THE WASHINGTON POST - Charles de Gaulle, o histórico líder francês que inaugurou a Quinta República do país, acreditava em uma presidência forte que ancorasse um Estado estável. A constituição que ele e seus aliados implementaram previa eleições diretas por sufrágio universal para a presidência, organizadas em dois turnos. Ao fazer isso, o poder executivo na França poderia ser isolado dos caprichos da política parlamentar e partidária. Além disso, o segundo turno provavelmente ajudaria a proteger a república de adversários extremistas, que em teoria nunca conseguiriam obter a maioria dos votos em uma disputa de duas pessoas.
Essa lógica ainda pode valer mais de seis décadas depois, enquanto os eleitores franceses aguardam o segundo turno de 24 de abril entre o presidente Emmanuel Macron e a candidata de extrema direita Marine Le Pen. Mas pode não valer mais.
Le Pen – que terminou, como esperado, em segundo no primeiro turno no domingo 10, três pontos atrás de Macron – provavelmente não enfrentará em duas semanas a mesma derrota esmagadora que Macron impôs a ela, cinco anos atrás. Macron emergiu então como um jovem centrista dissidente que fez campanha com uma plataforma de “nem esquerda nem direita”. Em 2017, uma coalizão de eleitores de todo o espectro político se uniu para dar a ele uma vitória retumbante sobre Le Pen, descendente de um movimento outrora enraizado no neofascismo e na violência antidemocrática.
Novo cenário
As pesquisas agora sugerem uma disputa muito mais acirrada, com muitos da direita francesa e potencialmente até alguns eleitores da extrema esquerda votando em Le Pen. As abstenções de um grupo crescente de pessoas desencantadas com suas opções e cansadas de Macron também podem aumentar as chances de Le Pen. Macron, longe de ser um forasteiro revigorando o Estado francês, aparece para muitos de seus oponentes como o agente distante de uma elite rica e guardião de um status quo frágil que precisa de reforma.
Le Pen trabalhou duro para desintoxicar a imagem dela e de seu partido, apresentando-se como uma populista econômica empática. Ela também foi um pouco ajudada pelo surgimento do seu rival de extrema direita, o ultranacionalista Eric Zemmour, cuja retórica incendiária serviu para fazê-la parecer mais moderada.
Entenda o segundo turno
“Le Pen evitou em grande parte enfatizar suas propostas mais controversas e, em vez disso, concentrou-se em ecoar as preocupações populares sobre a economia e o aumento da inflação”, explicou Pierre Mathiot, diretor da Sciences Po. “Mas em sua essência, muitas das posições de Le Pen são tão radicais quanto cinco anos atrás. Na semana passada, ela prometeu multar os muçulmanos que usarem lenços na cabeça em público”.
“Para muitos franceses, o nome Le Pen não é mais visto com desdém”, escreveu Kim Willsher, do jornal The Guardian, sobre a candidata da extrema direita. “Macron enfrentará a maior luta política de sua carreira para mantê-la fora do Palácio do Eliseu”.
Partidos tradicionais perdem espaço
A aparente reabilitação de Le Pen também se deve à própria trajetória política de Macron. Embora as facções tradicionais do país – os socialistas de centro-esquerda e os republicanos de centro-direita (portadores do legado político de De Gaulle) – permaneçam relevantes nos votos locais e municipais, eles foram humilhados no cenário nacional, perdendo a maioria de seus eleitores para Macron e seu movimento. Na votação presidencial, eles foram eliminados, somando menos de 7% dos votos, coletivamente.
“Uma reconfiguração completa da política francesa está prestes a ocorrer”, disse Tara Varma, membro sênior de política do Conselho Europeu de Relações Exteriores, em um e-mail. “Começou em 2017, mas agora será finalizado”.
Enquanto isso, mais da metade do eleitorado francês optou por candidatos nos extremos anti-establishment, incluindo Le Pen, Zemmour e o agitador de extrema esquerda Jean-Luc Mélenchon, que terminou pouco abaixo de Le Pen.
“O que está acontecendo é que a esquerda e a direita moderadas estão desaparecendo”, disse Pierre Mathiot. “Macron está no processo de esmagar o centro da política – mas quanto mais ele o esmaga, mais ele dá espaço para as alas radicais.”
Outros analistas argumentam que Macron é, ele próprio, um político de centro-direita. Ele “adotou sistematicamente as posições centrais (da direita dominante), incluindo aposentadoria aos 65 anos, requisitos de trabalho para beneficiários das políticas de bem-estar social, e uma redução no imposto sobre herança. Isso equivale a uma aquisição em grande escala da centro-direita francesa”, escreveu Daniel Cohen, presidente do Conselho de Administração da Escola de Economia de Paris. “Se Macron for reeleito, ele presidirá um partido que encampou o centro, e os republicanos ficarão com migalhas, espremidos entre uma extrema direita ressurgente e um partido governista que pretende devorá-los”.
Interesses franceses
Parte do que está em jogo segue tendências familiares em outros lugares da política da Europa Ocidental – especificamente, o enfraquecimento dos partidos tradicionais em favor de uma cena política mais complicada e fragmentada. Mas na França, diferentemente da Alemanha, a política ambiental defendida pela centro-esquerda ficou em segundo plano em relação à guerra cultural da imigração e identidade nacional. No final de seu mandato, Macron havia se virado fortemente para a direita, desenvolvendo uma legislação contra o “separatismo islâmico” na sociedade francesa, enquanto seus aliados atacavam o “esquerdismo islâmico” nas universidades.
As ansiedades culturais que percorrem a campanha eleitoral não serão fáceis de conciliar. “Quero ser otimista”, disse Shahin Vallée, ex-assessor de Macron agora no Conselho Alemão de Relações Exteriores, ao New Statesman. “Mas é um otimismo de longo prazo – que podemos superar essas tensões e aceitar essa sociedade multi-religiosa e multicultural, o que significa aceitar uma definição diferente de universalismo da que temos agora”.
Por enquanto, porém, a esquerda francesa parece desmotivada e dividida, enquanto o presidente francês pode continuar lutando contra Le Pen em seu terreno. “Macron está jogando um jogo perigoso”, escreveu Didier Fassin, diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales. “Ao absorver os pontos de vista de seus oponentes em sua própria plataforma, ele corre o risco de criar um cenário político perigosamente inclinado para a direita.”
Longe de ser um “baluarte” contra a extrema direita, alertou Fassin, Macron pode acabar “oferecendo uma ponte” para eles.