É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|Kamala conseguiu colocar Trump na defensiva em debate eleitoral dos EUA


O que se viu no embate entre os dois candidatos é exatamente o contrário do que se poderia esperar: Trump está em campanha para presidente desde 2015; Kamala, há 52 dias

Por Lourival Sant'Anna
Atualização:

Do ponto de vista da forma, no sentido mais estrito, foi um debate equilibrado, no nível de assertividade, foco e autocontrole dos dois candidatos. Já no que tange ao conteúdo, Kamala Harris conseguiu explorar um espectro maior de temas, ser mais propositiva e até colocar Donald Trump na defensiva.

Tudo isso é exatamente o contrário do que se poderia esperar. Em sua terceira campanha presidencial, Trump é um veterano nesse tipo de debate, enquanto para Kamala foi a primeira vez. Trump está em campanha para presidente desde 2015; Kamala, há 52 dias. E antes de se lançar à presidência, ele tinha um programa de TV.

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Seu maior domínio do meio lhe permitiu falar 5 minutos a mais do que a adversária: embora as regras reservassem tempos iguais para ambos, Trump conseguiu prolongar suas falas reivindicando direito de resposta e seguindo adiante antes que os moderadores lhe concedessem mais tempo. Mesmo assim, ele não dominou o debate.

O candidato republicano, o ex-Presidente Donald Trump, e a democrata, a Vice-Presidente Kamala Harris, participam de debate presidencial da ABC News, na Filadélfia Foto: Alex Brandon/AP

No começo, a voz de Kamala transmitiu nervosismo, mas logo ela pareceu mais à vontade. A vice-presidente usou o seu treino como ex-promotora, procuradora geral da Califórnia e senadora para defender suas teses e contestar as de seu oponente como se estivesse em um tribunal. Ela usou várias vezes de sarcasmo — uma arma que Trump costuma dominar — e não saiu do sério diante das comparações ofensivas, por exemplo de que Kamala seria pior que seu “chefe”, Joe Biden.

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A vice não se empenhou em defender o legado do atual governo: “Eu não sou Joe Biden”, repetiu. Mas conseguiu colocar Trump contra a parede, por exemplo enumerando os funcionários de alto escalão que participaram de seu governo e hoje o denunciam como alguém que não respeita a Constituição e age só pelo próprio interesse. “Eles escreveram livros contra mim porque eu os demiti. Ninguém faz isso com vocês porque vocês não demitem os maus funcionários”, rebateu Trump.

Ele respondeu de forma parecida à alegação da vice-presidente de que governantes do mundo inteiro o desprezam. Segundo Trump, alguns líderes europeus não gostam dele porque ele os obrigou a arcar com os custos de sua própria defesa, enquanto Biden gastou US$ 115 bilhões para proteger a Europa da Rússia. Mas lembrou que Viktor Orbán, o conservador primeiro-ministro húngaro, reconhece que sob Trump o mundo estava mais seguro.

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Pressionado por um dos moderadores da ABC News, David Muir, para responder se deseja a vitória da Ucrânia, Trump deixou claro que não: “Quero que essa guerra acabe imediatamente”, repetiu duas vezes. Ele reiterou que conseguirá acabar com a guerra, se eleito, antes mesmo de tomar posse, sem entrar em detalhes sobre sua “solução”. Ficou patente, no entanto, que sua visão é a mesma de aliados de Putin como Xi Jinping e Lula: que a Ucrânia deve ceder território em troca da “paz”.

Trump acusou Kamala de ser contra Israel, o que ela rejeitou com energia. Segundo a vice, o governo Biden trabalha 24 horas por dia para conseguir o fim da guerra na Faixa de Gaza e a libertação dos reféns israelenses. Casada com um judeu, o advogado Douglas Emhoff, Kamala enfatizou que o Hamas é uma “organização terrorista”, disse que sempre apoiou o direito de Israel de se defender, mas criticou a morte de palestinos inocentes e se colocou a favor da solução de dois Estados.

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Trump explorou ao longo do debate de 90 minutos três ideias-força: a de que o governo de Biden e Kamala permitiu a entrada de milhões de criminosos e terroristas pela fronteira com o México; que eles são contra o petróleo e que o mundo está rumando para uma 3.ª Guerra Mundial, por culpa dos democratas, que não saberiam defender os interesses americanos.

O foco nessas ideias pareceu desviá-lo da principal vulnerabilidade da gestão Biden-Harris: o alto preço dos alimentos, dos bens duráveis e da moradia. Ele mencionou o problema, mas não explicou como vai resolvê-lo e não investiu muito na empatia pelos americanos de classe média e baixa que sofrem com a carestia.

Harris aproveitou o ataque para falar de seu plano de oferecer US$ 6 mil em crédito tributário para as famílias no primeiro ano de vida de seus filhos, US$ 25 mil para a compra da primeira casa e US$ 60 mil para pequenos empresários. Mesmo com essas medidas que geram gastos públicos, foi Kamala quem acusou Trump de causar um rombo de US$ 5 trilhões se executar seu plano de cortes de impostos.

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Em contrapartida, Kamala explorou com sucesso o único dos três grandes temas da campanha eleitoral no qual Trump é vulnerável — o aborto, já que os outros dois, inflação e imigração, constituem linhas de ataque do candidato republicano. Ela disse que viaja o país todo e ouve histórias de mulheres que sofreram aborto espontâneo em estacionamentos de hospitais, porque em seus Estados os médicos estão proibidos de realizar o procedimento mesmo em caso de risco de morte para as mães e estupro.

Ela lembrou que Trump se orgulha de ter nomeado três juízes da Corte Suprema que, somados a outros três conservadores, derrubaram a jurisprudência que garantia o direito ao aborto desde os anos 70. Trump confirmou o seu orgulho, justificando que são os Estados que devem decidir sobre o tema, de acordo com as preferências de seus respectivos eleitores.

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Trump e Kamala se cumprimentam antes do debate na Filadélfia Foto: Saul Loeb/AFP

O ex-presidente partiu para o ataque afirmando que existem Estados governados por democratas nos quais é permitido o assassinato do bebê até depois de nascido. Esse foi um dos vários momentos em que os moderadores tiveram que intervir para explicar que o ex-presidente estava difundindo desinformação. Eles também tiveram de desmentir que imigrantes haitianos estariam capturando animais de estimação em Springfield, Ohio, para comer, e que a criminalidade teria aumentado nos Estados Unidos.

Os moderadores também pressionaram Trump sobre sua versão de que ele teria vencido a eleição de 2020. O ex-presidente reiterou que foi vítima de fraude. “Você foi demitido por 81 milhões de americanos”, disparou Kamala, em uma das frases mais marcantes do debate.

Para coroar uma noite que excedeu as expectativas de muitos, a vice-presidente recebeu publicamente o apoio da cantora Taylor Swift, que em um comunicado depois do debate pediu aos seus fãs que se registrem como eleitores e votem em Kamala. Nada mau para uma estreante.

Do ponto de vista da forma, no sentido mais estrito, foi um debate equilibrado, no nível de assertividade, foco e autocontrole dos dois candidatos. Já no que tange ao conteúdo, Kamala Harris conseguiu explorar um espectro maior de temas, ser mais propositiva e até colocar Donald Trump na defensiva.

Tudo isso é exatamente o contrário do que se poderia esperar. Em sua terceira campanha presidencial, Trump é um veterano nesse tipo de debate, enquanto para Kamala foi a primeira vez. Trump está em campanha para presidente desde 2015; Kamala, há 52 dias. E antes de se lançar à presidência, ele tinha um programa de TV.

Seu maior domínio do meio lhe permitiu falar 5 minutos a mais do que a adversária: embora as regras reservassem tempos iguais para ambos, Trump conseguiu prolongar suas falas reivindicando direito de resposta e seguindo adiante antes que os moderadores lhe concedessem mais tempo. Mesmo assim, ele não dominou o debate.

O candidato republicano, o ex-Presidente Donald Trump, e a democrata, a Vice-Presidente Kamala Harris, participam de debate presidencial da ABC News, na Filadélfia Foto: Alex Brandon/AP

No começo, a voz de Kamala transmitiu nervosismo, mas logo ela pareceu mais à vontade. A vice-presidente usou o seu treino como ex-promotora, procuradora geral da Califórnia e senadora para defender suas teses e contestar as de seu oponente como se estivesse em um tribunal. Ela usou várias vezes de sarcasmo — uma arma que Trump costuma dominar — e não saiu do sério diante das comparações ofensivas, por exemplo de que Kamala seria pior que seu “chefe”, Joe Biden.

A vice não se empenhou em defender o legado do atual governo: “Eu não sou Joe Biden”, repetiu. Mas conseguiu colocar Trump contra a parede, por exemplo enumerando os funcionários de alto escalão que participaram de seu governo e hoje o denunciam como alguém que não respeita a Constituição e age só pelo próprio interesse. “Eles escreveram livros contra mim porque eu os demiti. Ninguém faz isso com vocês porque vocês não demitem os maus funcionários”, rebateu Trump.

Ele respondeu de forma parecida à alegação da vice-presidente de que governantes do mundo inteiro o desprezam. Segundo Trump, alguns líderes europeus não gostam dele porque ele os obrigou a arcar com os custos de sua própria defesa, enquanto Biden gastou US$ 115 bilhões para proteger a Europa da Rússia. Mas lembrou que Viktor Orbán, o conservador primeiro-ministro húngaro, reconhece que sob Trump o mundo estava mais seguro.

Pressionado por um dos moderadores da ABC News, David Muir, para responder se deseja a vitória da Ucrânia, Trump deixou claro que não: “Quero que essa guerra acabe imediatamente”, repetiu duas vezes. Ele reiterou que conseguirá acabar com a guerra, se eleito, antes mesmo de tomar posse, sem entrar em detalhes sobre sua “solução”. Ficou patente, no entanto, que sua visão é a mesma de aliados de Putin como Xi Jinping e Lula: que a Ucrânia deve ceder território em troca da “paz”.

Trump acusou Kamala de ser contra Israel, o que ela rejeitou com energia. Segundo a vice, o governo Biden trabalha 24 horas por dia para conseguir o fim da guerra na Faixa de Gaza e a libertação dos reféns israelenses. Casada com um judeu, o advogado Douglas Emhoff, Kamala enfatizou que o Hamas é uma “organização terrorista”, disse que sempre apoiou o direito de Israel de se defender, mas criticou a morte de palestinos inocentes e se colocou a favor da solução de dois Estados.

Trump explorou ao longo do debate de 90 minutos três ideias-força: a de que o governo de Biden e Kamala permitiu a entrada de milhões de criminosos e terroristas pela fronteira com o México; que eles são contra o petróleo e que o mundo está rumando para uma 3.ª Guerra Mundial, por culpa dos democratas, que não saberiam defender os interesses americanos.

O foco nessas ideias pareceu desviá-lo da principal vulnerabilidade da gestão Biden-Harris: o alto preço dos alimentos, dos bens duráveis e da moradia. Ele mencionou o problema, mas não explicou como vai resolvê-lo e não investiu muito na empatia pelos americanos de classe média e baixa que sofrem com a carestia.

Harris aproveitou o ataque para falar de seu plano de oferecer US$ 6 mil em crédito tributário para as famílias no primeiro ano de vida de seus filhos, US$ 25 mil para a compra da primeira casa e US$ 60 mil para pequenos empresários. Mesmo com essas medidas que geram gastos públicos, foi Kamala quem acusou Trump de causar um rombo de US$ 5 trilhões se executar seu plano de cortes de impostos.

Em contrapartida, Kamala explorou com sucesso o único dos três grandes temas da campanha eleitoral no qual Trump é vulnerável — o aborto, já que os outros dois, inflação e imigração, constituem linhas de ataque do candidato republicano. Ela disse que viaja o país todo e ouve histórias de mulheres que sofreram aborto espontâneo em estacionamentos de hospitais, porque em seus Estados os médicos estão proibidos de realizar o procedimento mesmo em caso de risco de morte para as mães e estupro.

Ela lembrou que Trump se orgulha de ter nomeado três juízes da Corte Suprema que, somados a outros três conservadores, derrubaram a jurisprudência que garantia o direito ao aborto desde os anos 70. Trump confirmou o seu orgulho, justificando que são os Estados que devem decidir sobre o tema, de acordo com as preferências de seus respectivos eleitores.

Trump e Kamala se cumprimentam antes do debate na Filadélfia Foto: Saul Loeb/AFP

O ex-presidente partiu para o ataque afirmando que existem Estados governados por democratas nos quais é permitido o assassinato do bebê até depois de nascido. Esse foi um dos vários momentos em que os moderadores tiveram que intervir para explicar que o ex-presidente estava difundindo desinformação. Eles também tiveram de desmentir que imigrantes haitianos estariam capturando animais de estimação em Springfield, Ohio, para comer, e que a criminalidade teria aumentado nos Estados Unidos.

Os moderadores também pressionaram Trump sobre sua versão de que ele teria vencido a eleição de 2020. O ex-presidente reiterou que foi vítima de fraude. “Você foi demitido por 81 milhões de americanos”, disparou Kamala, em uma das frases mais marcantes do debate.

Para coroar uma noite que excedeu as expectativas de muitos, a vice-presidente recebeu publicamente o apoio da cantora Taylor Swift, que em um comunicado depois do debate pediu aos seus fãs que se registrem como eleitores e votem em Kamala. Nada mau para uma estreante.

Do ponto de vista da forma, no sentido mais estrito, foi um debate equilibrado, no nível de assertividade, foco e autocontrole dos dois candidatos. Já no que tange ao conteúdo, Kamala Harris conseguiu explorar um espectro maior de temas, ser mais propositiva e até colocar Donald Trump na defensiva.

Tudo isso é exatamente o contrário do que se poderia esperar. Em sua terceira campanha presidencial, Trump é um veterano nesse tipo de debate, enquanto para Kamala foi a primeira vez. Trump está em campanha para presidente desde 2015; Kamala, há 52 dias. E antes de se lançar à presidência, ele tinha um programa de TV.

Seu maior domínio do meio lhe permitiu falar 5 minutos a mais do que a adversária: embora as regras reservassem tempos iguais para ambos, Trump conseguiu prolongar suas falas reivindicando direito de resposta e seguindo adiante antes que os moderadores lhe concedessem mais tempo. Mesmo assim, ele não dominou o debate.

O candidato republicano, o ex-Presidente Donald Trump, e a democrata, a Vice-Presidente Kamala Harris, participam de debate presidencial da ABC News, na Filadélfia Foto: Alex Brandon/AP

No começo, a voz de Kamala transmitiu nervosismo, mas logo ela pareceu mais à vontade. A vice-presidente usou o seu treino como ex-promotora, procuradora geral da Califórnia e senadora para defender suas teses e contestar as de seu oponente como se estivesse em um tribunal. Ela usou várias vezes de sarcasmo — uma arma que Trump costuma dominar — e não saiu do sério diante das comparações ofensivas, por exemplo de que Kamala seria pior que seu “chefe”, Joe Biden.

A vice não se empenhou em defender o legado do atual governo: “Eu não sou Joe Biden”, repetiu. Mas conseguiu colocar Trump contra a parede, por exemplo enumerando os funcionários de alto escalão que participaram de seu governo e hoje o denunciam como alguém que não respeita a Constituição e age só pelo próprio interesse. “Eles escreveram livros contra mim porque eu os demiti. Ninguém faz isso com vocês porque vocês não demitem os maus funcionários”, rebateu Trump.

Ele respondeu de forma parecida à alegação da vice-presidente de que governantes do mundo inteiro o desprezam. Segundo Trump, alguns líderes europeus não gostam dele porque ele os obrigou a arcar com os custos de sua própria defesa, enquanto Biden gastou US$ 115 bilhões para proteger a Europa da Rússia. Mas lembrou que Viktor Orbán, o conservador primeiro-ministro húngaro, reconhece que sob Trump o mundo estava mais seguro.

Pressionado por um dos moderadores da ABC News, David Muir, para responder se deseja a vitória da Ucrânia, Trump deixou claro que não: “Quero que essa guerra acabe imediatamente”, repetiu duas vezes. Ele reiterou que conseguirá acabar com a guerra, se eleito, antes mesmo de tomar posse, sem entrar em detalhes sobre sua “solução”. Ficou patente, no entanto, que sua visão é a mesma de aliados de Putin como Xi Jinping e Lula: que a Ucrânia deve ceder território em troca da “paz”.

Trump acusou Kamala de ser contra Israel, o que ela rejeitou com energia. Segundo a vice, o governo Biden trabalha 24 horas por dia para conseguir o fim da guerra na Faixa de Gaza e a libertação dos reféns israelenses. Casada com um judeu, o advogado Douglas Emhoff, Kamala enfatizou que o Hamas é uma “organização terrorista”, disse que sempre apoiou o direito de Israel de se defender, mas criticou a morte de palestinos inocentes e se colocou a favor da solução de dois Estados.

Trump explorou ao longo do debate de 90 minutos três ideias-força: a de que o governo de Biden e Kamala permitiu a entrada de milhões de criminosos e terroristas pela fronteira com o México; que eles são contra o petróleo e que o mundo está rumando para uma 3.ª Guerra Mundial, por culpa dos democratas, que não saberiam defender os interesses americanos.

O foco nessas ideias pareceu desviá-lo da principal vulnerabilidade da gestão Biden-Harris: o alto preço dos alimentos, dos bens duráveis e da moradia. Ele mencionou o problema, mas não explicou como vai resolvê-lo e não investiu muito na empatia pelos americanos de classe média e baixa que sofrem com a carestia.

Harris aproveitou o ataque para falar de seu plano de oferecer US$ 6 mil em crédito tributário para as famílias no primeiro ano de vida de seus filhos, US$ 25 mil para a compra da primeira casa e US$ 60 mil para pequenos empresários. Mesmo com essas medidas que geram gastos públicos, foi Kamala quem acusou Trump de causar um rombo de US$ 5 trilhões se executar seu plano de cortes de impostos.

Em contrapartida, Kamala explorou com sucesso o único dos três grandes temas da campanha eleitoral no qual Trump é vulnerável — o aborto, já que os outros dois, inflação e imigração, constituem linhas de ataque do candidato republicano. Ela disse que viaja o país todo e ouve histórias de mulheres que sofreram aborto espontâneo em estacionamentos de hospitais, porque em seus Estados os médicos estão proibidos de realizar o procedimento mesmo em caso de risco de morte para as mães e estupro.

Ela lembrou que Trump se orgulha de ter nomeado três juízes da Corte Suprema que, somados a outros três conservadores, derrubaram a jurisprudência que garantia o direito ao aborto desde os anos 70. Trump confirmou o seu orgulho, justificando que são os Estados que devem decidir sobre o tema, de acordo com as preferências de seus respectivos eleitores.

Trump e Kamala se cumprimentam antes do debate na Filadélfia Foto: Saul Loeb/AFP

O ex-presidente partiu para o ataque afirmando que existem Estados governados por democratas nos quais é permitido o assassinato do bebê até depois de nascido. Esse foi um dos vários momentos em que os moderadores tiveram que intervir para explicar que o ex-presidente estava difundindo desinformação. Eles também tiveram de desmentir que imigrantes haitianos estariam capturando animais de estimação em Springfield, Ohio, para comer, e que a criminalidade teria aumentado nos Estados Unidos.

Os moderadores também pressionaram Trump sobre sua versão de que ele teria vencido a eleição de 2020. O ex-presidente reiterou que foi vítima de fraude. “Você foi demitido por 81 milhões de americanos”, disparou Kamala, em uma das frases mais marcantes do debate.

Para coroar uma noite que excedeu as expectativas de muitos, a vice-presidente recebeu publicamente o apoio da cantora Taylor Swift, que em um comunicado depois do debate pediu aos seus fãs que se registrem como eleitores e votem em Kamala. Nada mau para uma estreante.

Do ponto de vista da forma, no sentido mais estrito, foi um debate equilibrado, no nível de assertividade, foco e autocontrole dos dois candidatos. Já no que tange ao conteúdo, Kamala Harris conseguiu explorar um espectro maior de temas, ser mais propositiva e até colocar Donald Trump na defensiva.

Tudo isso é exatamente o contrário do que se poderia esperar. Em sua terceira campanha presidencial, Trump é um veterano nesse tipo de debate, enquanto para Kamala foi a primeira vez. Trump está em campanha para presidente desde 2015; Kamala, há 52 dias. E antes de se lançar à presidência, ele tinha um programa de TV.

Seu maior domínio do meio lhe permitiu falar 5 minutos a mais do que a adversária: embora as regras reservassem tempos iguais para ambos, Trump conseguiu prolongar suas falas reivindicando direito de resposta e seguindo adiante antes que os moderadores lhe concedessem mais tempo. Mesmo assim, ele não dominou o debate.

O candidato republicano, o ex-Presidente Donald Trump, e a democrata, a Vice-Presidente Kamala Harris, participam de debate presidencial da ABC News, na Filadélfia Foto: Alex Brandon/AP

No começo, a voz de Kamala transmitiu nervosismo, mas logo ela pareceu mais à vontade. A vice-presidente usou o seu treino como ex-promotora, procuradora geral da Califórnia e senadora para defender suas teses e contestar as de seu oponente como se estivesse em um tribunal. Ela usou várias vezes de sarcasmo — uma arma que Trump costuma dominar — e não saiu do sério diante das comparações ofensivas, por exemplo de que Kamala seria pior que seu “chefe”, Joe Biden.

A vice não se empenhou em defender o legado do atual governo: “Eu não sou Joe Biden”, repetiu. Mas conseguiu colocar Trump contra a parede, por exemplo enumerando os funcionários de alto escalão que participaram de seu governo e hoje o denunciam como alguém que não respeita a Constituição e age só pelo próprio interesse. “Eles escreveram livros contra mim porque eu os demiti. Ninguém faz isso com vocês porque vocês não demitem os maus funcionários”, rebateu Trump.

Ele respondeu de forma parecida à alegação da vice-presidente de que governantes do mundo inteiro o desprezam. Segundo Trump, alguns líderes europeus não gostam dele porque ele os obrigou a arcar com os custos de sua própria defesa, enquanto Biden gastou US$ 115 bilhões para proteger a Europa da Rússia. Mas lembrou que Viktor Orbán, o conservador primeiro-ministro húngaro, reconhece que sob Trump o mundo estava mais seguro.

Pressionado por um dos moderadores da ABC News, David Muir, para responder se deseja a vitória da Ucrânia, Trump deixou claro que não: “Quero que essa guerra acabe imediatamente”, repetiu duas vezes. Ele reiterou que conseguirá acabar com a guerra, se eleito, antes mesmo de tomar posse, sem entrar em detalhes sobre sua “solução”. Ficou patente, no entanto, que sua visão é a mesma de aliados de Putin como Xi Jinping e Lula: que a Ucrânia deve ceder território em troca da “paz”.

Trump acusou Kamala de ser contra Israel, o que ela rejeitou com energia. Segundo a vice, o governo Biden trabalha 24 horas por dia para conseguir o fim da guerra na Faixa de Gaza e a libertação dos reféns israelenses. Casada com um judeu, o advogado Douglas Emhoff, Kamala enfatizou que o Hamas é uma “organização terrorista”, disse que sempre apoiou o direito de Israel de se defender, mas criticou a morte de palestinos inocentes e se colocou a favor da solução de dois Estados.

Trump explorou ao longo do debate de 90 minutos três ideias-força: a de que o governo de Biden e Kamala permitiu a entrada de milhões de criminosos e terroristas pela fronteira com o México; que eles são contra o petróleo e que o mundo está rumando para uma 3.ª Guerra Mundial, por culpa dos democratas, que não saberiam defender os interesses americanos.

O foco nessas ideias pareceu desviá-lo da principal vulnerabilidade da gestão Biden-Harris: o alto preço dos alimentos, dos bens duráveis e da moradia. Ele mencionou o problema, mas não explicou como vai resolvê-lo e não investiu muito na empatia pelos americanos de classe média e baixa que sofrem com a carestia.

Harris aproveitou o ataque para falar de seu plano de oferecer US$ 6 mil em crédito tributário para as famílias no primeiro ano de vida de seus filhos, US$ 25 mil para a compra da primeira casa e US$ 60 mil para pequenos empresários. Mesmo com essas medidas que geram gastos públicos, foi Kamala quem acusou Trump de causar um rombo de US$ 5 trilhões se executar seu plano de cortes de impostos.

Em contrapartida, Kamala explorou com sucesso o único dos três grandes temas da campanha eleitoral no qual Trump é vulnerável — o aborto, já que os outros dois, inflação e imigração, constituem linhas de ataque do candidato republicano. Ela disse que viaja o país todo e ouve histórias de mulheres que sofreram aborto espontâneo em estacionamentos de hospitais, porque em seus Estados os médicos estão proibidos de realizar o procedimento mesmo em caso de risco de morte para as mães e estupro.

Ela lembrou que Trump se orgulha de ter nomeado três juízes da Corte Suprema que, somados a outros três conservadores, derrubaram a jurisprudência que garantia o direito ao aborto desde os anos 70. Trump confirmou o seu orgulho, justificando que são os Estados que devem decidir sobre o tema, de acordo com as preferências de seus respectivos eleitores.

Trump e Kamala se cumprimentam antes do debate na Filadélfia Foto: Saul Loeb/AFP

O ex-presidente partiu para o ataque afirmando que existem Estados governados por democratas nos quais é permitido o assassinato do bebê até depois de nascido. Esse foi um dos vários momentos em que os moderadores tiveram que intervir para explicar que o ex-presidente estava difundindo desinformação. Eles também tiveram de desmentir que imigrantes haitianos estariam capturando animais de estimação em Springfield, Ohio, para comer, e que a criminalidade teria aumentado nos Estados Unidos.

Os moderadores também pressionaram Trump sobre sua versão de que ele teria vencido a eleição de 2020. O ex-presidente reiterou que foi vítima de fraude. “Você foi demitido por 81 milhões de americanos”, disparou Kamala, em uma das frases mais marcantes do debate.

Para coroar uma noite que excedeu as expectativas de muitos, a vice-presidente recebeu publicamente o apoio da cantora Taylor Swift, que em um comunicado depois do debate pediu aos seus fãs que se registrem como eleitores e votem em Kamala. Nada mau para uma estreante.

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