A onda de pacotes-bomba contra democratas e críticos do presidente Donald Trump é o clímax de um longo processo de polarização. A própria eleição de Trump só foi possível graças a essa dinâmica, na qual a política deixou de ser o espaço do debate de propostas e da negociação para se tornar uma luta existencial, em que é preciso aniquilar o outro para não ser aniquilado.
Desde tempos ancestrais, a disputa política combina retórica e sangue. Na obra-prima Júlio César, com base em fatos reais, William Shakespeare recria o discurso do general Marco Antonio no funeral do amigo assassinado. Ao homenagear o imperador, Marco Antonio consegue não só salvar a própria vida, mas voltar o povo contra os assassinos, invertendo a situação política.
Mas a civilização evoluiu, desde então. E evoluir, na política, significa oferecer garantias de proteção aos derrotados, para que eles não encarem a derrota como ameaça existencial. Caso contrário, a disputa não tem fim, e é impossível atingir a estabilidade. É a barbárie.
“A guerra é a continuação da política por outros meios”, escreveu o general prussiano Carl von Clausewitz. Inversamente, a política é a arte de prevenir a guerra. Mas o curso da civilização não é uma reta, e sim uma trilha tortuosa, que muitas vezes nos leva para trás.
Em 1994, depois de amargar oito anos de derrotas em quatro eleições consecutivas, os republicanos conceberam um plano: trazer os temas morais para o centro da política.
A maioria dos americanos era contra o aborto e o casamento de homossexuais, por exemplo, mas os democratas, defensores desses direitos, conseguiam evitar esses temas nas campanhas, dominadas por questões econômicas e sociais. Nas eleições de 1994, os republicanos mudaram essa história e ganharam a Câmara.
Quem liderou esse movimento foi o deputado Newt Gingrich, que, como presidente da Câmara entre 1995 e 1999, comandou as obstruções das votações do orçamento do governo do democrata Bill Clinton, paralisando a administração federal. A política virou guerra. Gingrich foi o primeiro dirigente republicano a apoiar Trump, antes das primárias de 2016, quando a cúpula do partido lhe dava as costas.
A primeira reação de Trump aos atentados foi de estadista. Na Casa Branca, ele pediu na quarta-feira a união dos americanos, condenou os ataques como “abomináveis” e prometeu mobilizar o governo para encontrar e punir os responsáveis.
No mesmo dia, Trump fez um comício no Wisconsin e responsabilizou a imprensa pelo clima de hostilidade no país. Na manhã seguinte, tuitou: “Grande parte da raiva que vemos hoje em nossa sociedade é causada pelas reportagens propositadamente falsas e imprecisas da grande mídia, à qual me refiro como fake news”.
Finalmente, na sexta-feira, ele acusou a CNN, cuja redação foi um dos alvos de pacote-bomba, endereçado ao ex-diretor da CIA John Brennan, crítico do presidente. Trump não permite que repórteres do canal, um dos maiores do mundo, façam perguntas em suas entrevistas coletivas.
“Engraçado como a TV de baixa audiência CNN e outros podem me criticar à vontade (…), mas quando eu os critico eles ficam loucos e gritam: ‘Não é presidencial’”, Trump tuitou na sexta-feira. É uma queixa reveladora: Trump parece não entender a diferença entre um presidente e um jornalista.
Neste momento dominado pela lógica tribal e binária, preciso lembrar que fiz a mesma crítica a um presidente de esquerda, Hugo Chávez, em um programa Roda Viva em 2005, disponível na internet: “O senhor agudizou uma polarização com essa retórica contra a elite, essa divisão que o senhor faz, a elite de um lado, o povo do outro. No mundo real existem realmente os bons, que são o povo, e os maus, que é a elite? Será que é papel de um presidente polarizar um país?”