A conclusão do acordo Mercosul-União Europeia é a conquista mais importante da política externa brasileira desde a Cimeira de junho de 1999, no Rio, que lançou o processo de negociação, e que eu cobri para o Estadão. O acordo está longe de completo, perfeito e até garantido, mas tem enorme significado geopolítico e potenciais benefícios econômicos.
Como disse a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, “em um mundo cada vez mais conflituoso”, os dois blocos demonstraram que “as democracias podem confiar umas nas outras”. No caso europeu, fizeram isso enfrentando o protecionismo agrícola impulsionado pela extrema direita e esquerda.
Funcionários europeus consideram que o acordo reduzirá a dependência do continente do comércio com a China e também o impacto das tarifas que Donald Trump ameaça impor. Claro que o Mercosul não substitui essas duas potências econômicas, mas a mensagem é política: a Europa não está disposta a ser chantageada por governos que não compartilham seus valores.
Nesse sentido, o acordo serve para relativizar — embora não apague completamente — a percepção no Ocidente de que o governo Lula busca um alinhamento com a China e a Rússia no âmbito dos Brics. E abre ainda uma rara e bem-vinda perspectiva de coerência e linearidade do interesse nacional entre os governos de Lula e de Jair Bolsonaro, quem primeiro finalizou o acordo em 2019, depois reaberto por iniciativa da Europa para introduzir uma cláusula ambiental.
O acordo é limitado pelo protecionismo de ambos os lados. A indústria automobilística, objeto de fetiche das correntes nacional-desenvolvimentistas, e de apego pessoal de Lula, que iniciou sua carreira no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, é agraciada com proteções especiais que limitarão os benefícios para os compradores de carros no Brasil.
Os automóveis no Mercosul são protegidos por alíquota de importação de 35% — a maior para produtos industriais. Essa tarifa será reduzida gradualmente ao longo de 15 anos para veículos a combustão fabricados na Europa, de 18 anos para os elétricos e de 25 anos para os movidos a hidrogênio, com 6 anos de carência. Se surgirem novas tecnologias, o período se estende a 30 anos, também com 6 de carência.
Como se não bastasse, se o aumento das importações de automóveis europeus causarem “dano” à indústria do Mercosul (leia-se brasileira e argentina), como redução do nível de emprego, de venda, produção e capacidade instalada, a alíquota de 35% pode ser retomada pelo período de 3 anos, renovável por mais 2.
Igualmente, o governo brasileiro impôs salvaguardas para as compras governamentais, para se reservar o direito de alimentar campeões nacionais com o dinheiro público. São barreiras que reduzirão os incentivos de vários setores em investir em inovação e competitividade, o que seria salutar para o próprio Brasil, como aconteceu com o agronegócio há três décadas. Mas essa não é a visão predominante no governo nem na sociedade.
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De sua parte, a UE impõe cotas para limitar a entrada de produtos agropecuários. Mesmo assim, França, Itália e Polônia, grandes países agrícolas, poderão torpedear a aprovação do capítulo comercial do acordo no Conselho de Ministros. Eles somam 37% da população da UE, e a aprovação requer maioria qualificada de 15 dos 27 países no Conselho, desde que reúnam 65% da população, além de maioria simples no Parlamento Europeu.
Os opositores devem impedir também a entrada em vigor dos outros capítulos do acordo, que requerem aprovação nos Parlamentos nacionais e regionais.
Os que apoiam o acordo afirmam que o seu capítulo comercial pode ser aprovado por maioria qualificada de 15 dos 27 países no Conselho, desde que reúnam 55% da população, e por maioria simples no Parlamento Europeu. Os opositores questionarão essa manobra, além de impedir a entrada em vigor dos outros capítulos do acordo, que requerem aprovação nos Parlamentos nacionais e regionais.
Num reconhecimento importante, foi aprovado um novo texto do Anexo de Comércio e Desenvolvimento Sustentável, que prevê que a UE reconheça a análise, por parte de agências do Mercosul, de conformidade dos produtos com as regras europeias.
Outra garantia significativa, sobretudo para o Brasil, é que as regras ambientais que restringem produtos com origem no desmatamento, por exemplo, não poderão violar as normas da Organização Mundial do Comércio.
A referência à OMC, assim como o espírito geral do acordo, causa uma espécie de nostalgia em relação a um passado recente, no qual o mundo apostava na globalização, nas regras internacionais e nas instâncias multilaterais de decisão.
O Brasil de Fernando Henrique Cardoso e de Lula perdeu as oportunidades que aquele período lhe ofereceu, em especial a Área de Livre Comércio das Américas. Que agora decida aproveitar a chance com a UE parece quase um milagre.