A vice-presidente americana, Kamala Harris, aceitou a nomeação democrata para disputar a presidência num discurso sóbrio e dentro do script. Sem ter o mesmo talento para oratória do casal Obama, ou o carisma de seu candidato a vice, Tim Walz, que brilharam nas noites anteriores da convenção do partido, a vice-presidente fez um pronunciamento sem erros, mesclando sua história pessoal com a visão que tem para seu governo.
O principal desafio para a vice-presidente nos próximos 70 dias que a separam da eleição é manter a empolgação gerada pela troca na chapa democrata, sobretudo entre mulheres, jovens, latinos e negros, que a levou a subir nas pesquisas, tanto a nível nacional quanto nos Estados-pêndulo que decidem a eleição no colégio eleitoral.
Por isso, Kamala discursou com ‘o regulamento debaixo do braço’. Foi um discurso padrão de um candidato presidencial. Ela contou como cresceu numa família de classe média em Oakland, na Califórnia, na época da luta pelos direitos civis, como se tornou advogada e depois procuradora. Falou muito da mãe, uma imigrante indiana que criou ela e a irmã, e pouco do pai, um imigrante jamaicano, no que chamou de jornada improvável que pode levá-la à Casa Branca.
A candidata também sublinhou as principais vitórias jurídicas da carreira, primeiro no combate a violência doméstica como procuradora distrital, e depois denunciando fraudes bancárias e empresariais, como procuradora estadual.
O marketing da alegria
A campanha de Kamala tem dois slogans como eixos principais: ‘Freedom’ (liberdade), e ‘We are not going back’ (não vamos retroceder), que se traduzem em cinco pontos principais que preocupam os americanos: a economia, a proibição do aborto, a imigração ilegal e a proteção da democracia.
Um terceiro slogan, ‘joy’ (alegria) é usado por ela para se contrapor ao rival, o republicano Donald Trump, contra quem desferiu dois ou três ataques diretos.
Traumatizados com as performances ruins de Biden, os democratas planejaram meticulosamente a convenção. Desde segunda-feira, cada orador que subiu ao palco, bateu em um desses pontos. Biden fez uma defesa da recuperação econômica pós-pandemia e da queda no preço de remédios, sobretudo para diabetes. Hillary Clinton falou da luta das mulheres pela legalização do aborto, e o casal Obama ressaltou as críticas a Trump.
A Convenção também procurou se diferenciar do encontro republicano, onde figuras partidárias e da base estiveram bastante ausentes. Senadores, governadores e deputados prestaram lealdade a Kamala e até alguns republicanos rompidos com Trump, como o deputado Adam Kinzinger, subiram ao palco.
‘Eles estão malucos’
Os ataques mais diretos de Kamala a Trump vieram quando ela falou da proteção da democracia americana e da legalização do aborto. A vice-presidente disse que o rival ‘não é sério’, mas que o retorno dele à presidência traria sérias consequências para o país.
Sobre aborto, ao comentar planos dos republicanos para endurecer as regras para interrupção da gravidez no país. foi mais longe: “eles estão malucos”.
É no entanto nas suas propostas de governo que Kamala precisava mostrar mais consistência, já que tem sido criticada por falar pouco do que pretende fazer se chegar à Casa Branca. Falou em criar uma “economia de oportunidade”, com corte de impostos para a classe média e incentivos para pequenos negócios, com acesso a crédito para empresas e para compra de casas populares.
No tema da imigração, prometeu ressuscitar o acordo bipartidário para reformar a segurança na fronteira, que foi torpedeado por Trump este ano. O republicano temia que o pacto poderia favorecer os democratas na eleição e orientou as bancadas no Congresso a desistirem dele.
“Me nego a fazer política com nossa segurança de fronteira, como Trump fez esse ano ao derrubar a lei migratória que negociamos no Congresso, e se for eleita assinarei essa lei”, disse. “Vou reformar nosso sistema migratório. Podemos criar um método de acesso a cidadania e tornar a fronteira segura.”
Um pé em cada canoa
Na política externa, talvez o tema mais sensível para a vice-presidente com a base democrata, tentou manter um pé em cada canoa. Reafirmou o compromisso inabalável com Israel após os ataques do Hamas e depois prometeu lutar pelo fim da guerra para pôr um fim ao sofrimento dos palestinos em Gaza.
Durante a convenção, alguns protestos pró-palestina foram registrados em Chicago, e ao menos 55 pessoas foram presas. Além disso, comunidades muçulmanas em Michigan podem ser decisivas numa eleição apertada e um apoio mais direto a Israel poderia aliená-los.
Ela também tentou atrelar a questão da liberdade a diversos temas. Dos identitários, como aborto e gênero, à mudança climática e a defesa da democracia. “Outras liberdades estão em risco com Trump: a de viver em segurança, a de respirar um ar livre e a de amar quem você quiser, além da liberdade de votar, que é a mãe de todas as liberdades”, disse.
Agora, a campanha começa de fato. No dia 6 de setembro, começa a votação antecipada pelo correio ou em trânsito em alguns Estados, e, no dia 10, Trump e Kamala ficarão frente a frente no primeiro debate entre os dois.
O desafio de Kamala é convencer o eleitor indeciso de que sua agenda econômica pode funcionar. O de Trump é parar de perder tempo com ataques e picuinhas pessoais e mostrar que pode alcançar os eleitores moderados.