O atentado contra Donald Trump representa um impulso formidável para a jornada do ex-presidente de volta à Casa Branca. A tentativa de assassinato de um dos principais candidatos a presidente dos Estados Unidos a menos de quatro meses das eleições reforça também a percepção de desfuncionalidade da democracia americana, fartamente utilizada pelos adversários do país.
Do ponto de vista eleitoral, não é uma mudança de rumo: é um combustível potente e inesperado para o papel de vítima e de herói que Trump já havia adotado desde a campanha de 2020, que coincidiu com a pandemia de covid.
O ataque, cuja autenticidade e gravidade são inquestionáveis, dá materialidade à ideia de uma conspiração nacional e internacional para impedir que o bilionário empresário salve os americanos da esquerda, do establishment e da China, e “faça a América grande de novo”.
Um detalhe da biografia do atirador poderia prejudicar essa tese. De acordo com o FBI, o suspeito, Thomas Matthew Crooks, de 20 anos, morto por agentes do Serviço Secreto logo depois de fazer os disparos, era registrado como eleitor republicano. Seria a primeira eleição em que ele teria idade para votar.
Os seguidores de Trump devem se apegar a uma outra informação, também fornecida pela polícia federal americana: em janeiro de 2021, Crooks doou US$ 15 ao comitê democrata Projeto de Comparecimento Progressista.
Trump escapou por pouco. Um dos tiros atingiu sua orelha direita. Por um centímetro ele não foi ferido gravemente, ou mesmo fatalmente, na cabeça. Depois de se abaixar, o candidato, que estava nos primeiros minutos de um comício na zona rural da Pensilvânia, levantou-se, já protegido por agentes do Serviço Secreto, ergueu o punho direito fechado em sinal de desafio, e gritou: “Lutem, lutem!”, antes de ser levado para a limusine que o transportaria a um hospital local.
O ferimento foi superficial. Mas o suficiente para cobrir de sangue sua orelha e gerar uma cena que reforça espetacularmente a imagem de um candidato viril, com grande vitalidade e determinação, em contraste com seu oponente, o presidente Joe Biden, que tem dado repetidos sinais de fragilidade física e sobretudo de decrepitude mental, embora a diferença de idade entre ambos seja de apenas três anos: 81 a 78.
“Acabo de falar com meu pai ao telefone e ele está ótimo (in great spirits)”, declarou Donald Trump Jr., que costuma atuar como porta-voz das visões mais radicais e possível herdeiro político do ex-presidente. “Ele nunca parará de lutar para salvar a América, não importa o que a esquerda radical fizer contra ele.” É assim que Trump se refere aos democratas.
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O ex-presidente publicou um post no Truth Social, a rede que ele criou para contornar a moderação de conteúdo das redes sociais: “É incrível que um ato como esse possa ocorrer em nosso país. Deus abençoe a América”. Na mensagem, ele conta em detalhes o que ocorreu: “Fui atingido por uma bala que cortou a parte superior da minha orelha direita. Soube imediatamente que algo estava errado e ouvi um zumbido, tiros, e imediatamente senti a bala cortando a pele. Muito sangramento ocorreu, então entendi o que estava acontecendo”.
Ele agradeceu o Serviço Secreto e as forças de segurança pela “resposta rápida” e ofereceu condolências à família do participante do comício morto pelos disparos.
Entretanto, os republicanos poderão explorar a falha de segurança que possibilitou o atentado. O atirador foi visto por uma testemunha, Ben Macer, entrevistado pela filial local da CNN, passando de um telhado para o outro, entre prédios de dois andares imediatamente fora do perímetro de segurança do comício. Macer diz que avisou a polícia e estava voltando para o seu lugar na multidão, quando ouviu os disparos.
Crooks tinha um fuzil e estava no campo de visão dos agentes da unidade anti-sniper que faziam a segurança do presidente. O fato de ele não ter sido visto antes de abrir fogo será bastante explorado. O presidente da Câmara dos Deputados, Mike Johnson, que chegou ao cargo por uma rebelião trumpista, disse que a Casa vai investigar o atentado.
Trump se elegeu em 2016 denunciando a elite política americana, e prometendo “drenar o pântano de Washington”. Ao longo de seu mandato, ele incluiu entre seus inimigos a CIA e o FBI, como parte de um “Estado profundo” que conspiraria em favor dos liberais, o que é completamente infundado. Desde 1924, quando foi criado o cargo, todos os diretores do FBI foram republicanos. A CIA, assim como as Forças Armadas americanas, também tem uma forte inclinação conservadora.
Os quatro processos nos quais Trump se tornou réu este ano, e a condenação em um deles, levaram o ex-presidente a se retratar como alvo de perseguição política pelo sistema de Justiça americano. A falha de segurança e o atentado em si parecem confirmar a percepção difusa que ele procura criar em torno de si mesmo, de vítima e de herói.
Esse ângulo se encaixa na narrativa de líder antissistema, e lhe permite, por exemplo, não aceitar a derrota eleitoral de 2020. Pesquisas mostram que mais de 70% dos eleitores republicanos acreditam na versão de Trump de fraude na contagem dos votos.
Ao atacar o sistema eleitoral e a Justiça, Trump coloca em xeque dois fundamentos da sociedade americana. E fornece munição para as ditaduras adversárias dos Estados Unidos, como China, Rússia, Coreia do Norte e Irã. Biden procurou caracterizar a disputa geopolítica do Ocidente com esses adversários como uma luta entre a democracia e a autocracia.
As falhas na democracia americana, a instabilidade gerada pela invasão do Capitólio em 2021, incentivada por Trump em face de sua derrota eleitoral, e o atentado deste sábado dão elementos para os detratores dos Estados Unidos contestarem a suposta superioridade moral de seu sistema.
O próprio presidente Lula, ele mesmo vítima de uma tentativa de golpe militar de seu antecessor derrotado nas urnas, alinha-se com essas críticas ao sistema americano, para contestar a liderança dos Estados Unidos.
Trump, na condição de líder da campanha contra as instituições americanas, e agora como vítima real de um ato de violência política, dá uma contribuição fundamental para essa contestação.