THE NEW YORK TIMES — Em uma noite chuvosa de primavera, uma jovem mãe iraniana com o braço mutilado, seu marido e sua filha de 3 anos encontraram um traficante de pessoas perto da fronteira do Iraque que lhes deu um ultimato sombrio: garantam o silêncio da criança ou a deixem para trás.
A mãe, Sima Moradbeigi, 26, correu até uma farmácia para comprar à filha um xarope contra tosse. No escuro da noite a família seguiu o traficante para fora do Irã, caminhando por trilhas nas montanhas, em alguns momentos se agachando pela vegetação para evitar guardas que vasculhavam o caminho.
Moradbeigi e seu marido contaram que chegaram em segurança a uma mesquita nos arredores da cidade de Sulaimaniyah, na região do Curdistão, no norte do Iraque. A filha deles, Juan, mal havia se mexido.
A República Islâmica, uma teocracia que surgiu após a revolução iraniana de 1979, nunca foi receptiva às mulheres que se rebelavam contra seus códigos religiosos rígidos de vestimenta e comportamento. Mas os perigos se multiplicaram após uma revolta que começou em setembro, desencadeada pela morte de uma mulher de 22 anos, Mahsa Amini, sob a custódia da polícia religiosa.
As mulheres exerceram papel central nos meses de protestos antigoverno que se seguiram, exigindo nada menos que a abolição do sistema autoritário do clero. O regime acabou por reprimir a maior parte dos protestos, deixando centenas de mortos, segundo entidades de defesa dos direitos humanos.
Algumas mães concluíram que seria melhor arriscar a vida para fugir do Irã e assim poupar suas filhas de uma vida passada sob um regime autoritário. Seguem abaixo as histórias de três mulheres que fizeram essa escolha difícil.
Braço quase amputado
Dias após os protestos eclodirem, Moradbeigi saiu de casa segurando um lenço de cabeça que pretendia queimar nas ruas de sua cidade, Bukan. Até aquele momento ela nunca havia se considerado politizada.
Ela era feliz com seu marido, Sina Jalali, e a filha. Mas ficou furiosa com a morte de Amini, que morou em Saqhez, a pouca distância da cidade de Moradbeigi, na região curda do noroeste do Irã. Como Amiri, Moradbeigi integrava a minoria curda iraniana, que tem enfrentado discriminação e repressão.
Moradbeigi contou que quando se juntou ao protesto naquele dia em Bukan, recebeu uma saraivada de tiros de um agente de segurança, que disparou dezenas de chumbinhos contra ela. Radiografias de seus ferimentos disponibilizadas pela própria Moradbeigi e um de seus médicos mostraram que os projéteis pulverizaram o osso de seu cotovelo direito.
“A cada minuto eu estava enxergando a morte diante de meus olhos”, disse Moradbeigi em dezembro, em uma da série de entrevistas que concedeu nos últimos sete meses. “Mas meu coração estava com minha filha. Eu não podia morrer e deixá-la vivendo sob esse regime corrupto.”
Os médicos a avisaram que, se ela não conseguisse uma cirurgia urgente para colocar uma prótese, seu braço teria de ser amputado. Mas a cirurgia era demasiada complexa para ser feita no Irã. E Moradbeigi temia que seu ferimento a convertesse em alvo fácil da polícia. Foi então que ela decidiu deixar o país.
Ela e seu marido passaram sete meses escondidos enquanto tentavam encontrar um traficante que os tirasse do Irã. Mas todos lhes diziam que levar uma criança pequena seria perigoso demais, porque o choro dela poderia revelar à polícia onde eles estavam.
Em abril eles finalmente receberam uma ligação: um traficante concordou em organizar a fuga deles, pelo preço de 10 milhões de tomans iranianos (cerca de R$ 1.092). Em questão de dias eles venderam tudo o que tinham, até os livros de sua filha. Deixaram sua casa levando analgésicos e R$ 2.850 em dinheiro.
A família agora vive na região do Curdistão iraquiano em uma casa fornecida pelo Komala, um grupo armado de oposição curda iraniana com sede na região. O grupo ajudou Moradbeigi e cerca de 70 outras mulheres iranianas como ela a escapar desde o início dos protestos, segundo membros.
Várias outras mulheres, que falaram com o The New York Times, conseguiram escapar para outros países próximos, como a Turquia.
Para Moradbeigi, seu exílio se transformou em uma excruciante corrida contra o tempo. Quanto mais ela atrasar o tratamento do braço, maior o risco de perdê-lo. Ela e o marido passaram os últimos meses lutando para reunir os recursos para chegar a um país onde ela possa fazer a cirurgia de que precisa, que não está disponível no Iraque.
Ainda assim, ela insiste que tudo valeu a pena. “Eu preferiria perder este braço a abandonar minha filha ao pesadelo do meu governo”, disse ela.
Uma família dividida
Antes mesmo de os protestos começarem, iranianas já arriscavam a vida para tentar garantir uma vida melhor para elas próprias e em especial para suas filhas. Algumas delas foram ajudadas nas fugas por grupos armados da oposição curda iraniana, como o Komala. A base da organização fica nas montanhas do Curdistão iraquiano, que viraram um refúgio, especialmente para curdos que escapam do Irã.
Uma delas era Nasim Fathi, 38, ativista antigoverno da cidade de maioria curda Sanandaj, no noroeste do Irã. Ela disse que fugiu para Sulaimaniyah um ano atrás, depois de ser convocada para comparecer a um tribunal por ter participado de um protesto político.
Fathi contou que nas semanas que antecederam sua fuga ela foi vigiada pelas forças de segurança, que a impediram de deixar o país. Ela estava diante de um dilema terrível: precisava fugir, mas era mãe solo de duas filhas, de 21 e 10 anos de idade.
Em julho de 2022 ela decidiu que não haveria futuro para nenhuma das três se permanecesse no país. Deixando suas filhas para trás, ela atravessou a fronteira com a ajuda de um traficante de pessoas.
Entenda melhor
“Prometi que nos encontraríamos quando fosse seguro”, disse em entrevista por telefone. Mas, semanas após sua chegada, protestos tomaram conta do Irã, colocando em risco as chances de rever suas filhas.
Sua filha mais velha, Parya Ghaisary, ficou inspirada pelos protestos e foi às ruas também. Mas quando duas amigas dela foram detidas, no final de setembro, sua mãe interveio do Iraque. “Ela me pediu para levar minha irmã para atravessar a fronteira”, disse Ghaisary. “Nós éramos tudo que ela tinha nesta vida.”
Com passaportes em mãos, Ghaisary e a irmã, Diana, pegaram um táxi até a fronteira iraquiana, onde disseram aos guardas que iam atravessar para assistir ao casamento de uma parente. Em questão de horas elas se reuniram com Fathi, a mãe.
Casa Invadida
Para algumas iranianas que acabaram separadas de suas filhas, a agonia só é superada pelo medo dos perigos que um reencontro pode encerrar.
“Fico apavorada quando imagino minha filha vítima dos mesmos horrores que me forçaram a fugir”, disse Mozghan Keshavarz, ativista antigoverno que falou pelo telefone de um lugar fora do Irã que não quis identificar. “Mas não posso voltar ao Irã.”
Seus problemas começaram em 2019, quando ela lançou uma campanha para entregar rosas a mulheres com ou sem véu, em um esforço para uni-las. Agentes de segurança invadiram sua casa e a espancaram diante de sua filha, que tinha 9 anos na época, antes de arrastá-la para a prisão.
Keshavarz só reviu sua filha, Niki, em 2021, quando foi autorizada a sair da prisão para tratar uma lesão na espinha sofrida quando foi detida. Mas o reencontro delas foi breve.
Ela foi obrigada a se esconder em julho passado, quando policiais invadiram a casa de seu pai depois de ela ter participado de um protesto contra a obrigatoriedade do hijab, o véu que cobre a cabeça. Quando um advogado lhe disse que ela provavelmente seria sentenciada à morte, ela fugiu do país.
Mohammad Moghimi, um dos advogados de Keshavarz, disse que ela foi acusada em janeiro de travar uma guerra contra Deus, um crime que acarreta uma sentença de morte automática.
Durante o exílio, disse ela, raramente fala com a filha por medo de que o telefone de Niki seja grampeado pelas forças de segurança iranianas, conhecidas por assediar as famílias dos dissidentes.
Em vez disso, ela percorre as fotos e mensagens de Niki - lembranças pálidas de sua vida juntos.
Keshavarz recordou a noite em que foi presa, em 2019, quando policiais mandaram Niki rasgar um desenho preso à porta da geladeira que dizia “não queremos o hijab”.
“Ela se negou”, disse Keshavarz. “Eu me sinto humilde quando penso que ajudei a formar uma força destemida da natureza como ela.”