É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|Na Venezuela, ditadura de Maduro prepara uma farsa eleitoral


Regime tenta dar ar de legitimidade ao precário processo eleitoral do país

Por Lourival Sant'Anna

O regime venezuelano prepara mais uma farsa eleitoral. E o governo Lula participa alegremente dela. Até aí, nenhuma novidade. Dessa vez, porém, a manobra vem acompanhada da ameaça de invasão de outro vizinho do Brasil, a Guiana. Um aliado comum de Nicolás Maduro e de Lula, o ditador russo Vladimir Putin, tem interesse nessa guerra. Lula trocou o apoio incondicional à ditadura venezuelana pelo adiamento do conflito. É um arranjo precário.

Os partidos de oposição venezuelanos se uniram no ano passado para eleger candidato único contra Maduro. A chamada Plataforma Unitária Democrática pediu para o Conselho Nacional Eleitoral supervisionar o pleito. Para negar legitimidade ao processo, os conselheiros obedientes ao regime, que eram a maioria, renunciaram. Um novo Conselho, exclusivamente chavista, foi nomeado, e o órgão público se recusou a cumprir a função constitucional de fiscalizar a votação.

Maduro tenta dar ar de legitimidade ao próximo pleito da Venezuela Foto: Ariana Cubillos/AP
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Apesar das ameaças de represália do regime, 2,4 milhões de corajosos venezuelanos participaram, e 92% votaram na ex-deputada María Corina Machado, incontestável líder da oposição. Em 2015, Machado foi tornada inelegível pela Justiça venezuelana, controlada pelo regime, por supostas irregularidades em sua prestação de contas como deputada. Isso, num país em que centenas de milhões de dólares são desviados por integrantes do regime.

O Tribunal Supremo de Justiça, 100% composto por chavistas, confirmou em janeiro a inelegibilidade de Machado, até 2036.Machado é a terceira líder de oposição competitiva excluída de disputas eleitorais com Maduro, no rastro de Henrique Capriles e Leopoldo López, presos por crimes sem provas. Segundo organismos independentes de defesa dos direitos humanos, 1.400 venezuelanos perderam direitos políticos desde 2002. Há atualmente 288 presos políticos.

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A manobra viola o Acordo de Barbados, firmado cinco dias antes das primárias da oposição. O governo venezuelano se comprometeu a realizar eleições livres e justas, sem a exclusão de oposicionistas. O acordo levou os EUA a suspender as sanções contra a Venezuela, que pode ter vendido em torno de US$ 1 bilhão em petróleo, antes de a Casa Branca concluir que foi enganada.

O acordo incluiu também a libertação do colombiano Alex Saab, preso na Flórida sob acusação de desvio de US$ 350 milhões dos cofres venezuelanos. Segundo o FBI, parte desse dinheiro é destinada a Maduro, do qual Saab é considerado testa-de-ferro. A trama envolve lavagem de dinheiro do narcotráfico.

A exclusão da oposição leva há uma década a população a boicotar maciçamente as eleições promovidas pelo regime. Para fazer frente a esses boicotes, que retiram a aparência de legitimidade dos pleitos, o regime toma uma série de providências. Ao chegar às seções eleitorais, os venezuelanos passam seu “cartão da pátria” em máquinas estrategicamente instaladas ao lado dos equipamentos de identificação dos eleitores. O registro do comparecimento garante a entrega mensal da cesta básica pelo governo, da qual muitos venezuelanos dependem para sobreviver: 90% estão abaixo da linha de pobreza e 68%, na extrema pobreza.

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Funcionários públicos são obrigados a votar. Militantes chavistas remunerados pelo governo nos bairros pobres exercem pressão para os moradores comparecerem. Nada disso é suficiente. Eu cobri as eleições para a Assembleia Constituinte de 2017, boicotadas pela oposição. As seções eleitorais permaneceram semidesertas o dia todo, enquanto dezenas de milhares de corajosos venezuelanos se manifestavam contra o regime, sob forte repressão. Mesmo assim, o CNE anunciou comparecimento de 41%.

A propósito, enquanto Lula se reunia com Maduro, há uma semana, em San Vicente e Granadina, durante a cúpula da Celac, o Tribunal Penal Internacional rejeitava em Haia apelação do regime chavista e levava adiante a investigação da morte de 125 manifestantes durante as eleições da Assembleia Constituinte. Eu presenciei algumas dessas mortes a tiros, disparados contra a multidão.

Lula tem longa história de interferência nos assuntos venezuelanos, ao lado do autoritarismo e da corrupção do regime chavista. Em novembro de 2006, Lula aproveitou a inauguração de uma ponte sobre o Rio Orinoco construída pela Odebrecht com dinheiro do BNDES para pedir votos para Hugo Chávez, três semanas antes de mais uma de suas múltiplas reeleições.

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Em abril de 2013, logo depois da morte de Chávez, Lula gravou um vídeo para pedir voto para Maduro: “Sempre foi visível sua profunda afinidade com nosso querido e saudoso amigo Hugo Chávez. Os dois compartilhavam as mesmas ideias sobre o destino do nosso continente e os grandes problemas mundiais. Mais do que isso, Chávez e Maduro tinham as mesmas concepções em relação aos desafios que a Venezuela tinha pela frente: em defesa dos mais pobres”.

Por isso, a oposição e a maioria da população da Venezuela não confiam em Lula e ele não tem credenciais para intermediar uma distensão no país. Isso fica provado mais uma vez agora. Depois que Maduro marcou a eleição para 28 de julho, aniversário de Chávez, o presidente brasileiro afirmou que “não se pode colocar dúvidas antes de as eleições acontecerem”, em nome da “presunção de inocência”.

Assessores do presidente têm dito que não gostam de Machado, porque ela fala em punir os crimes do regime, e aprovam os nomes do governador de Zulia, Manuel Rosales, e de Gerardo Blyde, coordenador da Plataforma Unitária Democrática. Lula disse em fevereiro que não tem informações sobre o que acontece na Venezuela, quando indagado sobre a expulsão de funcionários do escritório de Direitos Humanos da ONU no país.

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Só isso explicaria as maquinações de seus assessores. Além do óbvio absurdo de um governo querer triar candidatos à presidência de outro país, Rosales é popular em Zulia mas não tem projeção nacional, enquanto Blyde é leal ao processo das primárias e não se candidataria no lugar de Machado, analisa Omar Lugo, editor do site independente de notícias El Estímulo, de Caracas.

Na antevéspera do Dia Internacional da Mulher, Lula sugeriu que a líder da oposição não deveria ficar “chorando” e sim escolher um substituto, como ele fez quando estava condenado e preso por corrupção, em 2018. O presidente parece não saber também o que está acontecendo no Brasil, um Estado democrático de direito que não pode ser comparado à ditadura venezuelana. Sem contar o conteúdo grosseiro, misógino e injusto do ataque: se tem uma coisa que não falta a Machado é coragem, ao percorrer o país em campanha, enfrentando um regime sanguinário.

Depois de duas décadas de abusos contra os direitos humanos na Venezuela e de arbitrariedades para manter os chavistas no poder, a única inocência dos envolvidos é a do próprio Lula. Se é que ele acredita no que diz. O mais provável é que Lula tenha penhorado seu apoio a Maduro em troca de o ditador recuar de sua decisão de invadir a Guiana para tomar a região de Essequibo, rica em petróleo e outros minérios.

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A aventura não faria grande sentido econômico: a Venezuela tem as maiores reservas de petróleo do mundo. O que lhe falta é competência para explorá-lo. Em razão do sucatamento da estatal PDVSA, antes uma respeitada petroleira, a exploração despencou de 3 milhões de barris diários em 2002 para 800 mil.

O sentido da ameaça é político: o velho expediente, aliás usado por Putin, de criar um inimigo comum para justificar a perpetuação no poder, como único “protetor da nação”. E geopolítico: servir ao interesse russo de criar uma distração para os Estados Unidos na América Latina. A guerra de Gaza, provocada por outro aliado da Rússia, o Irã, patrocinador do Hamas, divide as energias dos Estados Unidos e enfraquece seu apoio à Ucrânia. Numa escala menor, o apoio americano à Guiana teria o mesmo efeito.

Dois dias antes de os russos invadirem a Ucrânia, em fevereiro de 2022, Maduro declarou: “A Venezuela está com Putin, está com a Rússia, está com as causas valentes e justas do mundo”. Cinco dias depois da invasão, o ditador venezuelano ligou para o russo. “Nicolás Maduro expressou seu forte apoio às ações-chave da Rússia, condenando a atividade desestabilizadora dos Estados Unidos e da Otan e enfatizando a importância de combater a campanha de mentiras e desinformação lançada pelos países ocidentais”, relatou o Kremlin.

Lula também culpa os EUA e a Europa pelo fato de a Rússia ter invadido a Ucrânia.

Chávez já havia apoiado a invasão da Geórgia pela Rússia em 2008. Assim, a anexação do Essequibo pareceria algo legítimo dentro do repertório moral do chavismo. Na época, a Venezuela ainda conseguia produzir petróleo em grande quantidade, e usava o dinheiro para comprar armas russas, como sofisticados caças Sukhoi-30, baterias antiaéreas S-300, tanques, navios, artilharia e fuzis kalashnikov.

Essa tensão interessa às ditaduras venezuelana e russa, e não ao Brasil, que tem 2.199 km de fronteira com a Venezuela e 1.605 km com a Guiana, no delicado território amazônico. Além disso, ao menos 262 mil imigrantes e refugiados da Venezuela vivem no Brasil, por causa do flagelo no país vizinho. Portanto, enquanto subsistir o regime chavista, o Brasil não estará seguro.

O regime venezuelano prepara mais uma farsa eleitoral. E o governo Lula participa alegremente dela. Até aí, nenhuma novidade. Dessa vez, porém, a manobra vem acompanhada da ameaça de invasão de outro vizinho do Brasil, a Guiana. Um aliado comum de Nicolás Maduro e de Lula, o ditador russo Vladimir Putin, tem interesse nessa guerra. Lula trocou o apoio incondicional à ditadura venezuelana pelo adiamento do conflito. É um arranjo precário.

Os partidos de oposição venezuelanos se uniram no ano passado para eleger candidato único contra Maduro. A chamada Plataforma Unitária Democrática pediu para o Conselho Nacional Eleitoral supervisionar o pleito. Para negar legitimidade ao processo, os conselheiros obedientes ao regime, que eram a maioria, renunciaram. Um novo Conselho, exclusivamente chavista, foi nomeado, e o órgão público se recusou a cumprir a função constitucional de fiscalizar a votação.

Maduro tenta dar ar de legitimidade ao próximo pleito da Venezuela Foto: Ariana Cubillos/AP

Apesar das ameaças de represália do regime, 2,4 milhões de corajosos venezuelanos participaram, e 92% votaram na ex-deputada María Corina Machado, incontestável líder da oposição. Em 2015, Machado foi tornada inelegível pela Justiça venezuelana, controlada pelo regime, por supostas irregularidades em sua prestação de contas como deputada. Isso, num país em que centenas de milhões de dólares são desviados por integrantes do regime.

O Tribunal Supremo de Justiça, 100% composto por chavistas, confirmou em janeiro a inelegibilidade de Machado, até 2036.Machado é a terceira líder de oposição competitiva excluída de disputas eleitorais com Maduro, no rastro de Henrique Capriles e Leopoldo López, presos por crimes sem provas. Segundo organismos independentes de defesa dos direitos humanos, 1.400 venezuelanos perderam direitos políticos desde 2002. Há atualmente 288 presos políticos.

A manobra viola o Acordo de Barbados, firmado cinco dias antes das primárias da oposição. O governo venezuelano se comprometeu a realizar eleições livres e justas, sem a exclusão de oposicionistas. O acordo levou os EUA a suspender as sanções contra a Venezuela, que pode ter vendido em torno de US$ 1 bilhão em petróleo, antes de a Casa Branca concluir que foi enganada.

O acordo incluiu também a libertação do colombiano Alex Saab, preso na Flórida sob acusação de desvio de US$ 350 milhões dos cofres venezuelanos. Segundo o FBI, parte desse dinheiro é destinada a Maduro, do qual Saab é considerado testa-de-ferro. A trama envolve lavagem de dinheiro do narcotráfico.

A exclusão da oposição leva há uma década a população a boicotar maciçamente as eleições promovidas pelo regime. Para fazer frente a esses boicotes, que retiram a aparência de legitimidade dos pleitos, o regime toma uma série de providências. Ao chegar às seções eleitorais, os venezuelanos passam seu “cartão da pátria” em máquinas estrategicamente instaladas ao lado dos equipamentos de identificação dos eleitores. O registro do comparecimento garante a entrega mensal da cesta básica pelo governo, da qual muitos venezuelanos dependem para sobreviver: 90% estão abaixo da linha de pobreza e 68%, na extrema pobreza.

Funcionários públicos são obrigados a votar. Militantes chavistas remunerados pelo governo nos bairros pobres exercem pressão para os moradores comparecerem. Nada disso é suficiente. Eu cobri as eleições para a Assembleia Constituinte de 2017, boicotadas pela oposição. As seções eleitorais permaneceram semidesertas o dia todo, enquanto dezenas de milhares de corajosos venezuelanos se manifestavam contra o regime, sob forte repressão. Mesmo assim, o CNE anunciou comparecimento de 41%.

A propósito, enquanto Lula se reunia com Maduro, há uma semana, em San Vicente e Granadina, durante a cúpula da Celac, o Tribunal Penal Internacional rejeitava em Haia apelação do regime chavista e levava adiante a investigação da morte de 125 manifestantes durante as eleições da Assembleia Constituinte. Eu presenciei algumas dessas mortes a tiros, disparados contra a multidão.

Lula tem longa história de interferência nos assuntos venezuelanos, ao lado do autoritarismo e da corrupção do regime chavista. Em novembro de 2006, Lula aproveitou a inauguração de uma ponte sobre o Rio Orinoco construída pela Odebrecht com dinheiro do BNDES para pedir votos para Hugo Chávez, três semanas antes de mais uma de suas múltiplas reeleições.

Em abril de 2013, logo depois da morte de Chávez, Lula gravou um vídeo para pedir voto para Maduro: “Sempre foi visível sua profunda afinidade com nosso querido e saudoso amigo Hugo Chávez. Os dois compartilhavam as mesmas ideias sobre o destino do nosso continente e os grandes problemas mundiais. Mais do que isso, Chávez e Maduro tinham as mesmas concepções em relação aos desafios que a Venezuela tinha pela frente: em defesa dos mais pobres”.

Por isso, a oposição e a maioria da população da Venezuela não confiam em Lula e ele não tem credenciais para intermediar uma distensão no país. Isso fica provado mais uma vez agora. Depois que Maduro marcou a eleição para 28 de julho, aniversário de Chávez, o presidente brasileiro afirmou que “não se pode colocar dúvidas antes de as eleições acontecerem”, em nome da “presunção de inocência”.

Assessores do presidente têm dito que não gostam de Machado, porque ela fala em punir os crimes do regime, e aprovam os nomes do governador de Zulia, Manuel Rosales, e de Gerardo Blyde, coordenador da Plataforma Unitária Democrática. Lula disse em fevereiro que não tem informações sobre o que acontece na Venezuela, quando indagado sobre a expulsão de funcionários do escritório de Direitos Humanos da ONU no país.

Só isso explicaria as maquinações de seus assessores. Além do óbvio absurdo de um governo querer triar candidatos à presidência de outro país, Rosales é popular em Zulia mas não tem projeção nacional, enquanto Blyde é leal ao processo das primárias e não se candidataria no lugar de Machado, analisa Omar Lugo, editor do site independente de notícias El Estímulo, de Caracas.

Na antevéspera do Dia Internacional da Mulher, Lula sugeriu que a líder da oposição não deveria ficar “chorando” e sim escolher um substituto, como ele fez quando estava condenado e preso por corrupção, em 2018. O presidente parece não saber também o que está acontecendo no Brasil, um Estado democrático de direito que não pode ser comparado à ditadura venezuelana. Sem contar o conteúdo grosseiro, misógino e injusto do ataque: se tem uma coisa que não falta a Machado é coragem, ao percorrer o país em campanha, enfrentando um regime sanguinário.

Depois de duas décadas de abusos contra os direitos humanos na Venezuela e de arbitrariedades para manter os chavistas no poder, a única inocência dos envolvidos é a do próprio Lula. Se é que ele acredita no que diz. O mais provável é que Lula tenha penhorado seu apoio a Maduro em troca de o ditador recuar de sua decisão de invadir a Guiana para tomar a região de Essequibo, rica em petróleo e outros minérios.

A aventura não faria grande sentido econômico: a Venezuela tem as maiores reservas de petróleo do mundo. O que lhe falta é competência para explorá-lo. Em razão do sucatamento da estatal PDVSA, antes uma respeitada petroleira, a exploração despencou de 3 milhões de barris diários em 2002 para 800 mil.

O sentido da ameaça é político: o velho expediente, aliás usado por Putin, de criar um inimigo comum para justificar a perpetuação no poder, como único “protetor da nação”. E geopolítico: servir ao interesse russo de criar uma distração para os Estados Unidos na América Latina. A guerra de Gaza, provocada por outro aliado da Rússia, o Irã, patrocinador do Hamas, divide as energias dos Estados Unidos e enfraquece seu apoio à Ucrânia. Numa escala menor, o apoio americano à Guiana teria o mesmo efeito.

Dois dias antes de os russos invadirem a Ucrânia, em fevereiro de 2022, Maduro declarou: “A Venezuela está com Putin, está com a Rússia, está com as causas valentes e justas do mundo”. Cinco dias depois da invasão, o ditador venezuelano ligou para o russo. “Nicolás Maduro expressou seu forte apoio às ações-chave da Rússia, condenando a atividade desestabilizadora dos Estados Unidos e da Otan e enfatizando a importância de combater a campanha de mentiras e desinformação lançada pelos países ocidentais”, relatou o Kremlin.

Lula também culpa os EUA e a Europa pelo fato de a Rússia ter invadido a Ucrânia.

Chávez já havia apoiado a invasão da Geórgia pela Rússia em 2008. Assim, a anexação do Essequibo pareceria algo legítimo dentro do repertório moral do chavismo. Na época, a Venezuela ainda conseguia produzir petróleo em grande quantidade, e usava o dinheiro para comprar armas russas, como sofisticados caças Sukhoi-30, baterias antiaéreas S-300, tanques, navios, artilharia e fuzis kalashnikov.

Essa tensão interessa às ditaduras venezuelana e russa, e não ao Brasil, que tem 2.199 km de fronteira com a Venezuela e 1.605 km com a Guiana, no delicado território amazônico. Além disso, ao menos 262 mil imigrantes e refugiados da Venezuela vivem no Brasil, por causa do flagelo no país vizinho. Portanto, enquanto subsistir o regime chavista, o Brasil não estará seguro.

O regime venezuelano prepara mais uma farsa eleitoral. E o governo Lula participa alegremente dela. Até aí, nenhuma novidade. Dessa vez, porém, a manobra vem acompanhada da ameaça de invasão de outro vizinho do Brasil, a Guiana. Um aliado comum de Nicolás Maduro e de Lula, o ditador russo Vladimir Putin, tem interesse nessa guerra. Lula trocou o apoio incondicional à ditadura venezuelana pelo adiamento do conflito. É um arranjo precário.

Os partidos de oposição venezuelanos se uniram no ano passado para eleger candidato único contra Maduro. A chamada Plataforma Unitária Democrática pediu para o Conselho Nacional Eleitoral supervisionar o pleito. Para negar legitimidade ao processo, os conselheiros obedientes ao regime, que eram a maioria, renunciaram. Um novo Conselho, exclusivamente chavista, foi nomeado, e o órgão público se recusou a cumprir a função constitucional de fiscalizar a votação.

Maduro tenta dar ar de legitimidade ao próximo pleito da Venezuela Foto: Ariana Cubillos/AP

Apesar das ameaças de represália do regime, 2,4 milhões de corajosos venezuelanos participaram, e 92% votaram na ex-deputada María Corina Machado, incontestável líder da oposição. Em 2015, Machado foi tornada inelegível pela Justiça venezuelana, controlada pelo regime, por supostas irregularidades em sua prestação de contas como deputada. Isso, num país em que centenas de milhões de dólares são desviados por integrantes do regime.

O Tribunal Supremo de Justiça, 100% composto por chavistas, confirmou em janeiro a inelegibilidade de Machado, até 2036.Machado é a terceira líder de oposição competitiva excluída de disputas eleitorais com Maduro, no rastro de Henrique Capriles e Leopoldo López, presos por crimes sem provas. Segundo organismos independentes de defesa dos direitos humanos, 1.400 venezuelanos perderam direitos políticos desde 2002. Há atualmente 288 presos políticos.

A manobra viola o Acordo de Barbados, firmado cinco dias antes das primárias da oposição. O governo venezuelano se comprometeu a realizar eleições livres e justas, sem a exclusão de oposicionistas. O acordo levou os EUA a suspender as sanções contra a Venezuela, que pode ter vendido em torno de US$ 1 bilhão em petróleo, antes de a Casa Branca concluir que foi enganada.

O acordo incluiu também a libertação do colombiano Alex Saab, preso na Flórida sob acusação de desvio de US$ 350 milhões dos cofres venezuelanos. Segundo o FBI, parte desse dinheiro é destinada a Maduro, do qual Saab é considerado testa-de-ferro. A trama envolve lavagem de dinheiro do narcotráfico.

A exclusão da oposição leva há uma década a população a boicotar maciçamente as eleições promovidas pelo regime. Para fazer frente a esses boicotes, que retiram a aparência de legitimidade dos pleitos, o regime toma uma série de providências. Ao chegar às seções eleitorais, os venezuelanos passam seu “cartão da pátria” em máquinas estrategicamente instaladas ao lado dos equipamentos de identificação dos eleitores. O registro do comparecimento garante a entrega mensal da cesta básica pelo governo, da qual muitos venezuelanos dependem para sobreviver: 90% estão abaixo da linha de pobreza e 68%, na extrema pobreza.

Funcionários públicos são obrigados a votar. Militantes chavistas remunerados pelo governo nos bairros pobres exercem pressão para os moradores comparecerem. Nada disso é suficiente. Eu cobri as eleições para a Assembleia Constituinte de 2017, boicotadas pela oposição. As seções eleitorais permaneceram semidesertas o dia todo, enquanto dezenas de milhares de corajosos venezuelanos se manifestavam contra o regime, sob forte repressão. Mesmo assim, o CNE anunciou comparecimento de 41%.

A propósito, enquanto Lula se reunia com Maduro, há uma semana, em San Vicente e Granadina, durante a cúpula da Celac, o Tribunal Penal Internacional rejeitava em Haia apelação do regime chavista e levava adiante a investigação da morte de 125 manifestantes durante as eleições da Assembleia Constituinte. Eu presenciei algumas dessas mortes a tiros, disparados contra a multidão.

Lula tem longa história de interferência nos assuntos venezuelanos, ao lado do autoritarismo e da corrupção do regime chavista. Em novembro de 2006, Lula aproveitou a inauguração de uma ponte sobre o Rio Orinoco construída pela Odebrecht com dinheiro do BNDES para pedir votos para Hugo Chávez, três semanas antes de mais uma de suas múltiplas reeleições.

Em abril de 2013, logo depois da morte de Chávez, Lula gravou um vídeo para pedir voto para Maduro: “Sempre foi visível sua profunda afinidade com nosso querido e saudoso amigo Hugo Chávez. Os dois compartilhavam as mesmas ideias sobre o destino do nosso continente e os grandes problemas mundiais. Mais do que isso, Chávez e Maduro tinham as mesmas concepções em relação aos desafios que a Venezuela tinha pela frente: em defesa dos mais pobres”.

Por isso, a oposição e a maioria da população da Venezuela não confiam em Lula e ele não tem credenciais para intermediar uma distensão no país. Isso fica provado mais uma vez agora. Depois que Maduro marcou a eleição para 28 de julho, aniversário de Chávez, o presidente brasileiro afirmou que “não se pode colocar dúvidas antes de as eleições acontecerem”, em nome da “presunção de inocência”.

Assessores do presidente têm dito que não gostam de Machado, porque ela fala em punir os crimes do regime, e aprovam os nomes do governador de Zulia, Manuel Rosales, e de Gerardo Blyde, coordenador da Plataforma Unitária Democrática. Lula disse em fevereiro que não tem informações sobre o que acontece na Venezuela, quando indagado sobre a expulsão de funcionários do escritório de Direitos Humanos da ONU no país.

Só isso explicaria as maquinações de seus assessores. Além do óbvio absurdo de um governo querer triar candidatos à presidência de outro país, Rosales é popular em Zulia mas não tem projeção nacional, enquanto Blyde é leal ao processo das primárias e não se candidataria no lugar de Machado, analisa Omar Lugo, editor do site independente de notícias El Estímulo, de Caracas.

Na antevéspera do Dia Internacional da Mulher, Lula sugeriu que a líder da oposição não deveria ficar “chorando” e sim escolher um substituto, como ele fez quando estava condenado e preso por corrupção, em 2018. O presidente parece não saber também o que está acontecendo no Brasil, um Estado democrático de direito que não pode ser comparado à ditadura venezuelana. Sem contar o conteúdo grosseiro, misógino e injusto do ataque: se tem uma coisa que não falta a Machado é coragem, ao percorrer o país em campanha, enfrentando um regime sanguinário.

Depois de duas décadas de abusos contra os direitos humanos na Venezuela e de arbitrariedades para manter os chavistas no poder, a única inocência dos envolvidos é a do próprio Lula. Se é que ele acredita no que diz. O mais provável é que Lula tenha penhorado seu apoio a Maduro em troca de o ditador recuar de sua decisão de invadir a Guiana para tomar a região de Essequibo, rica em petróleo e outros minérios.

A aventura não faria grande sentido econômico: a Venezuela tem as maiores reservas de petróleo do mundo. O que lhe falta é competência para explorá-lo. Em razão do sucatamento da estatal PDVSA, antes uma respeitada petroleira, a exploração despencou de 3 milhões de barris diários em 2002 para 800 mil.

O sentido da ameaça é político: o velho expediente, aliás usado por Putin, de criar um inimigo comum para justificar a perpetuação no poder, como único “protetor da nação”. E geopolítico: servir ao interesse russo de criar uma distração para os Estados Unidos na América Latina. A guerra de Gaza, provocada por outro aliado da Rússia, o Irã, patrocinador do Hamas, divide as energias dos Estados Unidos e enfraquece seu apoio à Ucrânia. Numa escala menor, o apoio americano à Guiana teria o mesmo efeito.

Dois dias antes de os russos invadirem a Ucrânia, em fevereiro de 2022, Maduro declarou: “A Venezuela está com Putin, está com a Rússia, está com as causas valentes e justas do mundo”. Cinco dias depois da invasão, o ditador venezuelano ligou para o russo. “Nicolás Maduro expressou seu forte apoio às ações-chave da Rússia, condenando a atividade desestabilizadora dos Estados Unidos e da Otan e enfatizando a importância de combater a campanha de mentiras e desinformação lançada pelos países ocidentais”, relatou o Kremlin.

Lula também culpa os EUA e a Europa pelo fato de a Rússia ter invadido a Ucrânia.

Chávez já havia apoiado a invasão da Geórgia pela Rússia em 2008. Assim, a anexação do Essequibo pareceria algo legítimo dentro do repertório moral do chavismo. Na época, a Venezuela ainda conseguia produzir petróleo em grande quantidade, e usava o dinheiro para comprar armas russas, como sofisticados caças Sukhoi-30, baterias antiaéreas S-300, tanques, navios, artilharia e fuzis kalashnikov.

Essa tensão interessa às ditaduras venezuelana e russa, e não ao Brasil, que tem 2.199 km de fronteira com a Venezuela e 1.605 km com a Guiana, no delicado território amazônico. Além disso, ao menos 262 mil imigrantes e refugiados da Venezuela vivem no Brasil, por causa do flagelo no país vizinho. Portanto, enquanto subsistir o regime chavista, o Brasil não estará seguro.

O regime venezuelano prepara mais uma farsa eleitoral. E o governo Lula participa alegremente dela. Até aí, nenhuma novidade. Dessa vez, porém, a manobra vem acompanhada da ameaça de invasão de outro vizinho do Brasil, a Guiana. Um aliado comum de Nicolás Maduro e de Lula, o ditador russo Vladimir Putin, tem interesse nessa guerra. Lula trocou o apoio incondicional à ditadura venezuelana pelo adiamento do conflito. É um arranjo precário.

Os partidos de oposição venezuelanos se uniram no ano passado para eleger candidato único contra Maduro. A chamada Plataforma Unitária Democrática pediu para o Conselho Nacional Eleitoral supervisionar o pleito. Para negar legitimidade ao processo, os conselheiros obedientes ao regime, que eram a maioria, renunciaram. Um novo Conselho, exclusivamente chavista, foi nomeado, e o órgão público se recusou a cumprir a função constitucional de fiscalizar a votação.

Maduro tenta dar ar de legitimidade ao próximo pleito da Venezuela Foto: Ariana Cubillos/AP

Apesar das ameaças de represália do regime, 2,4 milhões de corajosos venezuelanos participaram, e 92% votaram na ex-deputada María Corina Machado, incontestável líder da oposição. Em 2015, Machado foi tornada inelegível pela Justiça venezuelana, controlada pelo regime, por supostas irregularidades em sua prestação de contas como deputada. Isso, num país em que centenas de milhões de dólares são desviados por integrantes do regime.

O Tribunal Supremo de Justiça, 100% composto por chavistas, confirmou em janeiro a inelegibilidade de Machado, até 2036.Machado é a terceira líder de oposição competitiva excluída de disputas eleitorais com Maduro, no rastro de Henrique Capriles e Leopoldo López, presos por crimes sem provas. Segundo organismos independentes de defesa dos direitos humanos, 1.400 venezuelanos perderam direitos políticos desde 2002. Há atualmente 288 presos políticos.

A manobra viola o Acordo de Barbados, firmado cinco dias antes das primárias da oposição. O governo venezuelano se comprometeu a realizar eleições livres e justas, sem a exclusão de oposicionistas. O acordo levou os EUA a suspender as sanções contra a Venezuela, que pode ter vendido em torno de US$ 1 bilhão em petróleo, antes de a Casa Branca concluir que foi enganada.

O acordo incluiu também a libertação do colombiano Alex Saab, preso na Flórida sob acusação de desvio de US$ 350 milhões dos cofres venezuelanos. Segundo o FBI, parte desse dinheiro é destinada a Maduro, do qual Saab é considerado testa-de-ferro. A trama envolve lavagem de dinheiro do narcotráfico.

A exclusão da oposição leva há uma década a população a boicotar maciçamente as eleições promovidas pelo regime. Para fazer frente a esses boicotes, que retiram a aparência de legitimidade dos pleitos, o regime toma uma série de providências. Ao chegar às seções eleitorais, os venezuelanos passam seu “cartão da pátria” em máquinas estrategicamente instaladas ao lado dos equipamentos de identificação dos eleitores. O registro do comparecimento garante a entrega mensal da cesta básica pelo governo, da qual muitos venezuelanos dependem para sobreviver: 90% estão abaixo da linha de pobreza e 68%, na extrema pobreza.

Funcionários públicos são obrigados a votar. Militantes chavistas remunerados pelo governo nos bairros pobres exercem pressão para os moradores comparecerem. Nada disso é suficiente. Eu cobri as eleições para a Assembleia Constituinte de 2017, boicotadas pela oposição. As seções eleitorais permaneceram semidesertas o dia todo, enquanto dezenas de milhares de corajosos venezuelanos se manifestavam contra o regime, sob forte repressão. Mesmo assim, o CNE anunciou comparecimento de 41%.

A propósito, enquanto Lula se reunia com Maduro, há uma semana, em San Vicente e Granadina, durante a cúpula da Celac, o Tribunal Penal Internacional rejeitava em Haia apelação do regime chavista e levava adiante a investigação da morte de 125 manifestantes durante as eleições da Assembleia Constituinte. Eu presenciei algumas dessas mortes a tiros, disparados contra a multidão.

Lula tem longa história de interferência nos assuntos venezuelanos, ao lado do autoritarismo e da corrupção do regime chavista. Em novembro de 2006, Lula aproveitou a inauguração de uma ponte sobre o Rio Orinoco construída pela Odebrecht com dinheiro do BNDES para pedir votos para Hugo Chávez, três semanas antes de mais uma de suas múltiplas reeleições.

Em abril de 2013, logo depois da morte de Chávez, Lula gravou um vídeo para pedir voto para Maduro: “Sempre foi visível sua profunda afinidade com nosso querido e saudoso amigo Hugo Chávez. Os dois compartilhavam as mesmas ideias sobre o destino do nosso continente e os grandes problemas mundiais. Mais do que isso, Chávez e Maduro tinham as mesmas concepções em relação aos desafios que a Venezuela tinha pela frente: em defesa dos mais pobres”.

Por isso, a oposição e a maioria da população da Venezuela não confiam em Lula e ele não tem credenciais para intermediar uma distensão no país. Isso fica provado mais uma vez agora. Depois que Maduro marcou a eleição para 28 de julho, aniversário de Chávez, o presidente brasileiro afirmou que “não se pode colocar dúvidas antes de as eleições acontecerem”, em nome da “presunção de inocência”.

Assessores do presidente têm dito que não gostam de Machado, porque ela fala em punir os crimes do regime, e aprovam os nomes do governador de Zulia, Manuel Rosales, e de Gerardo Blyde, coordenador da Plataforma Unitária Democrática. Lula disse em fevereiro que não tem informações sobre o que acontece na Venezuela, quando indagado sobre a expulsão de funcionários do escritório de Direitos Humanos da ONU no país.

Só isso explicaria as maquinações de seus assessores. Além do óbvio absurdo de um governo querer triar candidatos à presidência de outro país, Rosales é popular em Zulia mas não tem projeção nacional, enquanto Blyde é leal ao processo das primárias e não se candidataria no lugar de Machado, analisa Omar Lugo, editor do site independente de notícias El Estímulo, de Caracas.

Na antevéspera do Dia Internacional da Mulher, Lula sugeriu que a líder da oposição não deveria ficar “chorando” e sim escolher um substituto, como ele fez quando estava condenado e preso por corrupção, em 2018. O presidente parece não saber também o que está acontecendo no Brasil, um Estado democrático de direito que não pode ser comparado à ditadura venezuelana. Sem contar o conteúdo grosseiro, misógino e injusto do ataque: se tem uma coisa que não falta a Machado é coragem, ao percorrer o país em campanha, enfrentando um regime sanguinário.

Depois de duas décadas de abusos contra os direitos humanos na Venezuela e de arbitrariedades para manter os chavistas no poder, a única inocência dos envolvidos é a do próprio Lula. Se é que ele acredita no que diz. O mais provável é que Lula tenha penhorado seu apoio a Maduro em troca de o ditador recuar de sua decisão de invadir a Guiana para tomar a região de Essequibo, rica em petróleo e outros minérios.

A aventura não faria grande sentido econômico: a Venezuela tem as maiores reservas de petróleo do mundo. O que lhe falta é competência para explorá-lo. Em razão do sucatamento da estatal PDVSA, antes uma respeitada petroleira, a exploração despencou de 3 milhões de barris diários em 2002 para 800 mil.

O sentido da ameaça é político: o velho expediente, aliás usado por Putin, de criar um inimigo comum para justificar a perpetuação no poder, como único “protetor da nação”. E geopolítico: servir ao interesse russo de criar uma distração para os Estados Unidos na América Latina. A guerra de Gaza, provocada por outro aliado da Rússia, o Irã, patrocinador do Hamas, divide as energias dos Estados Unidos e enfraquece seu apoio à Ucrânia. Numa escala menor, o apoio americano à Guiana teria o mesmo efeito.

Dois dias antes de os russos invadirem a Ucrânia, em fevereiro de 2022, Maduro declarou: “A Venezuela está com Putin, está com a Rússia, está com as causas valentes e justas do mundo”. Cinco dias depois da invasão, o ditador venezuelano ligou para o russo. “Nicolás Maduro expressou seu forte apoio às ações-chave da Rússia, condenando a atividade desestabilizadora dos Estados Unidos e da Otan e enfatizando a importância de combater a campanha de mentiras e desinformação lançada pelos países ocidentais”, relatou o Kremlin.

Lula também culpa os EUA e a Europa pelo fato de a Rússia ter invadido a Ucrânia.

Chávez já havia apoiado a invasão da Geórgia pela Rússia em 2008. Assim, a anexação do Essequibo pareceria algo legítimo dentro do repertório moral do chavismo. Na época, a Venezuela ainda conseguia produzir petróleo em grande quantidade, e usava o dinheiro para comprar armas russas, como sofisticados caças Sukhoi-30, baterias antiaéreas S-300, tanques, navios, artilharia e fuzis kalashnikov.

Essa tensão interessa às ditaduras venezuelana e russa, e não ao Brasil, que tem 2.199 km de fronteira com a Venezuela e 1.605 km com a Guiana, no delicado território amazônico. Além disso, ao menos 262 mil imigrantes e refugiados da Venezuela vivem no Brasil, por causa do flagelo no país vizinho. Portanto, enquanto subsistir o regime chavista, o Brasil não estará seguro.

O regime venezuelano prepara mais uma farsa eleitoral. E o governo Lula participa alegremente dela. Até aí, nenhuma novidade. Dessa vez, porém, a manobra vem acompanhada da ameaça de invasão de outro vizinho do Brasil, a Guiana. Um aliado comum de Nicolás Maduro e de Lula, o ditador russo Vladimir Putin, tem interesse nessa guerra. Lula trocou o apoio incondicional à ditadura venezuelana pelo adiamento do conflito. É um arranjo precário.

Os partidos de oposição venezuelanos se uniram no ano passado para eleger candidato único contra Maduro. A chamada Plataforma Unitária Democrática pediu para o Conselho Nacional Eleitoral supervisionar o pleito. Para negar legitimidade ao processo, os conselheiros obedientes ao regime, que eram a maioria, renunciaram. Um novo Conselho, exclusivamente chavista, foi nomeado, e o órgão público se recusou a cumprir a função constitucional de fiscalizar a votação.

Maduro tenta dar ar de legitimidade ao próximo pleito da Venezuela Foto: Ariana Cubillos/AP

Apesar das ameaças de represália do regime, 2,4 milhões de corajosos venezuelanos participaram, e 92% votaram na ex-deputada María Corina Machado, incontestável líder da oposição. Em 2015, Machado foi tornada inelegível pela Justiça venezuelana, controlada pelo regime, por supostas irregularidades em sua prestação de contas como deputada. Isso, num país em que centenas de milhões de dólares são desviados por integrantes do regime.

O Tribunal Supremo de Justiça, 100% composto por chavistas, confirmou em janeiro a inelegibilidade de Machado, até 2036.Machado é a terceira líder de oposição competitiva excluída de disputas eleitorais com Maduro, no rastro de Henrique Capriles e Leopoldo López, presos por crimes sem provas. Segundo organismos independentes de defesa dos direitos humanos, 1.400 venezuelanos perderam direitos políticos desde 2002. Há atualmente 288 presos políticos.

A manobra viola o Acordo de Barbados, firmado cinco dias antes das primárias da oposição. O governo venezuelano se comprometeu a realizar eleições livres e justas, sem a exclusão de oposicionistas. O acordo levou os EUA a suspender as sanções contra a Venezuela, que pode ter vendido em torno de US$ 1 bilhão em petróleo, antes de a Casa Branca concluir que foi enganada.

O acordo incluiu também a libertação do colombiano Alex Saab, preso na Flórida sob acusação de desvio de US$ 350 milhões dos cofres venezuelanos. Segundo o FBI, parte desse dinheiro é destinada a Maduro, do qual Saab é considerado testa-de-ferro. A trama envolve lavagem de dinheiro do narcotráfico.

A exclusão da oposição leva há uma década a população a boicotar maciçamente as eleições promovidas pelo regime. Para fazer frente a esses boicotes, que retiram a aparência de legitimidade dos pleitos, o regime toma uma série de providências. Ao chegar às seções eleitorais, os venezuelanos passam seu “cartão da pátria” em máquinas estrategicamente instaladas ao lado dos equipamentos de identificação dos eleitores. O registro do comparecimento garante a entrega mensal da cesta básica pelo governo, da qual muitos venezuelanos dependem para sobreviver: 90% estão abaixo da linha de pobreza e 68%, na extrema pobreza.

Funcionários públicos são obrigados a votar. Militantes chavistas remunerados pelo governo nos bairros pobres exercem pressão para os moradores comparecerem. Nada disso é suficiente. Eu cobri as eleições para a Assembleia Constituinte de 2017, boicotadas pela oposição. As seções eleitorais permaneceram semidesertas o dia todo, enquanto dezenas de milhares de corajosos venezuelanos se manifestavam contra o regime, sob forte repressão. Mesmo assim, o CNE anunciou comparecimento de 41%.

A propósito, enquanto Lula se reunia com Maduro, há uma semana, em San Vicente e Granadina, durante a cúpula da Celac, o Tribunal Penal Internacional rejeitava em Haia apelação do regime chavista e levava adiante a investigação da morte de 125 manifestantes durante as eleições da Assembleia Constituinte. Eu presenciei algumas dessas mortes a tiros, disparados contra a multidão.

Lula tem longa história de interferência nos assuntos venezuelanos, ao lado do autoritarismo e da corrupção do regime chavista. Em novembro de 2006, Lula aproveitou a inauguração de uma ponte sobre o Rio Orinoco construída pela Odebrecht com dinheiro do BNDES para pedir votos para Hugo Chávez, três semanas antes de mais uma de suas múltiplas reeleições.

Em abril de 2013, logo depois da morte de Chávez, Lula gravou um vídeo para pedir voto para Maduro: “Sempre foi visível sua profunda afinidade com nosso querido e saudoso amigo Hugo Chávez. Os dois compartilhavam as mesmas ideias sobre o destino do nosso continente e os grandes problemas mundiais. Mais do que isso, Chávez e Maduro tinham as mesmas concepções em relação aos desafios que a Venezuela tinha pela frente: em defesa dos mais pobres”.

Por isso, a oposição e a maioria da população da Venezuela não confiam em Lula e ele não tem credenciais para intermediar uma distensão no país. Isso fica provado mais uma vez agora. Depois que Maduro marcou a eleição para 28 de julho, aniversário de Chávez, o presidente brasileiro afirmou que “não se pode colocar dúvidas antes de as eleições acontecerem”, em nome da “presunção de inocência”.

Assessores do presidente têm dito que não gostam de Machado, porque ela fala em punir os crimes do regime, e aprovam os nomes do governador de Zulia, Manuel Rosales, e de Gerardo Blyde, coordenador da Plataforma Unitária Democrática. Lula disse em fevereiro que não tem informações sobre o que acontece na Venezuela, quando indagado sobre a expulsão de funcionários do escritório de Direitos Humanos da ONU no país.

Só isso explicaria as maquinações de seus assessores. Além do óbvio absurdo de um governo querer triar candidatos à presidência de outro país, Rosales é popular em Zulia mas não tem projeção nacional, enquanto Blyde é leal ao processo das primárias e não se candidataria no lugar de Machado, analisa Omar Lugo, editor do site independente de notícias El Estímulo, de Caracas.

Na antevéspera do Dia Internacional da Mulher, Lula sugeriu que a líder da oposição não deveria ficar “chorando” e sim escolher um substituto, como ele fez quando estava condenado e preso por corrupção, em 2018. O presidente parece não saber também o que está acontecendo no Brasil, um Estado democrático de direito que não pode ser comparado à ditadura venezuelana. Sem contar o conteúdo grosseiro, misógino e injusto do ataque: se tem uma coisa que não falta a Machado é coragem, ao percorrer o país em campanha, enfrentando um regime sanguinário.

Depois de duas décadas de abusos contra os direitos humanos na Venezuela e de arbitrariedades para manter os chavistas no poder, a única inocência dos envolvidos é a do próprio Lula. Se é que ele acredita no que diz. O mais provável é que Lula tenha penhorado seu apoio a Maduro em troca de o ditador recuar de sua decisão de invadir a Guiana para tomar a região de Essequibo, rica em petróleo e outros minérios.

A aventura não faria grande sentido econômico: a Venezuela tem as maiores reservas de petróleo do mundo. O que lhe falta é competência para explorá-lo. Em razão do sucatamento da estatal PDVSA, antes uma respeitada petroleira, a exploração despencou de 3 milhões de barris diários em 2002 para 800 mil.

O sentido da ameaça é político: o velho expediente, aliás usado por Putin, de criar um inimigo comum para justificar a perpetuação no poder, como único “protetor da nação”. E geopolítico: servir ao interesse russo de criar uma distração para os Estados Unidos na América Latina. A guerra de Gaza, provocada por outro aliado da Rússia, o Irã, patrocinador do Hamas, divide as energias dos Estados Unidos e enfraquece seu apoio à Ucrânia. Numa escala menor, o apoio americano à Guiana teria o mesmo efeito.

Dois dias antes de os russos invadirem a Ucrânia, em fevereiro de 2022, Maduro declarou: “A Venezuela está com Putin, está com a Rússia, está com as causas valentes e justas do mundo”. Cinco dias depois da invasão, o ditador venezuelano ligou para o russo. “Nicolás Maduro expressou seu forte apoio às ações-chave da Rússia, condenando a atividade desestabilizadora dos Estados Unidos e da Otan e enfatizando a importância de combater a campanha de mentiras e desinformação lançada pelos países ocidentais”, relatou o Kremlin.

Lula também culpa os EUA e a Europa pelo fato de a Rússia ter invadido a Ucrânia.

Chávez já havia apoiado a invasão da Geórgia pela Rússia em 2008. Assim, a anexação do Essequibo pareceria algo legítimo dentro do repertório moral do chavismo. Na época, a Venezuela ainda conseguia produzir petróleo em grande quantidade, e usava o dinheiro para comprar armas russas, como sofisticados caças Sukhoi-30, baterias antiaéreas S-300, tanques, navios, artilharia e fuzis kalashnikov.

Essa tensão interessa às ditaduras venezuelana e russa, e não ao Brasil, que tem 2.199 km de fronteira com a Venezuela e 1.605 km com a Guiana, no delicado território amazônico. Além disso, ao menos 262 mil imigrantes e refugiados da Venezuela vivem no Brasil, por causa do flagelo no país vizinho. Portanto, enquanto subsistir o regime chavista, o Brasil não estará seguro.

Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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