Unidos e pela Coreia do Sul na Península Coreana. Kim, que deseja a todo custo reforçar sua capacidade de ataque nuclear contra seus rivais, busca realizar seus exercícios como uma contestação de sua força. Ciclicamente, os países, por sua vez, declaram que os testes são respostas às ações da Coreia do Norte.

Com ambas as partes expressando suas posições e reagindo às mensagens uma da outra, os especialistas destacam, no entanto, que, mesmo que nenhum dos lados tenha a intenção de iniciar uma guerra, não é o momento de baixar a guarda. As perspectivas de que pequenos incidentes possam evoluir para conflitos permanecem elevadas.

“Se um foguete desse cai em território japonês ou se atinge uma embarcação da Coreia do Sul, ou vice-versa, em um momento de tensão como estamos agora, é muito preocupante. Isso pode gerar uma dificuldade de explicação, e depende da animosidade da outra parte de tentar entender ou não esse incidente como algo hostil ou incidente de fato, o que pode deflagrar um conflito maior”, avalia Uehara.

Foto fornecida pelo governo norte-coreano mostra Kim Jong-un visitando fábricas de munições do país no dia 8 de janeiro. Foto: Agência Central de Notícias da Coreia/Serviço de Notícias da Coreia via AP, Arquivo

Se ambos os lados parecem determinados a não se intimidarem com as ações alheias, para os analistas, esse clima de pré-guerra não terá fim enquanto um dos lados não decidirem cessar suas reações individuais, e isso não deve partir do Norte, de acordo com Jenny.

“Isso deveria ser iniciado pela parte mais forte (EUA-Coreia do Sul) para criar espaço para a parte mais fraca seguir o exemplo. Afinal, quantas vezes esses países precisam lembrar a Coreia do Norte que eles poderiam ‘totalmente destruí-lo’?”.

“É um fato consumado que uma guerra pode eclodir a qualquer momento na península coreana”. A declaração dada por Kim Jon-un na véspera de Ano Novo, ordenando que o Exército se preparasse para “pacificar todo o território da Coreia do Sul”, deu início a 2024 exatamente como ele foi para a Península Coreana em 2023: de forma enérgica e rodeado de tensões pelo temor de um novo conflito entre os dois países.

Se em 1953, a guerra entre as Coreias acabou com um armistício em vez de um acordo de paz, 70 anos depois isso continua distante. Neste mês, Kim chegou a ordenar uma mudança na constituição do Norte, declarando o Sul como um permanente adversário e “inimigo primário”, desconsiderando-o como um potencial parceiro de reconciliação. A medida se soma a uma extensa campanha de intimidação por parte do Norte, que inclui lançamentos de mísseis a retirada de acordo para redução de tensões.

Qualquer possibilidade de conciliação a curto prazo parece ter sido destruída. Na semana passada, imagens de satélite revelaram que a Coreia do Norte demoliu um monumento em forma de arco em Pyongyang que simbolizava a reconciliação com o Sul.

Mas, afinal, o ditador norte-coreano está preparando terreno para uma guerra? Analistas ouvidos pelo Estadão avaliam que não, e o argumento para isso não é exatamente uma novidade: as forças de Kim não são páreas para a Coreia do Sul e seus aliados, e a puxada de um conflito pela Coreia do Norte dificilmente não resultaria uma autoaniquilação de seu regime, conforme pontua Pedro Brites, professor de Relações Internacionais da FGV e especialista em Ásia.

“Se a Coreia do Norte olha para o balanço (de forças), ela não ganha do Sul. A não ser que use armas nucleares, o que teria um custo muito alto, porque ela poderia ser retalhada de forma muito violenta a ponto de ser devastada”, avalia Brites, que argumenta que este cálculo estratégico de poderio sequer precisa incluir os Estados Unidos como adversário.

No dia 30 de dezembro, Kim Jong-un declarou que era um 'fato consumado' a possibilidade de eclosão de uma nova entre as Coreias. Foto: KCNA via KNS/ AFP

A eclosão de um novo conflito, porém, dificilmente não atrairia uma reação americana, de acordo com Jenny Town, diretora do programa de pesquisa sobre Coreia do Norte do Stimson Center. “Parece bastante claro, a curto prazo, que qualquer ação da Coreia do Norte que inicie um conflito seria recebida com respostas trilaterais dos Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão. A cooperação trilateral está atualmente em uma base bastante sólida e é provável que assim continue.”

Guerra interessa a (quase) nenhum ator envolvido

Um dos poucos cenários em que Kim Jong-un mudaria seu cálculo estratégico e iniciasse um novo conflito, na avaliação de Brites, seria em caso de uma ameaça latente de seus oponentes. “Se fosse crível de que se está tentando uma derrubada de governo mais efetiva, com, por exemplo, mobilização de fronteira por parte da Coreia do Sul ou também os Estados Unidos deslocando alguma das suas divisões marítimas para lá”, elucida.

Mas em um cenário que o principal aliado do Sul, os Estados Unidos, tenta equilibrar os pratos com a guerra na Ucrâniacuja ajuda financeira está comprometida — e mais recentemente com a guerra de Israel na Faixa de Gaza, os especialistas acreditam que há pouco, ou nenhum, interesse por um conflito de qualquer país envolvido, conforme aponta Alexandre Uehara, professor de relações internacionais da ESPM e especialista em Ásia.

“Se do lado diplomático e militar a relação com os Estados Unidos é muito importante para a Coreia do Sul, do lado comercial a China hoje também é um importante parceiro e que da mesma forma que não tem nenhum interesse (na guerra)”, esclarece o especialista, pontuando que uma unificação da Península a partir de uma ação com envolvimento dos Estados Unidos abriria brecha para tropas americanas chegarem até as fronteiras da China, o que o país evita fortemente.

Para os analistas, possivelmente o único ator que teria algo a ganhar com a guerra seria a Rússia, que atualmente é o maior parceiro diplomático de Kim Jong-un. Em um momento da guerra em que a Ucrânia tem se visto correndo contra o tempo para tentar mais dinheiro, custos para os Estados Unidos em outros lugares seriam benéficos ao país.

“Mas é muito pouco claro o quanto (os russos) seriam realmente capazes de fazer se a guerra na Ucrânia continuasse, especialmente quando a Rússia já está recebendo ajuda da Coreia do Norte em seu próprio esforço de guerra”, avalia Jenny, referindo-se a acusação recente por parte Estados Unidos, de que o Norte proporcionou ao governo de Putin sistemas de lançamento de mísseis balísticos e mísseis balísticos.

Mas se o Norte não pretende iniciar uma guerra, quais são suas intenções com uma postura de hostilidade tão intensa?

Olhos para o Norte

Contraditoriamente, para os especialistas, o aumento de tensões por parte do Norte pode ser, na verdade, uma tentativa de diálogo. “A Coreia do Norte, como já fez em muitos episódios, utiliza esses momentos em que ela está sentindo isolada, em que o seu tema não está mobilizando a agenda internacional, e comete alguns ‘atos de mobilização’”, explica Brites, em referência a ações como testes nucleares ou lançamento de satélite. “É como um black mail, uma chantagem.”

Portanto, não é coincidência que essa campanha militar de Kim se intensifique com a chegada de um ano em que há eleições legislativas marcadas na Coreia do Sul em abril e eleições presidenciais nos Estados Unidos em novembro. “Historicamente, sempre quando há períodos eleitorais, seja nos Estados Unidos ou no Sul, a Coreia do Norte tem algum nível de ação mais agressiva, justamente para que o tema dela não seja esquecido como prioritário nas eleições”, explica Brites.

Da mesma forma, a Coreia do Norte possui uma extensa trajetória de intensificar a pressão sobre a Coreia do Sul quando suas demandas não são atendidas por Washington. Nesse contexto, Kim pode estar buscando induzir negociações diretas com os Estados Unidos para solidificar seu status nuclear.

“Faz parte da estratégia do governo norte-coreano de ter sobre si a atenção. Se o Norte não tivesse essa postura, o mundo não daria muita atenção a eles, porque é um país pequeno, a fronteira é fechada. Se não houvesse essa preocupação com a área da segurança e com os testes que o país vem fazendo, o mundo daria muito menos atenção a eles”, diz Uehara, professor da ESPM.

Kim mudou sua visão

A campanha militar de Kim também parece ser uma demonstração de uma mudança fundamental em sua visão sobre a Península Coreana e o objetivo histórico do Norte de reunificar os dois países sob o controle de Pyongyang. O ditador refutou essencialmente os princípios de seu avô, Kim Il-sung, e agora, o Norte percebe a Coreia do Sul como uma potência estrangeira, em vez de parte de uma Coreia única, porém dividida.

“Isso é um reflexo do cálculo da Coreia do Norte de que não tem nada a ganhar com os EUA ou a Coreia do Sul [...] Esta é uma grande mudança feita de uma forma que Kim não será capaz de reverter facilmente no futuro, mesmo que a situação política melhore. Se não há nada a perder, então não há necessidade de tentar manter a paz (a não ser realmente iniciar uma guerra)”, avalia Jenny.

Respostas a exercícios militares

Os ataques do Norte são interpretados, também, como uma resposta aos exercícios militares promovidos pelos Estados Unidos e pela Coreia do Sul na Península Coreana. Kim, que deseja a todo custo reforçar sua capacidade de ataque nuclear contra seus rivais, busca realizar seus exercícios como uma contestação de sua força. Ciclicamente, os países, por sua vez, declaram que os testes são respostas às ações da Coreia do Norte.

Com ambas as partes expressando suas posições e reagindo às mensagens uma da outra, os especialistas destacam, no entanto, que, mesmo que nenhum dos lados tenha a intenção de iniciar uma guerra, não é o momento de baixar a guarda. As perspectivas de que pequenos incidentes possam evoluir para conflitos permanecem elevadas.

“Se um foguete desse cai em território japonês ou se atinge uma embarcação da Coreia do Sul, ou vice-versa, em um momento de tensão como estamos agora, é muito preocupante. Isso pode gerar uma dificuldade de explicação, e depende da animosidade da outra parte de tentar entender ou não esse incidente como algo hostil ou incidente de fato, o que pode deflagrar um conflito maior”, avalia Uehara.

Foto fornecida pelo governo norte-coreano mostra Kim Jong-un visitando fábricas de munições do país no dia 8 de janeiro. Foto: Agência Central de Notícias da Coreia/Serviço de Notícias da Coreia via AP, Arquivo

Se ambos os lados parecem determinados a não se intimidarem com as ações alheias, para os analistas, esse clima de pré-guerra não terá fim enquanto um dos lados não decidirem cessar suas reações individuais, e isso não deve partir do Norte, de acordo com Jenny.

“Isso deveria ser iniciado pela parte mais forte (EUA-Coreia do Sul) para criar espaço para a parte mais fraca seguir o exemplo. Afinal, quantas vezes esses países precisam lembrar a Coreia do Norte que eles poderiam ‘totalmente destruí-lo’?”.

“É um fato consumado que uma guerra pode eclodir a qualquer momento na península coreana”. A declaração dada por Kim Jon-un na véspera de Ano Novo, ordenando que o Exército se preparasse para “pacificar todo o território da Coreia do Sul”, deu início a 2024 exatamente como ele foi para a Península Coreana em 2023: de forma enérgica e rodeado de tensões pelo temor de um novo conflito entre os dois países.

Se em 1953, a guerra entre as Coreias acabou com um armistício em vez de um acordo de paz, 70 anos depois isso continua distante. Neste mês, Kim chegou a ordenar uma mudança na constituição do Norte, declarando o Sul como um permanente adversário e “inimigo primário”, desconsiderando-o como um potencial parceiro de reconciliação. A medida se soma a uma extensa campanha de intimidação por parte do Norte, que inclui lançamentos de mísseis a retirada de acordo para redução de tensões.

Qualquer possibilidade de conciliação a curto prazo parece ter sido destruída. Na semana passada, imagens de satélite revelaram que a Coreia do Norte demoliu um monumento em forma de arco em Pyongyang que simbolizava a reconciliação com o Sul.

Mas, afinal, o ditador norte-coreano está preparando terreno para uma guerra? Analistas ouvidos pelo Estadão avaliam que não, e o argumento para isso não é exatamente uma novidade: as forças de Kim não são páreas para a Coreia do Sul e seus aliados, e a puxada de um conflito pela Coreia do Norte dificilmente não resultaria uma autoaniquilação de seu regime, conforme pontua Pedro Brites, professor de Relações Internacionais da FGV e especialista em Ásia.

“Se a Coreia do Norte olha para o balanço (de forças), ela não ganha do Sul. A não ser que use armas nucleares, o que teria um custo muito alto, porque ela poderia ser retalhada de forma muito violenta a ponto de ser devastada”, avalia Brites, que argumenta que este cálculo estratégico de poderio sequer precisa incluir os Estados Unidos como adversário.

No dia 30 de dezembro, Kim Jong-un declarou que era um 'fato consumado' a possibilidade de eclosão de uma nova entre as Coreias. Foto: KCNA via KNS/ AFP

A eclosão de um novo conflito, porém, dificilmente não atrairia uma reação americana, de acordo com Jenny Town, diretora do programa de pesquisa sobre Coreia do Norte do Stimson Center. “Parece bastante claro, a curto prazo, que qualquer ação da Coreia do Norte que inicie um conflito seria recebida com respostas trilaterais dos Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão. A cooperação trilateral está atualmente em uma base bastante sólida e é provável que assim continue.”

Guerra interessa a (quase) nenhum ator envolvido

Um dos poucos cenários em que Kim Jong-un mudaria seu cálculo estratégico e iniciasse um novo conflito, na avaliação de Brites, seria em caso de uma ameaça latente de seus oponentes. “Se fosse crível de que se está tentando uma derrubada de governo mais efetiva, com, por exemplo, mobilização de fronteira por parte da Coreia do Sul ou também os Estados Unidos deslocando alguma das suas divisões marítimas para lá”, elucida.

Mas em um cenário que o principal aliado do Sul, os Estados Unidos, tenta equilibrar os pratos com a guerra na Ucrâniacuja ajuda financeira está comprometida — e mais recentemente com a guerra de Israel na Faixa de Gaza, os especialistas acreditam que há pouco, ou nenhum, interesse por um conflito de qualquer país envolvido, conforme aponta Alexandre Uehara, professor de relações internacionais da ESPM e especialista em Ásia.

“Se do lado diplomático e militar a relação com os Estados Unidos é muito importante para a Coreia do Sul, do lado comercial a China hoje também é um importante parceiro e que da mesma forma que não tem nenhum interesse (na guerra)”, esclarece o especialista, pontuando que uma unificação da Península a partir de uma ação com envolvimento dos Estados Unidos abriria brecha para tropas americanas chegarem até as fronteiras da China, o que o país evita fortemente.

Para os analistas, possivelmente o único ator que teria algo a ganhar com a guerra seria a Rússia, que atualmente é o maior parceiro diplomático de Kim Jong-un. Em um momento da guerra em que a Ucrânia tem se visto correndo contra o tempo para tentar mais dinheiro, custos para os Estados Unidos em outros lugares seriam benéficos ao país.

“Mas é muito pouco claro o quanto (os russos) seriam realmente capazes de fazer se a guerra na Ucrânia continuasse, especialmente quando a Rússia já está recebendo ajuda da Coreia do Norte em seu próprio esforço de guerra”, avalia Jenny, referindo-se a acusação recente por parte Estados Unidos, de que o Norte proporcionou ao governo de Putin sistemas de lançamento de mísseis balísticos e mísseis balísticos.

Mas se o Norte não pretende iniciar uma guerra, quais são suas intenções com uma postura de hostilidade tão intensa?

Olhos para o Norte

Contraditoriamente, para os especialistas, o aumento de tensões por parte do Norte pode ser, na verdade, uma tentativa de diálogo. “A Coreia do Norte, como já fez em muitos episódios, utiliza esses momentos em que ela está sentindo isolada, em que o seu tema não está mobilizando a agenda internacional, e comete alguns ‘atos de mobilização’”, explica Brites, em referência a ações como testes nucleares ou lançamento de satélite. “É como um black mail, uma chantagem.”

Portanto, não é coincidência que essa campanha militar de Kim se intensifique com a chegada de um ano em que há eleições legislativas marcadas na Coreia do Sul em abril e eleições presidenciais nos Estados Unidos em novembro. “Historicamente, sempre quando há períodos eleitorais, seja nos Estados Unidos ou no Sul, a Coreia do Norte tem algum nível de ação mais agressiva, justamente para que o tema dela não seja esquecido como prioritário nas eleições”, explica Brites.

Da mesma forma, a Coreia do Norte possui uma extensa trajetória de intensificar a pressão sobre a Coreia do Sul quando suas demandas não são atendidas por Washington. Nesse contexto, Kim pode estar buscando induzir negociações diretas com os Estados Unidos para solidificar seu status nuclear.

“Faz parte da estratégia do governo norte-coreano de ter sobre si a atenção. Se o Norte não tivesse essa postura, o mundo não daria muita atenção a eles, porque é um país pequeno, a fronteira é fechada. Se não houvesse essa preocupação com a área da segurança e com os testes que o país vem fazendo, o mundo daria muito menos atenção a eles”, diz Uehara, professor da ESPM.

Kim mudou sua visão

A campanha militar de Kim também parece ser uma demonstração de uma mudança fundamental em sua visão sobre a Península Coreana e o objetivo histórico do Norte de reunificar os dois países sob o controle de Pyongyang. O ditador refutou essencialmente os princípios de seu avô, Kim Il-sung, e agora, o Norte percebe a Coreia do Sul como uma potência estrangeira, em vez de parte de uma Coreia única, porém dividida.

“Isso é um reflexo do cálculo da Coreia do Norte de que não tem nada a ganhar com os EUA ou a Coreia do Sul [...] Esta é uma grande mudança feita de uma forma que Kim não será capaz de reverter facilmente no futuro, mesmo que a situação política melhore. Se não há nada a perder, então não há necessidade de tentar manter a paz (a não ser realmente iniciar uma guerra)”, avalia Jenny.

Respostas a exercícios militares

Os ataques do Norte são interpretados, também, como uma resposta aos exercícios militares promovidos pelos Estados Unidos e pela Coreia do Sul na Península Coreana. Kim, que deseja a todo custo reforçar sua capacidade de ataque nuclear contra seus rivais, busca realizar seus exercícios como uma contestação de sua força. Ciclicamente, os países, por sua vez, declaram que os testes são respostas às ações da Coreia do Norte.

Com ambas as partes expressando suas posições e reagindo às mensagens uma da outra, os especialistas destacam, no entanto, que, mesmo que nenhum dos lados tenha a intenção de iniciar uma guerra, não é o momento de baixar a guarda. As perspectivas de que pequenos incidentes possam evoluir para conflitos permanecem elevadas.

“Se um foguete desse cai em território japonês ou se atinge uma embarcação da Coreia do Sul, ou vice-versa, em um momento de tensão como estamos agora, é muito preocupante. Isso pode gerar uma dificuldade de explicação, e depende da animosidade da outra parte de tentar entender ou não esse incidente como algo hostil ou incidente de fato, o que pode deflagrar um conflito maior”, avalia Uehara.

Foto fornecida pelo governo norte-coreano mostra Kim Jong-un visitando fábricas de munições do país no dia 8 de janeiro. Foto: Agência Central de Notícias da Coreia/Serviço de Notícias da Coreia via AP, Arquivo

Se ambos os lados parecem determinados a não se intimidarem com as ações alheias, para os analistas, esse clima de pré-guerra não terá fim enquanto um dos lados não decidirem cessar suas reações individuais, e isso não deve partir do Norte, de acordo com Jenny.

“Isso deveria ser iniciado pela parte mais forte (EUA-Coreia do Sul) para criar espaço para a parte mais fraca seguir o exemplo. Afinal, quantas vezes esses países precisam lembrar a Coreia do Norte que eles poderiam ‘totalmente destruí-lo’?”.

“É um fato consumado que uma guerra pode eclodir a qualquer momento na península coreana”. A declaração dada por Kim Jon-un na véspera de Ano Novo, ordenando que o Exército se preparasse para “pacificar todo o território da Coreia do Sul”, deu início a 2024 exatamente como ele foi para a Península Coreana em 2023: de forma enérgica e rodeado de tensões pelo temor de um novo conflito entre os dois países.

Se em 1953, a guerra entre as Coreias acabou com um armistício em vez de um acordo de paz, 70 anos depois isso continua distante. Neste mês, Kim chegou a ordenar uma mudança na constituição do Norte, declarando o Sul como um permanente adversário e “inimigo primário”, desconsiderando-o como um potencial parceiro de reconciliação. A medida se soma a uma extensa campanha de intimidação por parte do Norte, que inclui lançamentos de mísseis a retirada de acordo para redução de tensões.

Qualquer possibilidade de conciliação a curto prazo parece ter sido destruída. Na semana passada, imagens de satélite revelaram que a Coreia do Norte demoliu um monumento em forma de arco em Pyongyang que simbolizava a reconciliação com o Sul.

Mas, afinal, o ditador norte-coreano está preparando terreno para uma guerra? Analistas ouvidos pelo Estadão avaliam que não, e o argumento para isso não é exatamente uma novidade: as forças de Kim não são páreas para a Coreia do Sul e seus aliados, e a puxada de um conflito pela Coreia do Norte dificilmente não resultaria uma autoaniquilação de seu regime, conforme pontua Pedro Brites, professor de Relações Internacionais da FGV e especialista em Ásia.

“Se a Coreia do Norte olha para o balanço (de forças), ela não ganha do Sul. A não ser que use armas nucleares, o que teria um custo muito alto, porque ela poderia ser retalhada de forma muito violenta a ponto de ser devastada”, avalia Brites, que argumenta que este cálculo estratégico de poderio sequer precisa incluir os Estados Unidos como adversário.

No dia 30 de dezembro, Kim Jong-un declarou que era um 'fato consumado' a possibilidade de eclosão de uma nova entre as Coreias. Foto: KCNA via KNS/ AFP

A eclosão de um novo conflito, porém, dificilmente não atrairia uma reação americana, de acordo com Jenny Town, diretora do programa de pesquisa sobre Coreia do Norte do Stimson Center. “Parece bastante claro, a curto prazo, que qualquer ação da Coreia do Norte que inicie um conflito seria recebida com respostas trilaterais dos Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão. A cooperação trilateral está atualmente em uma base bastante sólida e é provável que assim continue.”

Guerra interessa a (quase) nenhum ator envolvido

Um dos poucos cenários em que Kim Jong-un mudaria seu cálculo estratégico e iniciasse um novo conflito, na avaliação de Brites, seria em caso de uma ameaça latente de seus oponentes. “Se fosse crível de que se está tentando uma derrubada de governo mais efetiva, com, por exemplo, mobilização de fronteira por parte da Coreia do Sul ou também os Estados Unidos deslocando alguma das suas divisões marítimas para lá”, elucida.

Mas em um cenário que o principal aliado do Sul, os Estados Unidos, tenta equilibrar os pratos com a guerra na Ucrâniacuja ajuda financeira está comprometida — e mais recentemente com a guerra de Israel na Faixa de Gaza, os especialistas acreditam que há pouco, ou nenhum, interesse por um conflito de qualquer país envolvido, conforme aponta Alexandre Uehara, professor de relações internacionais da ESPM e especialista em Ásia.

“Se do lado diplomático e militar a relação com os Estados Unidos é muito importante para a Coreia do Sul, do lado comercial a China hoje também é um importante parceiro e que da mesma forma que não tem nenhum interesse (na guerra)”, esclarece o especialista, pontuando que uma unificação da Península a partir de uma ação com envolvimento dos Estados Unidos abriria brecha para tropas americanas chegarem até as fronteiras da China, o que o país evita fortemente.

Para os analistas, possivelmente o único ator que teria algo a ganhar com a guerra seria a Rússia, que atualmente é o maior parceiro diplomático de Kim Jong-un. Em um momento da guerra em que a Ucrânia tem se visto correndo contra o tempo para tentar mais dinheiro, custos para os Estados Unidos em outros lugares seriam benéficos ao país.

“Mas é muito pouco claro o quanto (os russos) seriam realmente capazes de fazer se a guerra na Ucrânia continuasse, especialmente quando a Rússia já está recebendo ajuda da Coreia do Norte em seu próprio esforço de guerra”, avalia Jenny, referindo-se a acusação recente por parte Estados Unidos, de que o Norte proporcionou ao governo de Putin sistemas de lançamento de mísseis balísticos e mísseis balísticos.

Mas se o Norte não pretende iniciar uma guerra, quais são suas intenções com uma postura de hostilidade tão intensa?

Olhos para o Norte

Contraditoriamente, para os especialistas, o aumento de tensões por parte do Norte pode ser, na verdade, uma tentativa de diálogo. “A Coreia do Norte, como já fez em muitos episódios, utiliza esses momentos em que ela está sentindo isolada, em que o seu tema não está mobilizando a agenda internacional, e comete alguns ‘atos de mobilização’”, explica Brites, em referência a ações como testes nucleares ou lançamento de satélite. “É como um black mail, uma chantagem.”

Portanto, não é coincidência que essa campanha militar de Kim se intensifique com a chegada de um ano em que há eleições legislativas marcadas na Coreia do Sul em abril e eleições presidenciais nos Estados Unidos em novembro. “Historicamente, sempre quando há períodos eleitorais, seja nos Estados Unidos ou no Sul, a Coreia do Norte tem algum nível de ação mais agressiva, justamente para que o tema dela não seja esquecido como prioritário nas eleições”, explica Brites.

Da mesma forma, a Coreia do Norte possui uma extensa trajetória de intensificar a pressão sobre a Coreia do Sul quando suas demandas não são atendidas por Washington. Nesse contexto, Kim pode estar buscando induzir negociações diretas com os Estados Unidos para solidificar seu status nuclear.

“Faz parte da estratégia do governo norte-coreano de ter sobre si a atenção. Se o Norte não tivesse essa postura, o mundo não daria muita atenção a eles, porque é um país pequeno, a fronteira é fechada. Se não houvesse essa preocupação com a área da segurança e com os testes que o país vem fazendo, o mundo daria muito menos atenção a eles”, diz Uehara, professor da ESPM.

Kim mudou sua visão

A campanha militar de Kim também parece ser uma demonstração de uma mudança fundamental em sua visão sobre a Península Coreana e o objetivo histórico do Norte de reunificar os dois países sob o controle de Pyongyang. O ditador refutou essencialmente os princípios de seu avô, Kim Il-sung, e agora, o Norte percebe a Coreia do Sul como uma potência estrangeira, em vez de parte de uma Coreia única, porém dividida.

“Isso é um reflexo do cálculo da Coreia do Norte de que não tem nada a ganhar com os EUA ou a Coreia do Sul [...] Esta é uma grande mudança feita de uma forma que Kim não será capaz de reverter facilmente no futuro, mesmo que a situação política melhore. Se não há nada a perder, então não há necessidade de tentar manter a paz (a não ser realmente iniciar uma guerra)”, avalia Jenny.

Respostas a exercícios militares

Os ataques do Norte são interpretados, também, como uma resposta aos exercícios militares promovidos pelos Estados Unidos e pela Coreia do Sul na Península Coreana. Kim, que deseja a todo custo reforçar sua capacidade de ataque nuclear contra seus rivais, busca realizar seus exercícios como uma contestação de sua força. Ciclicamente, os países, por sua vez, declaram que os testes são respostas às ações da Coreia do Norte.

Com ambas as partes expressando suas posições e reagindo às mensagens uma da outra, os especialistas destacam, no entanto, que, mesmo que nenhum dos lados tenha a intenção de iniciar uma guerra, não é o momento de baixar a guarda. As perspectivas de que pequenos incidentes possam evoluir para conflitos permanecem elevadas.

“Se um foguete desse cai em território japonês ou se atinge uma embarcação da Coreia do Sul, ou vice-versa, em um momento de tensão como estamos agora, é muito preocupante. Isso pode gerar uma dificuldade de explicação, e depende da animosidade da outra parte de tentar entender ou não esse incidente como algo hostil ou incidente de fato, o que pode deflagrar um conflito maior”, avalia Uehara.

Foto fornecida pelo governo norte-coreano mostra Kim Jong-un visitando fábricas de munições do país no dia 8 de janeiro. Foto: Agência Central de Notícias da Coreia/Serviço de Notícias da Coreia via AP, Arquivo

Se ambos os lados parecem determinados a não se intimidarem com as ações alheias, para os analistas, esse clima de pré-guerra não terá fim enquanto um dos lados não decidirem cessar suas reações individuais, e isso não deve partir do Norte, de acordo com Jenny.

“Isso deveria ser iniciado pela parte mais forte (EUA-Coreia do Sul) para criar espaço para a parte mais fraca seguir o exemplo. Afinal, quantas vezes esses países precisam lembrar a Coreia do Norte que eles poderiam ‘totalmente destruí-lo’?”.

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