A Rússia voltou a bombardear a usina siderúrgica Azovstal, que abriga civis em Mariupol, nesta segunda-feira, 2, segundo o vice-comandante ucraniano Sviatoslav Palamar. O ataque acontece um dia depois de um breve cessar-fogo, que permitiu a retirada de cerca de 100 civis por corredores humanitários mediados pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Cruz Vermelha. Entretanto, ainda há gente no local.
Segundo a Reuters, nesta segunda-feira também houve um atraso na continuidade da retirada dos civis. O motivo não está claro, mas pode estar ligado aos novos bombardeios. As autoridades da cidade disseram, no entanto, que a retirada vai continuar. “Apesar de todas as dificuldades, a retirada de civis de Mariupol para Zaporizhzhia deve ocorrer”, disse o conselho da cidade em comunicado.
Após serem retirados no período de cessar-fogo, mais de 100 civis de Mariupol chegaram a Zaporizhzhia, cerca de 230 quilômetros a noroeste da cidade, nesta segunda-feira, 2. Eles estavam abrigados na usina Azovstal Iron and Steel Works. Outros já estão em Zaporizhzhia desde este domingo, 1º.
Uma segunda retirada era esperada nesta segunda, mas não havia sinal de movimento ao longo de dia, relataram as agências de notícias Reuters e AFP. A vice-primeira-ministra ucraniana, Irina Vereshchuk, afirmou que “centenas de civis ainda estão presos”. Segundo a Reuters, aqueles que ainda estão no complexo sitiado de Azovstal estão ficando sem água, comida e remédios.
De acordo com um assessor do prefeito de Mariupol, a Rússia já teria retomado os bombardeios da siderúrgica assim que os ônibus que retiraram os civis da usina partiram. “Ontem, assim que os ônibus deixaram Azovstal com os refugiados, novos bombardeios começaram imediatamente”, disse Petro Andriushchenko à televisão ucraniana.
Se for completada, a retirada dos civis de Mariupol representaria um raro progresso na redução do custo humano da guerra, que causou sofrimento particular em Mariupol. Tentativas anteriores de abrir corredores seguros no local falharam, com autoridades ucranianas acusando repetidamente as forças russas de atirar e bombardear ao longo das rotas acordadas.
“Hoje, pela primeira vez em todos os dias da guerra, este corredor vitalmente necessário começou a funcionar”, disse o presidente ucraniano Volodmir Zelenski neste domingo em um discurso publicado no canal de mensagens Telegram.
A instalação do corredor levou outros moradores de Mariupol a se aproveitarem do breve cessar-fogo para se infiltrar no estacionamento de uma loja que serviu de ponto de passagem para refugiados que fogem do território controlado pela Rússia.
A área industrial de Azovstal é o último reduto de resistência ucraniana na cidade portuária de Mariupol, sul do país. As condições de vida na rede de túneis sob a usina siderúrgica, onde se acredita que centenas de civis estejam ao lado de combatentes ucranianos, foram descritas como brutais. Além dos civis que ainda não foram retirados, há cerca de 500 soldados ucranianos feridos e “numerosos” cadáveres, segundo descreveu Denys Shlega, comandante da 12ª Brigada Operacional da Guarda Nacional da Ucrânia.
Civis relatam semanas de terror
Os primeiros civis retirados neste fim de semana começaram a chegar esta manha à cidade de Zaporizhzhia, com observadores internacionais expressando otimismo de que mais civis poderiam deixar a siderúrgica em Mariupol apesar da retomada dos ataques russos.
Esses civis descreveram semanas de bombardeios e privações na cidade sitiada. “Quando tentamos sair, começou um bombardeio intenso”, conta a ucraniana Ksenia Safonova, que chegou com o primeiro grupo. “Tudo estava explodindo. Jatos estavam voando e era muito assustador sair.”
Quando a comida escasseou, disse ela, sua família passou a depender das porções distribuídas pelas tropas russas que ocupavam a cidade. Ela pegou uma lata de carne em conserva que, segundo ela, fazia parte de um pacote de ajuda humanitária russo. Sua data de validade era 31 de janeiro, quase um mês antes do início da guerra.
Natalia Usmanova achava que seu coração fosse parar de tanto medo que sentia a cada bombardeio. Ela era funcionária da siderúrgica e ficou abrigada com o marido por semanas. “Eu temia que o bunker não aguentasse, eu sentia um medo terrível”, disse.
“Nós não vimos o sol por tanto tempo”, disse ela, falando no vilarejo de Bezimenne, em uma área de Donetsk sob o controle de separatistas apoiados pela Rússia, cerca de 30 quilômetros a leste de Mariupol. Ela se lembra da falta de oxigênio nos abrigos e do medo que tomou conta da vida das pessoas acocoradas lá embaixo.
Embora as missões oficiais muitas vezes tenham falhado em retirar os civis, muitas pessoas conseguiram fugir de Mariupol por conta própria nas últimas semanas. Outros não conseguem escapar.
“Pessoas sem carros não podem sair. Elas estão desesperadas”, relatou uma das civis que conseguiu sair de Mariupol nas últimas 24 horas, Olena Gibert. “É preciso ir buscá-los. As pessoas não têm nada. Não tínhamos nada.”
Segundo ela, muitas pessoas em Mariupol desejam escapar da cidade controlada pela Rússia, mas não podem dizer isso abertamente em meio à atmosfera de constante propaganda pró-Moscou.
Anastasiia Dembitska, que aproveitou o breve cessar-fogo em torno da retirada de civis da siderúrgica para sair com sua filha, sobrinho e cachorro, disse que sua família sobreviveu cozinhando em um fogão improvisado e bebendo água de poço.
Ela disse que podia ver a usina de sua janela, quando se atreveu a olhar para fora. “Podíamos ver os foguetes voando” e nuvens de fumaça sobre a usina, disse ela.
Levados para territórios controlados pela Rússia
Pelo menos algumas das pessoas retiradas da usina foram aparentemente levadas para uma vila controlada por separatistas apoiados por Moscou. A Rússia disse nesta segunda-feira que eles optaram por ficar em áreas separatistas, enquanto outras dezenas partiram para território controlado pela Ucrânia. Essa alegação, no entanto, não foi confirmada de forma independente pela imprensa ocidental.
No passado, autoridades ucranianas acusaram as tropas de Moscou de realocar civis à força em áreas que estavam sob domínio russo. Moscou disse que o povo queria ir para a Rússia.
Zelenski disse à televisão estatal grega que os civis ainda abrigados na fábrica de aço de Mariupol estavam com medo de embarcar em ônibus porque acreditam que serão levados para a Rússia. Ele disse que foi assegurado pelas Organização das Nações Unidas (ONU) de que eles seriam autorizados a ir para as áreas sob domínio ucraniano.
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As diferenças em Mariupol, antes e depois da ocupação russa, imagens aéreas da usina Azovstal, o complexo é a última fortaleza de resistência de seus defensores
As irmãs Vera e Nicole decidiram partir de Mariupol em meados de março, quando viram que a situação estava começando a piorar. Elas atravessaram uma estrada fortemente minada repleta de cadáveres e encontraram um franco-atirador russo perto de uma igreja que acenou para elas. Depois de dois dias, o trio - composto também pelo filho de Vera, o pequeno Kirill de 4 anos - foi recebido por um soldado russo que os encaminhou para um ônibus lotado.
“Ele nos disse que tinha nos libertado e perguntou por que nossos rostos ficaram sombrios”, disse Nicole. “O caminho a seguir talvez fosse uma prisão – mas era nossa única opção.”
O ônibus os levou a uma escola na cidade vizinha de Nikolske, que eles disseram ter sido convertida em um centro de registro operado pela Rússia, onde os ucranianos estavam preenchendo formulários com suas informações pessoais. Esse foi o primeiro contato com o que autoridades ucranianas e norte-americanas e grupos de direitos humanos chamam de centros de “filtragem”, que dizem ser parte de um sistema de expulsões forçadas de ucranianos para a Rússia.
Rachel Denber, vice-diretora da Humans Rights Watch para a Europa e Ásia Central, disse que o grupo documentou dois relatos de testemunhas que teriam sido levadas a centros de filtragem e disse que as ações da Rússia “têm todas as características de uma transferência forçada”. Ela acrescentou que a Quarta Convenção de Genebra, da qual a Rússia é signatária, proíbe a transferência forçada de civis de territórios ocupados, o que tornaria tais transferências forçadas um crime de guerra./AFP, AP, REUTERS e NYT