A história da Operação Estrela, como ficou conhecida a fuga de 38 mulheres guerrilheiras de uma prisão no Uruguai antes da ditadura militar, foi publicada pela primeira vez pela jornalista Josefina Licitra em uma revista no Brasil. Agora, quase 10 anos depois, o feito histórico retorna ao país com a tradução do livro “38 estrelas: a maior fuga de um presídio de mulheres da história”, lançado este mês pela editora Relicário.
Em entrevista ao Estadão, a jornalista argentina comemorou a chegada do livro ao país. “Não deixa de ser emocionante que uma história de um dos menores países da América Latina, como o Uruguai, possa agora anos depois cruzar a fronteira e chegar ao Brasil, isso me deixa muito contente”.
Publicada em espanhol em 2018, a obra foi eleita um dos melhores livros daquele ano pelo The New York Times e pela Forbes. Nos últimos dias 17 e 18, Licitra desembarcou no Rio de Janeiro para o lançamento do livro em português e conversou com a reportagem por vídeo-chamada. A publicação foi traduzida por Elisa Menezes.
Uma história esquecida
Em 30 de julho de 1971, no ápice dos movimentos guerrilheiros e anarquistas no Uruguai, mulheres pertencentes ao Movimento de Liberação Nacional - Tupamaros planejaram por meses uma fuga quase cinematográfica pelos esgotos de Montevidéu. A história, porém, caiu no esquecimento, especialmente porque meses depois outra fuga, desta vez de homens Tupamaros entre eles José ‘Pepe’ Mujica, ficaria mais conhecida ganhando livros, reportagens e documentários.
Licitra ouviu falar sobre a façanha pela primeira vez em 2011 quando escrevia um perfil de Mujica, então presidente do Uruguai. Em uma conversa rápida com Lucía Topolansky, ex-vice presidente do país, atualmente senadora e companheira de Mujica. Topolansky havia sido uma das 38 mulheres e fazia parte da alta cúpula que planejou a ação. Na conversa, porém, ela mencionou o feito muito rapidamente, como algo menos importante.
“Como a entrevista era sobre Pepe, não pude me aprofundar muito nisso, mas depois fui procurar materiais na internet e me surpreendeu muito encontrar quase nada”, contou. “Quando vi que toda aquela história, que me era tão sedutora, não havia tido grande destaque por parte da mídia, isso chamou minha atenção. Não apenas a história em si, mas o silêncio que havia sobre ela”.
Ela propôs investigar a história para a revista brasileira Piauí e viajou ao Uruguai em em 2015 para encontrar essas mulheres. “A primeira etapa foi verificar se elas tinham vontade de falar ou não, e eu percebi que surgiu quase naturalmente. Elas falavam sem problemas, que tinham vontade de contar sua história.”
“Algumas eram mais eloquentes que outras, mas havia muita vontade de falar e foi um discurso muito particular. Foi praticamente a primeira vez que elas contaram sua história no espaço público.”
Uma fuga feita com materiais de costura
Por razões desconhecidas, a fuga das mulheres tupamaras da penitenciária de Cabildo, em Montevidéu, ficou conhecida como Operação Estrela, de onde vem o nome da obra e é classificada como a maior fuga planejada de mulheres da história. Houve depois a fuga de 300 detentas de uma prisão no Chile em 2014, quando um terremoto de 8,2 graus de magnitude afetou a penitenciária e facilitou a escapada. Mas esta foi propiciada pela tragédia.
Segundo a jornalista, escapar da prisão se tornava o objetivo dos guerrilheiros tupamaros desde o primeiro momento em que eram capturados. Por isso, o planejamento da Operação Estrela ocorreu durante meses.
De um lado, as detentas utilizavam fitas métricas e linhas (o único material que tinham acesso utilizado para costura) para mapear onde o buraco deveria ser aberto dentro da prisão. Do outro lado, colegas tupamaros cavavam um túnel que ligava a rede de esgoto à prisão de um lado e à uma casa alugada por eles de outro a apenas 10 quarteirões dali.
“Havia uma militante que era arquiteta, Marta Avella, que ajudou a fazer as plantas da prisão usando as fitas métricas de costura. Tomavam as medidas e as anotavam em papéis de enrolar cigarros que depois eram dobrados como se fossem pequenos doces e eram colocados na boca ou na mão e, durante uma visita, passavam-nos para aqueles que estavam do lado de fora”, reconstrói a jornalista.
Com isso, às 22h30 daquele 30 de julho, horário preciso que não havia vigilância perto do local do buraco, as mulheres fugiram, deixando para trás travesseiros nas camas simulando pessoas dormindo. Para fingir o som de roncos, colocaram um rádio com estática para tocar.
A arquitetura da prisão foi fundamental para o episódio. A ala das presas políticas de Cabildo não era como uma prisão comum com pessoas encarceradas em celas. O espaço parecia uma casa, onde as presas podiam interagir e fazer as atividades esperadas de mulheres, como costurar, e era gerido por freiras. “Algo que só poderia existir no Uruguai”, brinca Licitra.
Praticamente todas foram presas novamente depois, agora já em período de ditadura que no Uruguai durou de 1973 a 1985. Por isso, o tratamento foi muito diferente, com relatos de abusos e torturas.
A autora admite que ainda não é capaz de responder com convicção os motivos pelos quais esta história se perdeu no tempo. Suas teorias são duas: uma que, dois meses depois, uma outra fuga ofuscou o feito das Estrelas. Em setembro daquele ano, 111 homens - entre eles Mujica - escaparam de Punta Carretas, número tão alto que recebeu o nome de Operação Abuso. Outra é uma questão de gênero e época.
“A Operação Estrela aconteceu num tempo que as mulheres eram vistas, mesmo nos movimentos de esquerda, sob uma ótica que as limitava ao cercado das ‘pequenas coisas’; um lugar desvalorizado, inofensivo e distante das marcas discursivas que hoje nos permitem falar em igualdade de gênero”, aponta a jornalista no prólogo do livro.
Autocrítica
O livro de Licitra chega em um momento em que novas lideranças políticas, libertárias e de direita radical vêm propondo um revisionismo histórico dos períodos ditatoriais e de guerrilhas na América Latina. O presidente argentino Javier Milei e sua vice Victoria Villarruel são os mais vocais nesse tema, defendendo uma revisão dos números de mortos na ditadura militar, reparação à imagem das Forças Armadas e classificando movimentos guerrilheiros de terroristas.
Para autora, questionamentos como este e a própria ascensão de movimentos de direita radical são resultado da falta de autocrítica das esquerdas latino-americanas e também das direitas democráticas. É nesta brecha que ela espera ver o seu livro contribuindo para a discussão histórica.
“Cada uma dessas histórias é uma oportunidade, especialmente quando se pode voltar às fontes e conversar com essas pessoas, de ver como os pensamentos delas evoluíram desde os anos 70, quando elas tinham entre 19 e 30 anos. Hoje elas têm uma perspectiva muito interessante sobre seu próprio passado, que é de muito amor e muita convicção, mas também com elementos de autocrítica”, diz.
“E eu acredito que uma maneira de conter a ultradireita é começar a fazer uma autocrítica séria. É possível fazer uma leitura séria dos erros, porque isso também te dá autoridade para apontar os erros dos outros de uma maneira muito mais irrepreensível. Quando, por exemplo, Milei diz ‘cale-se, você colocou bombas nos jardins de infância’, a pessoa perde a luta porque a autocrítica deveria ter sido feita antes para que não tenham nada para te atacar”.
Em 2023, o então candidato Javier Milei acusou a também candidata Patricia Bullrich de ter plantado bombas em jardins de infância quando atuava no movimento Montoneros - algo que ela negou e processou Milei.
“A possibilidade que alguém tem de trazer de volta ao discurso e à discussão pública eventos do passado ou dos anos 70, um momento em que se pensou na possibilidade de o mundo ser governado por outras leis sociais e políticas, mas é fundamental voltar de uma maneira mais atualizada”, finaliza a jornalista.