É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|Sob Trump ou Biden, EUA tomam rumos opostos — e há vastas consequências para a ordem internacional


As divergências sobre as políticas externa e de defesa dos EUA, como de qualquer outro país, são uma constante na história

Por Lourival Sant'Anna

As declarações de Donald Trump sobre a Otan são uma lição para quem imagina países como se tivessem posição fixa, independente de governos. Sob Trump e sob Joe Biden, os EUA tomam rumos opostos, com vastas consequências para a ordem internacional. Embora países tenham interesses, são governados por políticos, e as visões até dentro de um governo podem divergir drasticamente.

Em comício na Carolina do Sul, no dia 3, Trump contou que, durante uma cúpula da Otan, disse ao presidente de um país-membro que, se ele ficasse “inadimplente”, não o protegeria e encorajaria os russos a fazer o que quisessem.

A discussão na Otan não gira em torno de “inadimplência”. Depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2014, os membros da aliança concordaram em destinar ao menos 2% dos respectivos PIBs à defesa. Na época, apenas três atingiam essa cifra. Este ano, 18 dos 31 países devem alcançá-la, e pela primeira vez o total dos gastos chegará a 2% da soma dos PIBs.

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Quando era presidente, Trump ameaçou não honrar os compromissos de defesa mútua com os aliados europeus, Japão e Coreia do Sul. Os dois países asiáticos aumentaram os valores que pagam pela manutenção de tropas e armas americanas em seus territórios.

O ex-presidente Donald Trump, à esquerda, e o presidente Joe Biden, candidato democrata, participam de debate presidencial em 2020. Foto: AP Photo/Patrick Semansky, arquivo

É justo que aliados ricos invistam mais em sua defesa em vez de sobrecarregar os contribuintes americanos. O problema está na forma de cobrar isso. Não faz bem para o moral das Forças Armadas – e para os pais dos soldados americanos – tratá-las como se fossem um grupo mercenário que vende seus serviços.

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A Otan nasceu da constatação, depois da Segunda Guerra, de que a Europa Ocidental não tinha condições de se defender de uma potência expansionista como a Alemanha nazista ou a União Soviética sem ajuda americana. E de que a Europa protege os EUA dessas ameaças. Não se trata de favor.

Apoio

Biden chamou a bravata de Trump de “tola, vergonhosa, perigosa e antiamericana”. Mas o ex-presidente está alinhado com o eleitorado conservador. Em pesquisas do Instituto Gallup, a fatia dos republicanos para os quais “os EUA estão fazendo demais para ajudar a Ucrânia” saltou de 43% em agosto de 2022 para 62% em outubro; a de independentes, de 28% para 44%. Entre os democratas, a proporção continuou baixa, subindo de 10% para 14% no período; entre os americanos em geral, de 24% pra 41%.

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As divergências sobre as políticas externa e de defesa dos EUA, como de qualquer outro país, são uma constante na história. Entre 1989 e 1991, período da queda do Muro de Berlim, da unificação da Alemanha e da dissolução da União Soviética, o então secretário de Estado americano James Baker era a favor de oferecer garantias ao presidente soviético Mikhail Gorbachev de que a Otan não expandiria para o Leste. Já o conselheiro de Segurança Nacional, Brent Scowcroft, e o secretário de Defesa, Dick Cheney, eram contra.

O mesmo acontecia no governo do então chanceler alemão Helmut Kohl. Seu ministro de Relações Exteriores, Hans-Dietrich Genscher, também queria oferecer espontaneamente essas garantias ao seu colega russo, Eduard Shevardnadze. Numa insólita aliança, o embaixador da Alemanha Ocidental em Moscou, Andreas Meyer-Landrut, em tese subordinado a Genscher, e o assessor de Segurança Nacional, Joachim Bitterlich, mobilizaram-se para neutralizar essas garantias.

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Visões

No fim, prevaleceu a visão de que a garantia não era necessária, e ela nunca foi formalizada. Gorbachev não estava na posição de impor condições. As economias da União Soviética e da Alemanha Oriental estavam em frangalhos, as prateleiras das lojas, vazias, e Gorbachev passou pela humilhante situação de pedir ajuda financeira a Baker e a Kohl.

No próprio governo soviético, as visões eram divergentes. Gorbachev aceitou a proposta do então presidente George Bush (pai), na cúpula de Helsinque de setembro de 1990, de que os alemães decidissem a qual aliança de defesa a Alemanha unificada deveria pertencer, desde que o país continuasse desnuclearizado.

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O Acordo de Helsinque de 1975, do qual a União Soviética era signatária, garantia liberdade de adesão à Otan e ao Pacto de Varsóvia para todos os países. Claro que, no contexto da guerra fria, essa escolha na prática não existia.

A posição de Gorbachev desencadeou uma rebelião na delegação soviética. Os assessores de política externa, Valentin Falin, e de Segurança Nacional, marechal Serguei Akhromeyev, discordaram explicitamente do líder soviético.

Um ano depois, o marechal participaria do fracassado golpe contra Gorbachev e se suicidaria. Uma vez desfeita a União Soviética, o presidente russo, Boris Yeltsin, reuniu-se com Bush em Camp David em fevereiro de 1992. Eles celebraram o fim da Guerra Fria e o ingresso da Rússia em uma aliança de defesa que, nas palavras de Yeltsin, iria “de Vancouver (na costa oeste do Canadá) a Vladivostok (no extremo leste russo)”. Combinaram também que, em 2019, no 50.º aniversário da chegada do homem à Lua, EUA e Rússia fariam missão conjunta tripulada até Marte.

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Inimigos

O breve experimento russo com a democracia liberal teve fim com a chegada de Vladimir Putin ao poder, em 2000. E, com ela, esse sonho de harmonia entre a Rússia e o Ocidente. Regimes autoritários precisam de inimigos.

Os EUA ainda são superiores militar e tecnologicamente à Rússia e à China. Mas, se não há o apetite político por conter os adversários, o efeito dissuasivo dessa superioridade se perde. E o mundo se torna mais próximo de uma guerra mundial.

As declarações de Donald Trump sobre a Otan são uma lição para quem imagina países como se tivessem posição fixa, independente de governos. Sob Trump e sob Joe Biden, os EUA tomam rumos opostos, com vastas consequências para a ordem internacional. Embora países tenham interesses, são governados por políticos, e as visões até dentro de um governo podem divergir drasticamente.

Em comício na Carolina do Sul, no dia 3, Trump contou que, durante uma cúpula da Otan, disse ao presidente de um país-membro que, se ele ficasse “inadimplente”, não o protegeria e encorajaria os russos a fazer o que quisessem.

A discussão na Otan não gira em torno de “inadimplência”. Depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2014, os membros da aliança concordaram em destinar ao menos 2% dos respectivos PIBs à defesa. Na época, apenas três atingiam essa cifra. Este ano, 18 dos 31 países devem alcançá-la, e pela primeira vez o total dos gastos chegará a 2% da soma dos PIBs.

Quando era presidente, Trump ameaçou não honrar os compromissos de defesa mútua com os aliados europeus, Japão e Coreia do Sul. Os dois países asiáticos aumentaram os valores que pagam pela manutenção de tropas e armas americanas em seus territórios.

O ex-presidente Donald Trump, à esquerda, e o presidente Joe Biden, candidato democrata, participam de debate presidencial em 2020. Foto: AP Photo/Patrick Semansky, arquivo

É justo que aliados ricos invistam mais em sua defesa em vez de sobrecarregar os contribuintes americanos. O problema está na forma de cobrar isso. Não faz bem para o moral das Forças Armadas – e para os pais dos soldados americanos – tratá-las como se fossem um grupo mercenário que vende seus serviços.

A Otan nasceu da constatação, depois da Segunda Guerra, de que a Europa Ocidental não tinha condições de se defender de uma potência expansionista como a Alemanha nazista ou a União Soviética sem ajuda americana. E de que a Europa protege os EUA dessas ameaças. Não se trata de favor.

Apoio

Biden chamou a bravata de Trump de “tola, vergonhosa, perigosa e antiamericana”. Mas o ex-presidente está alinhado com o eleitorado conservador. Em pesquisas do Instituto Gallup, a fatia dos republicanos para os quais “os EUA estão fazendo demais para ajudar a Ucrânia” saltou de 43% em agosto de 2022 para 62% em outubro; a de independentes, de 28% para 44%. Entre os democratas, a proporção continuou baixa, subindo de 10% para 14% no período; entre os americanos em geral, de 24% pra 41%.

As divergências sobre as políticas externa e de defesa dos EUA, como de qualquer outro país, são uma constante na história. Entre 1989 e 1991, período da queda do Muro de Berlim, da unificação da Alemanha e da dissolução da União Soviética, o então secretário de Estado americano James Baker era a favor de oferecer garantias ao presidente soviético Mikhail Gorbachev de que a Otan não expandiria para o Leste. Já o conselheiro de Segurança Nacional, Brent Scowcroft, e o secretário de Defesa, Dick Cheney, eram contra.

O mesmo acontecia no governo do então chanceler alemão Helmut Kohl. Seu ministro de Relações Exteriores, Hans-Dietrich Genscher, também queria oferecer espontaneamente essas garantias ao seu colega russo, Eduard Shevardnadze. Numa insólita aliança, o embaixador da Alemanha Ocidental em Moscou, Andreas Meyer-Landrut, em tese subordinado a Genscher, e o assessor de Segurança Nacional, Joachim Bitterlich, mobilizaram-se para neutralizar essas garantias.

Visões

No fim, prevaleceu a visão de que a garantia não era necessária, e ela nunca foi formalizada. Gorbachev não estava na posição de impor condições. As economias da União Soviética e da Alemanha Oriental estavam em frangalhos, as prateleiras das lojas, vazias, e Gorbachev passou pela humilhante situação de pedir ajuda financeira a Baker e a Kohl.

No próprio governo soviético, as visões eram divergentes. Gorbachev aceitou a proposta do então presidente George Bush (pai), na cúpula de Helsinque de setembro de 1990, de que os alemães decidissem a qual aliança de defesa a Alemanha unificada deveria pertencer, desde que o país continuasse desnuclearizado.

O Acordo de Helsinque de 1975, do qual a União Soviética era signatária, garantia liberdade de adesão à Otan e ao Pacto de Varsóvia para todos os países. Claro que, no contexto da guerra fria, essa escolha na prática não existia.

A posição de Gorbachev desencadeou uma rebelião na delegação soviética. Os assessores de política externa, Valentin Falin, e de Segurança Nacional, marechal Serguei Akhromeyev, discordaram explicitamente do líder soviético.

Um ano depois, o marechal participaria do fracassado golpe contra Gorbachev e se suicidaria. Uma vez desfeita a União Soviética, o presidente russo, Boris Yeltsin, reuniu-se com Bush em Camp David em fevereiro de 1992. Eles celebraram o fim da Guerra Fria e o ingresso da Rússia em uma aliança de defesa que, nas palavras de Yeltsin, iria “de Vancouver (na costa oeste do Canadá) a Vladivostok (no extremo leste russo)”. Combinaram também que, em 2019, no 50.º aniversário da chegada do homem à Lua, EUA e Rússia fariam missão conjunta tripulada até Marte.

Inimigos

O breve experimento russo com a democracia liberal teve fim com a chegada de Vladimir Putin ao poder, em 2000. E, com ela, esse sonho de harmonia entre a Rússia e o Ocidente. Regimes autoritários precisam de inimigos.

Os EUA ainda são superiores militar e tecnologicamente à Rússia e à China. Mas, se não há o apetite político por conter os adversários, o efeito dissuasivo dessa superioridade se perde. E o mundo se torna mais próximo de uma guerra mundial.

As declarações de Donald Trump sobre a Otan são uma lição para quem imagina países como se tivessem posição fixa, independente de governos. Sob Trump e sob Joe Biden, os EUA tomam rumos opostos, com vastas consequências para a ordem internacional. Embora países tenham interesses, são governados por políticos, e as visões até dentro de um governo podem divergir drasticamente.

Em comício na Carolina do Sul, no dia 3, Trump contou que, durante uma cúpula da Otan, disse ao presidente de um país-membro que, se ele ficasse “inadimplente”, não o protegeria e encorajaria os russos a fazer o que quisessem.

A discussão na Otan não gira em torno de “inadimplência”. Depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2014, os membros da aliança concordaram em destinar ao menos 2% dos respectivos PIBs à defesa. Na época, apenas três atingiam essa cifra. Este ano, 18 dos 31 países devem alcançá-la, e pela primeira vez o total dos gastos chegará a 2% da soma dos PIBs.

Quando era presidente, Trump ameaçou não honrar os compromissos de defesa mútua com os aliados europeus, Japão e Coreia do Sul. Os dois países asiáticos aumentaram os valores que pagam pela manutenção de tropas e armas americanas em seus territórios.

O ex-presidente Donald Trump, à esquerda, e o presidente Joe Biden, candidato democrata, participam de debate presidencial em 2020. Foto: AP Photo/Patrick Semansky, arquivo

É justo que aliados ricos invistam mais em sua defesa em vez de sobrecarregar os contribuintes americanos. O problema está na forma de cobrar isso. Não faz bem para o moral das Forças Armadas – e para os pais dos soldados americanos – tratá-las como se fossem um grupo mercenário que vende seus serviços.

A Otan nasceu da constatação, depois da Segunda Guerra, de que a Europa Ocidental não tinha condições de se defender de uma potência expansionista como a Alemanha nazista ou a União Soviética sem ajuda americana. E de que a Europa protege os EUA dessas ameaças. Não se trata de favor.

Apoio

Biden chamou a bravata de Trump de “tola, vergonhosa, perigosa e antiamericana”. Mas o ex-presidente está alinhado com o eleitorado conservador. Em pesquisas do Instituto Gallup, a fatia dos republicanos para os quais “os EUA estão fazendo demais para ajudar a Ucrânia” saltou de 43% em agosto de 2022 para 62% em outubro; a de independentes, de 28% para 44%. Entre os democratas, a proporção continuou baixa, subindo de 10% para 14% no período; entre os americanos em geral, de 24% pra 41%.

As divergências sobre as políticas externa e de defesa dos EUA, como de qualquer outro país, são uma constante na história. Entre 1989 e 1991, período da queda do Muro de Berlim, da unificação da Alemanha e da dissolução da União Soviética, o então secretário de Estado americano James Baker era a favor de oferecer garantias ao presidente soviético Mikhail Gorbachev de que a Otan não expandiria para o Leste. Já o conselheiro de Segurança Nacional, Brent Scowcroft, e o secretário de Defesa, Dick Cheney, eram contra.

O mesmo acontecia no governo do então chanceler alemão Helmut Kohl. Seu ministro de Relações Exteriores, Hans-Dietrich Genscher, também queria oferecer espontaneamente essas garantias ao seu colega russo, Eduard Shevardnadze. Numa insólita aliança, o embaixador da Alemanha Ocidental em Moscou, Andreas Meyer-Landrut, em tese subordinado a Genscher, e o assessor de Segurança Nacional, Joachim Bitterlich, mobilizaram-se para neutralizar essas garantias.

Visões

No fim, prevaleceu a visão de que a garantia não era necessária, e ela nunca foi formalizada. Gorbachev não estava na posição de impor condições. As economias da União Soviética e da Alemanha Oriental estavam em frangalhos, as prateleiras das lojas, vazias, e Gorbachev passou pela humilhante situação de pedir ajuda financeira a Baker e a Kohl.

No próprio governo soviético, as visões eram divergentes. Gorbachev aceitou a proposta do então presidente George Bush (pai), na cúpula de Helsinque de setembro de 1990, de que os alemães decidissem a qual aliança de defesa a Alemanha unificada deveria pertencer, desde que o país continuasse desnuclearizado.

O Acordo de Helsinque de 1975, do qual a União Soviética era signatária, garantia liberdade de adesão à Otan e ao Pacto de Varsóvia para todos os países. Claro que, no contexto da guerra fria, essa escolha na prática não existia.

A posição de Gorbachev desencadeou uma rebelião na delegação soviética. Os assessores de política externa, Valentin Falin, e de Segurança Nacional, marechal Serguei Akhromeyev, discordaram explicitamente do líder soviético.

Um ano depois, o marechal participaria do fracassado golpe contra Gorbachev e se suicidaria. Uma vez desfeita a União Soviética, o presidente russo, Boris Yeltsin, reuniu-se com Bush em Camp David em fevereiro de 1992. Eles celebraram o fim da Guerra Fria e o ingresso da Rússia em uma aliança de defesa que, nas palavras de Yeltsin, iria “de Vancouver (na costa oeste do Canadá) a Vladivostok (no extremo leste russo)”. Combinaram também que, em 2019, no 50.º aniversário da chegada do homem à Lua, EUA e Rússia fariam missão conjunta tripulada até Marte.

Inimigos

O breve experimento russo com a democracia liberal teve fim com a chegada de Vladimir Putin ao poder, em 2000. E, com ela, esse sonho de harmonia entre a Rússia e o Ocidente. Regimes autoritários precisam de inimigos.

Os EUA ainda são superiores militar e tecnologicamente à Rússia e à China. Mas, se não há o apetite político por conter os adversários, o efeito dissuasivo dessa superioridade se perde. E o mundo se torna mais próximo de uma guerra mundial.

As declarações de Donald Trump sobre a Otan são uma lição para quem imagina países como se tivessem posição fixa, independente de governos. Sob Trump e sob Joe Biden, os EUA tomam rumos opostos, com vastas consequências para a ordem internacional. Embora países tenham interesses, são governados por políticos, e as visões até dentro de um governo podem divergir drasticamente.

Em comício na Carolina do Sul, no dia 3, Trump contou que, durante uma cúpula da Otan, disse ao presidente de um país-membro que, se ele ficasse “inadimplente”, não o protegeria e encorajaria os russos a fazer o que quisessem.

A discussão na Otan não gira em torno de “inadimplência”. Depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2014, os membros da aliança concordaram em destinar ao menos 2% dos respectivos PIBs à defesa. Na época, apenas três atingiam essa cifra. Este ano, 18 dos 31 países devem alcançá-la, e pela primeira vez o total dos gastos chegará a 2% da soma dos PIBs.

Quando era presidente, Trump ameaçou não honrar os compromissos de defesa mútua com os aliados europeus, Japão e Coreia do Sul. Os dois países asiáticos aumentaram os valores que pagam pela manutenção de tropas e armas americanas em seus territórios.

O ex-presidente Donald Trump, à esquerda, e o presidente Joe Biden, candidato democrata, participam de debate presidencial em 2020. Foto: AP Photo/Patrick Semansky, arquivo

É justo que aliados ricos invistam mais em sua defesa em vez de sobrecarregar os contribuintes americanos. O problema está na forma de cobrar isso. Não faz bem para o moral das Forças Armadas – e para os pais dos soldados americanos – tratá-las como se fossem um grupo mercenário que vende seus serviços.

A Otan nasceu da constatação, depois da Segunda Guerra, de que a Europa Ocidental não tinha condições de se defender de uma potência expansionista como a Alemanha nazista ou a União Soviética sem ajuda americana. E de que a Europa protege os EUA dessas ameaças. Não se trata de favor.

Apoio

Biden chamou a bravata de Trump de “tola, vergonhosa, perigosa e antiamericana”. Mas o ex-presidente está alinhado com o eleitorado conservador. Em pesquisas do Instituto Gallup, a fatia dos republicanos para os quais “os EUA estão fazendo demais para ajudar a Ucrânia” saltou de 43% em agosto de 2022 para 62% em outubro; a de independentes, de 28% para 44%. Entre os democratas, a proporção continuou baixa, subindo de 10% para 14% no período; entre os americanos em geral, de 24% pra 41%.

As divergências sobre as políticas externa e de defesa dos EUA, como de qualquer outro país, são uma constante na história. Entre 1989 e 1991, período da queda do Muro de Berlim, da unificação da Alemanha e da dissolução da União Soviética, o então secretário de Estado americano James Baker era a favor de oferecer garantias ao presidente soviético Mikhail Gorbachev de que a Otan não expandiria para o Leste. Já o conselheiro de Segurança Nacional, Brent Scowcroft, e o secretário de Defesa, Dick Cheney, eram contra.

O mesmo acontecia no governo do então chanceler alemão Helmut Kohl. Seu ministro de Relações Exteriores, Hans-Dietrich Genscher, também queria oferecer espontaneamente essas garantias ao seu colega russo, Eduard Shevardnadze. Numa insólita aliança, o embaixador da Alemanha Ocidental em Moscou, Andreas Meyer-Landrut, em tese subordinado a Genscher, e o assessor de Segurança Nacional, Joachim Bitterlich, mobilizaram-se para neutralizar essas garantias.

Visões

No fim, prevaleceu a visão de que a garantia não era necessária, e ela nunca foi formalizada. Gorbachev não estava na posição de impor condições. As economias da União Soviética e da Alemanha Oriental estavam em frangalhos, as prateleiras das lojas, vazias, e Gorbachev passou pela humilhante situação de pedir ajuda financeira a Baker e a Kohl.

No próprio governo soviético, as visões eram divergentes. Gorbachev aceitou a proposta do então presidente George Bush (pai), na cúpula de Helsinque de setembro de 1990, de que os alemães decidissem a qual aliança de defesa a Alemanha unificada deveria pertencer, desde que o país continuasse desnuclearizado.

O Acordo de Helsinque de 1975, do qual a União Soviética era signatária, garantia liberdade de adesão à Otan e ao Pacto de Varsóvia para todos os países. Claro que, no contexto da guerra fria, essa escolha na prática não existia.

A posição de Gorbachev desencadeou uma rebelião na delegação soviética. Os assessores de política externa, Valentin Falin, e de Segurança Nacional, marechal Serguei Akhromeyev, discordaram explicitamente do líder soviético.

Um ano depois, o marechal participaria do fracassado golpe contra Gorbachev e se suicidaria. Uma vez desfeita a União Soviética, o presidente russo, Boris Yeltsin, reuniu-se com Bush em Camp David em fevereiro de 1992. Eles celebraram o fim da Guerra Fria e o ingresso da Rússia em uma aliança de defesa que, nas palavras de Yeltsin, iria “de Vancouver (na costa oeste do Canadá) a Vladivostok (no extremo leste russo)”. Combinaram também que, em 2019, no 50.º aniversário da chegada do homem à Lua, EUA e Rússia fariam missão conjunta tripulada até Marte.

Inimigos

O breve experimento russo com a democracia liberal teve fim com a chegada de Vladimir Putin ao poder, em 2000. E, com ela, esse sonho de harmonia entre a Rússia e o Ocidente. Regimes autoritários precisam de inimigos.

Os EUA ainda são superiores militar e tecnologicamente à Rússia e à China. Mas, se não há o apetite político por conter os adversários, o efeito dissuasivo dessa superioridade se perde. E o mundo se torna mais próximo de uma guerra mundial.

As declarações de Donald Trump sobre a Otan são uma lição para quem imagina países como se tivessem posição fixa, independente de governos. Sob Trump e sob Joe Biden, os EUA tomam rumos opostos, com vastas consequências para a ordem internacional. Embora países tenham interesses, são governados por políticos, e as visões até dentro de um governo podem divergir drasticamente.

Em comício na Carolina do Sul, no dia 3, Trump contou que, durante uma cúpula da Otan, disse ao presidente de um país-membro que, se ele ficasse “inadimplente”, não o protegeria e encorajaria os russos a fazer o que quisessem.

A discussão na Otan não gira em torno de “inadimplência”. Depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2014, os membros da aliança concordaram em destinar ao menos 2% dos respectivos PIBs à defesa. Na época, apenas três atingiam essa cifra. Este ano, 18 dos 31 países devem alcançá-la, e pela primeira vez o total dos gastos chegará a 2% da soma dos PIBs.

Quando era presidente, Trump ameaçou não honrar os compromissos de defesa mútua com os aliados europeus, Japão e Coreia do Sul. Os dois países asiáticos aumentaram os valores que pagam pela manutenção de tropas e armas americanas em seus territórios.

O ex-presidente Donald Trump, à esquerda, e o presidente Joe Biden, candidato democrata, participam de debate presidencial em 2020. Foto: AP Photo/Patrick Semansky, arquivo

É justo que aliados ricos invistam mais em sua defesa em vez de sobrecarregar os contribuintes americanos. O problema está na forma de cobrar isso. Não faz bem para o moral das Forças Armadas – e para os pais dos soldados americanos – tratá-las como se fossem um grupo mercenário que vende seus serviços.

A Otan nasceu da constatação, depois da Segunda Guerra, de que a Europa Ocidental não tinha condições de se defender de uma potência expansionista como a Alemanha nazista ou a União Soviética sem ajuda americana. E de que a Europa protege os EUA dessas ameaças. Não se trata de favor.

Apoio

Biden chamou a bravata de Trump de “tola, vergonhosa, perigosa e antiamericana”. Mas o ex-presidente está alinhado com o eleitorado conservador. Em pesquisas do Instituto Gallup, a fatia dos republicanos para os quais “os EUA estão fazendo demais para ajudar a Ucrânia” saltou de 43% em agosto de 2022 para 62% em outubro; a de independentes, de 28% para 44%. Entre os democratas, a proporção continuou baixa, subindo de 10% para 14% no período; entre os americanos em geral, de 24% pra 41%.

As divergências sobre as políticas externa e de defesa dos EUA, como de qualquer outro país, são uma constante na história. Entre 1989 e 1991, período da queda do Muro de Berlim, da unificação da Alemanha e da dissolução da União Soviética, o então secretário de Estado americano James Baker era a favor de oferecer garantias ao presidente soviético Mikhail Gorbachev de que a Otan não expandiria para o Leste. Já o conselheiro de Segurança Nacional, Brent Scowcroft, e o secretário de Defesa, Dick Cheney, eram contra.

O mesmo acontecia no governo do então chanceler alemão Helmut Kohl. Seu ministro de Relações Exteriores, Hans-Dietrich Genscher, também queria oferecer espontaneamente essas garantias ao seu colega russo, Eduard Shevardnadze. Numa insólita aliança, o embaixador da Alemanha Ocidental em Moscou, Andreas Meyer-Landrut, em tese subordinado a Genscher, e o assessor de Segurança Nacional, Joachim Bitterlich, mobilizaram-se para neutralizar essas garantias.

Visões

No fim, prevaleceu a visão de que a garantia não era necessária, e ela nunca foi formalizada. Gorbachev não estava na posição de impor condições. As economias da União Soviética e da Alemanha Oriental estavam em frangalhos, as prateleiras das lojas, vazias, e Gorbachev passou pela humilhante situação de pedir ajuda financeira a Baker e a Kohl.

No próprio governo soviético, as visões eram divergentes. Gorbachev aceitou a proposta do então presidente George Bush (pai), na cúpula de Helsinque de setembro de 1990, de que os alemães decidissem a qual aliança de defesa a Alemanha unificada deveria pertencer, desde que o país continuasse desnuclearizado.

O Acordo de Helsinque de 1975, do qual a União Soviética era signatária, garantia liberdade de adesão à Otan e ao Pacto de Varsóvia para todos os países. Claro que, no contexto da guerra fria, essa escolha na prática não existia.

A posição de Gorbachev desencadeou uma rebelião na delegação soviética. Os assessores de política externa, Valentin Falin, e de Segurança Nacional, marechal Serguei Akhromeyev, discordaram explicitamente do líder soviético.

Um ano depois, o marechal participaria do fracassado golpe contra Gorbachev e se suicidaria. Uma vez desfeita a União Soviética, o presidente russo, Boris Yeltsin, reuniu-se com Bush em Camp David em fevereiro de 1992. Eles celebraram o fim da Guerra Fria e o ingresso da Rússia em uma aliança de defesa que, nas palavras de Yeltsin, iria “de Vancouver (na costa oeste do Canadá) a Vladivostok (no extremo leste russo)”. Combinaram também que, em 2019, no 50.º aniversário da chegada do homem à Lua, EUA e Rússia fariam missão conjunta tripulada até Marte.

Inimigos

O breve experimento russo com a democracia liberal teve fim com a chegada de Vladimir Putin ao poder, em 2000. E, com ela, esse sonho de harmonia entre a Rússia e o Ocidente. Regimes autoritários precisam de inimigos.

Os EUA ainda são superiores militar e tecnologicamente à Rússia e à China. Mas, se não há o apetite político por conter os adversários, o efeito dissuasivo dessa superioridade se perde. E o mundo se torna mais próximo de uma guerra mundial.

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