O presidente Luiz Inácio Lula Da Silva retorna nesta sexta-feira, 15, a Cuba como chefe de Estado pela primeira vez em 13 anos. Na ilha, Lula participará da cúpula do G-77, que reúne países emergentes e do Sul Global, em mais um capítulo de sua aproximação com potências emergentes lideradas pela China. Ao circular pelo Malecón, o petista encontrará uma realidade muito distinta da de fevereiro de 2010, quando realizou sua última visita oficial a Havana.
Na ocasião, Cuba encontrava-se em um complexo processo de transição política e econômica conduzido por Raúl Castro, no poder desde que Fidel Castro, com a saúde frágil, passou o controle do país ao irmão. Raul iniciou tímidas — mas importantes — concessões para o setor privado. Os subsídios de petróleo proporcionados pela Venezuela de Hugo Chávez mantinham viva uma economia agonizante. E alguma flexibilização no acesso à internet possibilitou o contato de uma nova geração com o mundo exterior.
Na visita que começa hoje e dura apenas dois dias, no entanto Lula deve encontrar um cenário profundamente diferente na ilha caribenha, comparado a 2010. Sem os Castro no poder, sem o petróleo chavista e com o turismo, sua principal fonte de dólares, duramente afetado pela pandemia, a ditadura cubana enfrenta a pior fase na sua crônica crise econômica dos últimos trinta anos, e busca desesperada por alianças do passado para manter vivo um sistema em decadência.
Um novo período especial?
Desde 2017, a política monetária e o baixo crescimento do PIB nacional têm impactado fortemente na qualidade de vida da maior parte da população. E agora o fornecimento de eletricidade irregular, alta inflação, escassez generalizada de gasolina, escassez de alimentos e falta de divisas para importar produtos básicos do exterior têm aumentado o inconformismo dos cidadãos, que sentem em carne e osso a amarga volta de um fantasma do passado: a fome do “Período Especial” — crise que impactou severamente à ilha na década de 1990, após a queda da União Soviética.
A alta dos preços e a escassez de insumos básicos sob o governo de Miguel Díaz-Canel, que substituiu Raúl Castro em 2018, foi agravada pelo impacto da covid-19 no turismo local. Segundo dados do governo cubano, o número de turistas no país, que foi de 4,3 milhões de pessoas em 2019, ainda não se recuperou. No ano passado foram 1,7 milhão, bem abaixo da meta de 2,5 milhões estipuladas pela ditadura.
Com isso, o país perdeu uma importante fonte de moeda forte. Durante décadas, o país teve duas moedas: o peso cubano (CUP) e uma moeda conversível cujo valor ficava mais próximo do dólar comercial (CUC). Em 2021, o regime aprovou um plano que deu início à unificação monetária, mas com a queda das reservas nacionais de divisas e o baixo desempenho do setor turístico, a inflação disparou. Em agosto, por exemplo,1 dólar era equivalente a 230 pesos cubanos no câmbio informal em Havana, enquanto o câmbio oficial do governo era de 120 pesos por dólar.
“Houve nos últimos anos um grande declínio nas condições de vida. O governo perdeu a capacidade de sustentar este país”, disse o historiador Boris González Area em entrevista ao Estadão.
“Desde antes da chegada de Miguel Diaz-Canel ao poder, a precariedade dos serviços essenciais, os problemas para encontrar alimentos e a falta de acesso a medicamentos contribuíram para o declínio da economia nacional. Em Cuba, muitas pessoas morreram por falta de antibióticos comuns na pandemia; antibióticos que não estavam disponíveis nas farmácias. Nunca houve uma escassez tão grande”, acrescenta González, que mora no bairro Vedado, perto do centro de Havana.
Fuga em massa
Uma das principais consequências dessa crise econômica em Cuba foi um novo êxodo migratório, maior dos últimos 50 anos, com números superiores ao êxodo de Mariel, na década de 1980, e à crise dos balseiros de 1994.
Desde 2021 até o momento, mais de 250 mil cubanos migraram para os Estados Unidos, de acordo com dados do governo americano. O número, qualificado como conservador por analistas entrevistados pelo Estadão, representa 2% dos 11 milhões de habitantes do país.
De acordo com o projeto Migrantes Desaparecidos, da Organização Internacional para Migração (OIM), pelo menos 70 cubanos morreram até agosto deste ano afogados no mar, tentando chegar às costas americanas em balsas improvisadas. No Brasil, o número de solicitações de refúgio de cubanos também tem aumentado. Só em 2022, mais de 4.200 solicitações foram registradas pelas autoridades brasileiras.
“Atualmente, os cubanos passam muito mais tempo pensando onde vão encontrar comida para a próxima refeição”, disse González. “As condições de vida sempre foram precárias em Cuba, mas agora tem muita mais gente na miséria”.
Em maio, durante uma apresentação de 1 hora de duração diante de deputados nacionais, o ministro da Economia de Cuba, Alejandro Gil, admitiu não haver soluções rápidas para a crise, culpando o baixo fluxo de moeda estrangeira na ilha para pagar as importações de combustível, alimentos e produtos agrícolas. “Se não conseguirmos produzir, não vamos ter”, disse ele, dando ênfase à necessidade nacional de garantir o próprio abastecimento de insumos e alimentos.
Uma nova dissidência
Enquanto a economia piora, as reclamações da população aumentam. Em um país estritamente controlado por uma ditadura militar, a dissidência nunca foi bem-vinda, mas de acordo com a cientista política Micaela Hierro, que é presidente da organização para a promoção da democracia e defesa dos direitos humanos Cultura Democrática, nos últimos anos tem sido recrudescida a repressão contra os dissidentes em Cuba, “fundamentalmente contra artistas independentes”.
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“Mas com o tempo, e com o aumento do acesso à internet, o aparato de propaganda que dava a entender aos cidadãos que o mundo estava pior do que Cuba, foi se desmoronando aos poucos. O mito, que já era contraditório para os cubanos de a pé, caiu totalmente. E isso gerou uma série de revoltas inéditas na nação”, afirmou ela.
“A internet, as redes sociais, possibilitaram mobilizações em massa nunca antes vistas. E isso gerou uma reação bastante violenta por parte do estado”, completou a cientista política.
Crise econômica e repressão à arte geraram revoltas inéditas
Na noite de 26 de novembro de 2020, às 20h09, o som da madeira estalando anunciou o arrombamento da porta. Na casa do centro de Havana — uma envelhecida construção barroca de dois andares, com uma alta porta de madeira composta por duas folhas e uma janela principal protegida por decoradas barras de metal — a invasão pressagiou a desgraça.
Uma dúzia de agentes da Seguridad del Estado entrou no local, correndo em frenesi atrás dos seus alvos: quatorze homens e mulheres do grupo civil dissidente Movimiento San Isidro (MSI), que haviam iniciado uma manifestação pacífica pela liberação do rapper Denis Solís. Ele tinha sido condenado previamente em um julgamento considerado arbitrário a oito meses de prisão pelo suposto delito de “desacato” contra um policial que adentrou-se ilegalmente na sua propriedade para intimidá-lo, no exato momento em que ele criticava o governo em uma transmissão ao vivo pelo Facebook. Cinco dos manifestantes estavam realizando uma greve de fome que, antes de ser interrompida, estava no seu décimo dia. Todos foram presos pela força — e o protesto aniquilado.
Poucas horas após os violentos acontecimentos, grande parte do país — mais conectado à internet do que nunca — assistira com estupor nas redes sociais os vídeos daquela noite. A sensação de horror corria pelas ruas. Cuba já não era a mesma. No início da tarde de 27 de novembro, dezenas de artistas começaram a se reunir em frente ao Ministério da Cultura, na capital cubana, cercando a entrada do edifício.
Algo inédito estava ocorrendo. Ninguém convocou os artistas para realizar uma manifestação nesse lugar, mas todos sabiam o motivo pelo qual deviam se dirigir até lá. Todos haviam escutado o que tinha acontecido na fatídica noite anterior, e haviam acompanhado, dia após dia, o desenrolar do protesto do MSI. “Todos eles experimentaram, em diversos níveis, de uma ou outra maneira, a sensação de terror que tomava conta da nação”, disse Micaela Hierro.
Antes da meia noite, havia mais de duzentas pessoas frente ao prédio, no que logo tornaria-se um dos maiores protestos espontâneos das últimas décadas em Cuba. O ministro da Cultura, pouco acostumado a lidar com a sociedade civil, foi autorizado pelo governo a “estabelecer um diálogo” com os manifestantes para acalmar a situação e frear a escalada da manifestação. Alguns dias após os supostos diálogos, o Estado já tinha liberado a maioria dos integrantes do Movimento San Isidro.
Mas na sequência, aumentaram os ataques contra participantes do ato de 27 de novembro, e ampliou-se a vigilância e a repressão individuais à dissidência. “Uma nova resistência havia surgido em Cuba, e com ela, milhões de pessoas descobriram que era possível, de fato, se manifestar. Não havia ocorrido algo assim em décadas na ilha”, disse a especialista.
A força da repressão
Para Coco Fusco, artista, historiadora de arte e ativista cubano-americana, não havia existido, desde o século anterior, uma política de repressão tão forte contra os artistas e intelectuais cubanos como aquela que o país vivencia desde 2018. “Muitos artistas têm sido expulsos do país, forçados ao exílio, presos. O que está ocorrendo em Cuba não tem justificativa”, disse ela ao Estadão.
A luta pela liberdade artística na ilha havia-se intensificado naquele ano com uma força única em meio a uma série de mudanças constitucionais e simbólicas que prometiam preparar um novo futuro para Cuba — um futuro que, de fato, permanecia incerto para a maioria da população. Somente um dia após ser designado por Raúl Castro como o novo presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel assinou em 20 de abril de 2018 uma nova lei que prometia regulamentar radicalmente a arte na ilha: o Decreto 349.
Sob este decreto — descrito por ONGs protetoras dos direitos humanos, como Anistia Internacional, como uma “perspectiva distópica para os artistas cubanos” —, todas as pessoas que exerciam atividades artísticas em Cuba, incluindo coletivos e artistas independentes, seriam proibidas de realizar tais projetos em espaços públicos ou particulares sem a aprovação prévia do Ministério da Cultura. Qualquer pessoa ou instituição que contratasse artistas sem a respectiva autorização poderia ser sancionada, e aqueles que praticavam arte sem a aprovação prévia correriam o risco de ter seus materiais e obras expropriados ou mesmo de serem penalizados. Para muitas pessoas, a aprovação deste decreto foi um golpe baixo que pegou o país de surpresa.
A nova onda de repressão estatal provocou a revolta pública de milhares de ativistas locais e exilados. Artistas como Luis Manuel Otero Alcántara foram detidos inúmeras vezes por realizar manifestações com o slogan ‘’No al Decreto 349′' (‘’Não ao Decreto 349′’). Em 11 de julho de 2021, milhares de pessoas saíram para as ruas em todo o país para protestar contra o regime, no meio da crise sanitária do Coronavírus e da crise econômica.
Mas a resposta do regime foi brutal. O Estado mobilizou suas forças especiais e o exército para acabar com os protestos; centenas de pessoas foram abduzidas, feridas, desaparecidas, julgadas em juízos sumários a vários anos de prisão sem terem direito a um advogado. As delegacias de polícia ficaram cheias de manifestantes e de mães das pessoas desaparecidas procurando informações sobre seus filhos. O novo ditador, Miguel Díaz-Canel, forçou funcionários estatais a fecharem as ruas e atacarem os manifestantes. E aqueles identificados posteriormente pela Seguridad del Estado como partícipes dos protestos, foram pegos nas suas próprias casas, um por um. Ao todo, mais de mil pessoas foram presas.
Agora, dois anos depois dos maiores protestos das últimas décadas, familiares e amigos dos presos políticos tentam encontrar espaços legais para reclamar pelos direitos dos manifestantes, enquanto outros não encontram solução além do exílio. Para quem fica, o maior saldo da repressão tem sido a imposição do silêncio.
“O estado inventou uma série de acusações falsas para julgar os manifestantes. Estamos falando em muitos casos de adolescentes de 16, 17 anos, que saíram às ruas para expressão opiniões”, afirmou Coco Fusco. “Eu estou em contato com muitos desses presos, eu conheço a situação em que eles estão. É uma situação deplorável”.
Luis Manuel Otero Alcántara e o cantor Maykel Castillo, ambos fundadores do Movimiento San Isidro, são dois dos jovens que estão presos desde 11 de julho de 2021, condenados a cinco e nove anos de prisão sob as acusações de desacato e ultraje aos símbolos da pátria. Em julho deste ano, Alcántara se declarou novamente em greve de fome e sede para exigir sua liberdade e a de outros presos políticos. Mas o regime cubano nega sua condição. De acordo com ONG Prisioners Defenders, até 2023, há registro de pelo menos 1.047 pessoas em condição de presos políticos em Cuba.
“Eu entendo a solidariedade do presidente Lula com Cuba e seu interesse em propor novos acordos com a ilha, mas ele deveria entender, melhor que ninguém, o que é ser preso político”, disse Coco. “Em nome da justiça, Lula precisa se sensibilizar com a situação dos presos políticos em Cuba e pedir sua liberação. Muitas pessoas inocentes estão cumprindo condenações injustas e Lula precisa escutar eles”.