Governar grandes federações democráticas é um desafio. Há uma frequente tensão entre o presidente ou primeiro-ministro e os governadores dos Estados mais ricos, menos dependentes em termos de orçamento do que nos sistemas centralizados. Daí a tentação da aliança política com as Forças Armadas. O caso mais recente e drástico é o do México.
Durante a campanha para a eleição de 2018, que eu cobri, Andrés Manuel López Obrador (AMLO) criticou o uso das Forças Armadas no combate ao crime organizado. Depois de assumir a presidência, ele não só ampliou esse engajamento, como entregou aos militares uma série de atividades tradicionalmente civis.
AMLO transferiu a construção do novo aeroporto da Cidade do México para os militares, assim como de uma nova ferrovia de 1.500 km, chamada de Trem Maia. Quando concluída, ela será administrada pelas Forças Armadas, que ficarão com a receita. Os militares construirão até o próximo ano 2.700 agências do novo Banco do Bem-Estar.
A Marinha passou a administrar os portos; o Exército, a guardar toda a fronteira com os Estados Unidos, e não só os trechos mais problemáticos, como antes. A Alfândega saiu das mãos de uma agência civil para os militares. A vacinação contra covid e até a gestão de alguns hospitais foram confiadas às Forças Armadas.
A Polícia Federal foi trocada por uma Guarda Nacional, cujo efetivo de 100 mil é composto por três quartos de militares. Um decreto presidencial ampliou o envolvimento dos militares na segurança pública, incluindo deter suspeitos e isolar cenas de crimes. A violência aumentou.
Enquanto outras áreas do setor público perderam recursos, o orçamento do Ministério da Defesa, de US$ 5,6 bilhões, é 40% maior que em 2018, em termos nominais.
O presidente pretende emprestar às ações do governo a aparência de eficiência e idoneidade, e exercer um controle mais direto, como comandante-chefe, do que ele teria sobre empresas privadas, servidores civis, congressistas e governadores. Mas há evidências de falhas de gestão e de corrupção entre os militares, até porque 41% das verbas são gastas sem licitação.
As Forças Armadas são uma das instituições mais respeitadas do México, como acontece em tantos outros países, e esse prestígio parece estar se transferindo para AMLO, que tem aprovação de 63%, incomum para um presidente no meio do mandato.
O truque foi tentado pelo ex-presidente Donald Trump, sem o mesmo sucesso. Depois de na juventude ter escapado três vezes da convocação para a Guerra do Vietnã, alegando ter esporão, embora praticasse esportes, Trump trouxe para seu gabinete 8 militares, de um total de 24 secretários. No governo anterior, de Barack Obama, eram dois militares; no de Biden, apenas um: o secretário da Defesa, general Lloyd Austin.
Trump aumentou em 14% o gasto das Forças Armadas, de US$ 819 bilhões, em 2017, para US$ 934 bilhões, em 2021. Ele até criou uma nova arma, a Força Espacial. No calor dos protestos contra o racismo, dia 1.º de junho do ano passado, Trump tirou uma foto ao lado do general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto, de farda, na frente da Igreja Episcopal de São João, em Washington. Milley depois pediu desculpas ao povo americano.
Ao voltar do Hospital Militar Walter Reed, depois de tratamento de covid, no helicóptero dos Fuzileiros Navais que transporta os presidentes, Trump bateu continência da varanda da Casa Branca, como se estivesse em missão.
Nada disso deu muito resultado. Ele perdeu a eleição e o apreço dos militares. Segundo uma pesquisa do jornal Military Times, realizada entre julho e agosto com mil militares de todas as patentes, 50% tinham visão desfavorável do presidente e 38%, favorável. Militares profissionais em democracias sólidas veem a politização como um risco, não como uma oportunidade para as Forças Armadas.* É COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS