A web completou 25 anos este ano, o Google foi criado há 17, o Facebook nasceu em 2004 e o Orkut no mesmo ano, mas vai morrer antes de chegar à adolescência, vítima dos internautas volúveis que se enamoraram do Facebook. A morte do Orkut, que há muito é ignorado por americanos e europeus, mas chegou a ser o maior site de mídia social brasileiro, foi anunciada pelo proprietário, Google. Mais um produto que o Google tira do ar sem cerimônia, deixando órfãos os que depositaram ali seus arquivos e reminiscências. É possível transferir fotos para o Google +, mas a corporação não forneceu nenhum mecanismo que pudesse facilitar a transferência do arquivo em outra mídia social.
Está terminando o período imberbe dos gigantes da internet e, à medida que a voz engrossa, pode acabar também a idade da inocência do internauta. Dois fatos recentes nos Estados Unidos dão uma medida desse rumo à maioridade.
Primeiro, a boa notícia: no dia 25 de junho, os nove juízes da Suprema Corte dos EUA decidiram, por unanimidade, que o conteúdo digital dos telefones celulares deve ser protegido de buscas da polícia, tanto quanto um domicílio privado. A Quarta Emenda da Constituição, que, desde 1792, protege os cidadãos contra buscas e apreensões não razoáveis, afinal se torna aliada dos cidadãos digitais. No faroeste da infância dos smartphones, policiais americanos tomavam os celulares de suspeitos e usavam qualquer conteúdo como prova. Num caso que chegou à Suprema Corte, uma infração de trânsito se transformou num julgamento por associação a gangues por causa de fotos arquivadas no celular do suspeito. Conservadores e liberais na instância máxima do Judiciário americano se uniram para dar ao gadget mais onipresente da nossa era status semelhante ao de uma gaveta de diários e documentos pessoais. Vasculhar nossos SMS’s, nossos selfies e e-mails, só com mandado judicial.
Agora, a má notícia: a tecnologia nas mãos privadas continua à frente da Justiça, como mostra o escândalo causado pela revelação de uma experiência behaviorista feita pelo Facebook sem notificar seus usuários. Durante uma semana, em 2012, o algoritmo do site de Mark Zuckerberg foi alterado para manipular o conteúdo dos feeds de notícias de 689.003 membros. Uns recebiam notícias positivas, outros recebiam notícias ruins. A experiência resultou num estudo na prestigiada publicação acadêmica Proceedings of the National Academy of Sciences, assinado por cientistas do Facebook, da Universidade de Cornell e da Universidade da Califórnia. O título do estudo é Evidência Experimental de Contágio Emocional em Massa através de Redes Sociais. Os cientistas do Facebook queriam saber se a exposição a notícias negativas influenciava as postagens dos internautas. O resultado já foi espinafrado por outros cientistas por técnicas de amostragem. Mas esse não o centro da controvérsia.
Para uma pesquisa que envolve seres humanos bater à porta de qualquer publicação científica, ela precisa atender a critérios básicos, alguns deles estabelecidos depois do julgamento dos nazistas em Nuremberg. O consentimento individual da pessoa que é objeto da pesquisa é um desses critérios. Cada pessoa, no caso o membro do Facebook, teria que ser informada do fato de estar sendo usada numa experiência; em que consiste a experiência; dar o consentimento expresso para participar.
O consentimento estaria nos termos de serviço de qualquer pessoa que abre uma conta no Facebook. Está lá. O website pode usar suas informações “para operações internas, que incluam correção de erros, análise de dados, testes, pesquisa, desenvolvimento e melhoria do serviço”. Um detalhe problemático: essa frase foi introduzida quatro meses depois da realização do estudo em que membros do Facebook foram usados como cobaias emocionais.
Mas esse consentimento nos termos de serviço não altera a opinião de Charles Seife, autor do recém-lançado Virtual Unreality: Just Because the Internet Told You So, How Do You Know It’s True? (Irrealidade virtual: só porque a internet disse, como você sabe que é verdade?). “O consentimento informado”, diz Seife, “pressupõe a consciência clara de estar participando de um estudo e não ter clicado em termos de serviço em outra ocasião.”
Charles Seife é professor de jornalismo da Universidade de Nova York, autor de Os Números não Mentem (2012, Zahar), Decodificando o Universo (2009, Rocco) e Alfa e Ômega - A Busca pelo Início e o Fim do Universo (2007, Rocco). Em Irrealidade Virtual, ele explora a derrubada da fronteira entre fato e ficção na internet: a usina de rumores, os falsos personagens, o contágio da desinformação e a velocidade que torna qualquer esforço de aferir a veracidade mais difícil. Não se trata de livro ludita ou nostálgico, e sim de um alerta e um pequeno manual para fortificar nosso ceticismo.
Seife não pode deixar de notar o tom absurdo da reação da executiva número 2 do Google, Sheryl Sandberg, autora de Faça Acontecer: Mulheres, Trabalho e a Vontade de Liderar. Ela foi surpreendida pelo questionamento da experiência que se espalhou no próprio Facebook, não pediu desculpas pela infração ética, mas disse que o problema era de comunicação. “Não era nossa intenção entristecer vocês”, concluiu. “Esse era exatamente o objetivo do estudo, entristecer e alegrar pessoas!”, exclama Seife. “Mas não me confesso surpreso. O Facebook trata seus membros como cobaias. O que me perturba mais é ver cientistas envolvidos ou defendendo a experiência.”
Na quinta-feira, um grupo de defesa da privacidade, o Electronic Privacy Information Centre, arquivou uma queixa formal junto à FTC, Comissão Federal de Comunicações americana, pedindo uma investigação sobre manipulação psicológica de dados por pesquisadores de Cornell e da Universidade da Califórnia que participaram da análise da experiência do Facebook. O governo inglês deu início a uma investigação para determinar se o website violou as leis de privacidade.
O estudo sobre o contágio de otimismo ou pessimismo levanta outra dúvida: monopólios como o Google e o Facebook têm a sua disposição uma quantidade de informações pessoais numa escala que pode torná-las irresistíveis para qualquer esforço de pesquisa, tenha ele origem na comunidade científica, no desejo de otimizar lucros ou até de promover campanhas. Imaginem se, daqui a 20 anos, Mark Zuckerberg se candidatar a governador da Califórnia. Não há lei eleitoral no momento que o impeça de usar o que sabe sobre os eleitores.
Mas Charles Seife lembra que não devemos falar num futuro orwelliano, e sim no presente e no passado recente. Em novembro de 2010, no dia das eleições legislativas intermediárias, o Facebook fez outra experiência sobre contágio social. Pôs banners diferentes no topo da página inicial dos membros. Um banner, exibido para 61 milhões de membros com a frase “Hoje é dia de eleição”, fornecia links para locais de votação, além de fotos dos amigos que tinham votado. Outro grupo de 600 mil usuários viu apenas banners sobre a eleição, mas sem imagens dos amigos que votaram. “Imagino que, como votar é algo que devemos encorajar, a experiência não foi criticada”, diz Seife. “Eles se apresentam como uma força para o bem.”
Essa postura panglossiana em que bilionários digitais se apresentam como arautos de um mundo grátis e beático, enquanto manipulam e extraem valor comercial de cada gota de informação fornecida por cidadãos, é uma das fontes da irrealidade virtual denunciada por Charles Seife, que não poupa seu sarcasmo para slogans como “Não faça o mal”, do Google. Ele lembra que, há quase uma geração, estamos fazendo uma troca entre a segurança e a conveniência. Mesmo a minoria consciente de ter feito concessões sobre a privacidade não compreende a extensão do uso feito de suas informações. “O típico empresário do Vale do Silício”, diz, “o homem que adorávamos detestar era Bill Gates. Ele atropelava a propriedade intelectual e competia com uma ferocidade assustadora. Era um monopolista da velha guarda. Essa geração nova cresceu sob sua sombra.” Mas a galinha dos ovos de ouro hoje não é o software, um sistema operacional como Windows ou uma peça de hardware, como o iPad. “O valor está na troca de informações”, diz Seife, “e o poder está extremamente concentrado. Está na hora de os donos da nossa informação pararem de fingir que são nossos benfeitores.”
O cenário político americano hoje exibe libertários intransigentes de direita inspirados por Ayn Rand, a filósofa do objetivismo e autora de A Nascente e a Revolta de Atlas. “Um dos motores desse ressurgimento”, diz Seife, “é o Vale do Silício e a ideia de que o capitalista inovador precisa ser deixado em paz, não importa suas iniciativas.”
O estudo do Facebook que manipulou notícias para influenciar uma visão negativa ou positiva do mundo não fez, que se saiba, nenhuma vítima. No máximo, uma pessoa deprimida pode ter se sentido um pouco mais triste durante uma semana.
Mas a gritaria não pode ser explicada apenas pela questão ética ou pela promiscuidade entre acadêmicos e comerciantes. À medida que o apetite insaciável dos monopólios digitais vai sendo exposto ao público, nada impede que uma nova geração de inovadores venha cortejar o internauta cansado de ser tratado não como consumidor, mas como produto.