Com a volta do Taleban ao poder, o Afeganistão se torna um prêmio para o senso de oportunidade dos chineses. Em princípio, o Taleban representaria uma ameaça para a China, por sua identificação ideológica e vínculos concretos com os militantes separatistas uigures da Província de Xinjiang. No entanto, ou por isso mesmo, os chineses sempre mantiveram canais de diálogo com o Taleban.
Esses contatos se intensificaram, num crescendo, com as negociações do Taleban com o governo de Donald Trump, a partir de 2018, o acordo firmado em fevereiro do ano passado, prevendo a retirada das forças americanas em 14 meses, e a sua retificação pelo presidente Joe Biden, que apenas estendeu o prazo até setembro.
A retirada começou no dia 1.º de maio. Em 28 de julho, o chanceler chinês, Wang Yi, recebeu uma delegação do Taleban, encabeçada pelo mulá Abdul Ghani Baradar, responsável pelas relações exteriores do grupo e cotado para se tornar presidente do Afeganistão. Wang não recebe qualquer pessoa.
No encontro, Baradar prometeu que, sob um futuro governo do Taleban, o Afeganistão “não será um refúgio de terroristas”. O Taleban tomou o palácio presidencial em Cabul no domingo passado. Na segunda-feira, enviou uma mensagem ao governo em Pequim, reafirmando o desejo de “cooperação e amizade” com a China. A chancelaria chinesa respondeu nos mesmos termos, reconhecendo, na prática, o novo regime.
No mesmo dia, perguntei ao ministro-conselheiro da embaixada chinesa em Brasília, Qu Yuhui, se não havia o risco de a China sair prejudicada com esse reconhecimento, dada a imagem ruim do Taleban no mundo. O diplomata me explicou que a China respeita a autodeterminação dos povos, não interfere nas decisões de outros países, e recebeu garantias de que o novo regime não abrigaria terroristas.
Segundo o presidente do Banco Central afegão, Ajmal Ahmady, que fugiu do país no domingo, a asfixia econômica decorrente do bloqueio internacional ao regime do Taleban, considerado uma organização terrorista, terá consequências “terríveis”. Pelo menos desde os anos 50, o Afeganistão depende de ajuda internacional para atender às necessidades básicas de sua população. Na disputa da Guerra Fria, essa ajuda vinha simultaneamente dos EUA e da URSS.
Estava previsto justamente na segunda-feira um aporte de US$ 460 milhões do programa global de ajuda do FMI para lidar com a pandemia. A tomada do poder pelo Taleban levou o FMI a cancelar o envio. O Afeganistão tinha US$ 9 bilhões em reservas externas na semana anterior à queda do governo. A maior parte está em contas internacionais e foi congelada.
Na entrevista coletiva de segunda-feira, o porta-voz do Taleban, Zabihullah Mujahid – cujo rosto foi visto pela primeira vez por nós, repórteres que cobrimos Afeganistão, e costumávamos falar com ele apenas pelo telefone, em ligações interrompidas diversas vezes para que ele não fosse localizado pelas forças americanas –, disse que a intenção é impedir que o país siga sendo um centro de produção de drogas.
Mais de 80% do ópio e da heroína consumidos no mundo provêm do Afeganistão, segundo o Escritório da ONU de Drogas e Crime. O Taleban, que manteve presença crescente sobre todo o território na última década, foi financiado pela cobrança de 10% de impostos sobre esse comércio, na forma de zakat, espécie de dízimo, uma das cinco obrigações dos muçulmanos.
O porta-voz acrescentou: “Precisamos de ajuda da comunidade internacional para encontrar alternativas econômicas”. À medida que as denúncias de violações dos direitos humanos pelo novo regime se multiplicarem, essa ajuda não acontecerá. O isolamento do Afeganistão o tornará dependente da China, como ocorre com Irã, Venezuela e Coreia do Norte. Uma lacuna no mapa da Nova Rota da Seda foi preenchida. É COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS