Massacre após massacre: a sombria espiral do Haiti em direção a um Estado falido


Governo haitiano tem cada vez menos controle sobre crise de violência que assola o país; massacres deixaram mais de 350 mortos no ano passado e foram seguidos de um ataques ao maior hospital público na véspera de Natal

Por David C. Adams e Frances Robles

Cerca de 150 militares estrangeiros chegaram ao Haiti neste fim de semana para reforçar uma força de segurança internacional encarregada de enfrentar as poderosas e bem armadas gangues que têm infligido tanta calamidade ao país há meses.

Mas se o passado serve de guia, é improvável que isso faça muita diferença.

Massacres consecutivos, que deixaram mais de 350 mortos, seguidos de um ataque na véspera de Natal ao maior hospital público do Haiti ressaltaram a crescente falta de controle do governo haitiano sobre a crise cada vez mais profunda do país.

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Uma entrevista coletiva destinada a anunciar a reabertura de um hospital público que estava fechado havia nove meses por causa da violência de gangues sofreu outro ataque de gangue. Dois repórteres e um policial morreram.

Imagem mostra soldados da Guatemala ao chegar em Porto Príncipe, capital do Haiti, no dia 4. Militares foram enviados para restabelecer segurança do país, em colapso por disputas entre gangues Foto: Clarens Siffroy/AFP

Mais de duas dúzias de jornalistas capturados na emboscada ficaram presos por duas horas e prestaram socorros a sete colegas feridos antes de serem resgatados. Eles rasgaram suas próprias roupas para fazer torniquetes e usaram absorventes íntimos para estancar sangramentos porque, segundo testemunhas, os poucos médicos do hospital fugiram para se salvar. Os repórteres escaparam escalando um muro dos fundos do hospital.

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“Havia sangue por todo o chão e em nossas roupas”, disse o repórter Jephte Bazil, da agência de notícias online Machann Zen Haïti, acrescentando que o hospital não tinha “nada para tratar as vítimas”.

O tiroteio no hospital ocorreu após dois massacres em diferentes regiões do país deixarem mais de 350 mortos, evidenciando claramente falhas e deficiências das autoridades locais e de uma força de segurança internacional enviada para proteger civis inocentes.

Um dos massacres ocorreu no mês passado, em um bairro pobre e extenso controlado por gangues em Porto Príncipe, onde a ausência de qualquer presença policial permitiu que, por três dias, idosos fossem desmembrados e jogados ao mar sem que as autoridades soubessem. Pelo menos 207 pessoas foram mortas entre 6 e 11 de dezembro, de acordo com as Nações Unidas.

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Mais ou menos na mesma época outra onda de assassinatos de três dias ocorreu 110 quilômetros ao norte, em Petite Rivière. Líderes comunitários dizem que 150 pessoas foram mortas quando membros de gangues e grupos de vigilantes trocaram ataques.

A violência é parte de uma sequência implacável de derramamento de sangue que se abateu sobre o Haiti nos últimos dois meses, expondo a fragilidade de seu governo interino, levantando preocupações sobre a viabilidade de uma missão de segurança mediada pelos Estados Unidos e deixando uma transição planejada, rumo a eleições e uma liderança mais estável, à beira do colapso.

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Com o presidente eleito Donald Trump prestes a assumir as rédeas de uma mobilização internacional classificada por críticos como ineficaz e mal financiada, o futuro do Haiti nunca pareceu tão sombrio.

O ministro da Justiça, Patrick Pelissier, disse acreditar que os 150 soldados, a maioria da Guatemala, deveriam ajudar a virar a maré. Ele enfatizou que algumas áreas controladas por gangues foram retomadas e que o governo está cuidando das pessoas deslocadas.

As gangues sabem muito bem quando chega o momento certo para mudar do modo defensivo para o modo ofensivo. Elas demonstram força quando precisam.

Diego Da Rin, especialista em Haiti do International Crisis Group

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“O Estado não colapsou”, disse Pelissier. “O Estado está lá. O Estado está funcionando.”

Mas muitos especialistas consideram o Haiti um Estado falido, com várias facções do governo interino envolvidas em disputas políticas e sem nenhuma estratégia aparente para lidar com a violência crescente e abrir um caminho para as eleições, que deveriam ser realizadas este ano.

“Disputas políticas se traduzem em violência”, disse o analista Diego Da Rin, especialista em Haiti do International Crisis Group. “As gangues sabem muito bem quando chega o momento certo para mudar do modo defensivo para o modo ofensivo. Elas demonstram força quando precisam.”

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Os ataques de gangues também chamaram a atenção para a fraqueza da Missão Multinacional de Apoio à Segurança no Haiti, apoiada pelos EUA, que conta com um destacamento de várias centenas de policiais, a maioria quenianos, que começaram a chegar ao Haiti em junho do ano passado.

A força deveria ter 2,5 mil policiais, mas, com pouco financiamento internacional, é muito menor e não tem agentes suficientes para lidar com as muitas regiões dominadas por gangues.

Imagem de 24 de dezembro mostra esposa de jornalista morto em um tiroteiro entre gangues no Hospital Geral de Porto Príncipe, no Haiti Foto: Odelyn Joseph/AP

Vários especialistas afirmaram que os assassinatos ocorridos na véspera de Natal passaram a sensação de que o governo é inepto. O evento que anunciou a reabertura do hospital foi realizado em um reduto de gangues, praticamente sem segurança. A polícia, cuja central de operações é próxima ao hospital, demorou pelo menos uma hora para responder após o início do ataque.

O ministro da Saúde do país, Duckenson Lorthe Blema, que estava doente e se atrasou para o evento, acredita que ele era o alvo pretendido. “Eu não sou louco — eu queria fazer as coisas bem, e deu errado”, afirmou em entrevista Blema, que foi demitido após o ataque. “Foi um fiasco, e o bode expiatório sou eu.”

Blema disse que solicitou presença policial no evento e que não sabia o motivo de tão pouca proteção ter sido mobilizada. Ele justificou a escassez de suprimentos do hospital afirmando que pretendia inaugurar a unidade “gradualmente” como uma clínica ambulatorial, que não serviria para tratar pacientes baleados.

O ministro da Justiça reconheceu que não houve coordenação entre o Ministério da Saúde e a polícia e que nenhuma avaliação de segurança adequada foi feita com antecedência.

“Os bairros são controlados por gangues, e a polícia está trabalhando para recuperá-los”, disse ele, observando que, embora a crise seja grave na capital e na região rural do Vale de Artibonite, grande parte do país funcionava normalmente.

O recente caos no Haiti foi desencadeado em grande medida pelo assassinato, em julho de 2021, do último presidente eleito do país, Jovenel Moïse. Gangues que obtêm renda com postos de controle ilegais, extorsão e sequestros aproveitaram o vácuo político para expandir seus territórios.

Sem líderes nacionais eleitos, o Haiti é governado por um conselho de transição composto por partidos políticos rivais, com uma presidência interina rotativa entre seus membros.

A última onda de violência começou em 11 de novembro, quando o conselho substituiu o primeiro-ministro, e gangues aproveitaram a agitação política para atirar contra aeronaves comerciais dos EUA e aumentar sua brutalidade. O principal aeroporto do Haiti está fechado desde então.

Mais de 5,3 mil pessoas foram mortas no Haiti no ano passado, e o número total de pessoas forçadas a fugir de suas casas ultrapassa 700 mil, de acordo com a Organização Internacional para as Migrações.

O novo primeiro-ministro, Alix Didier Fils-Aimé, na única entrevista coletiva que concedeu desde que assumiu o cargo, quase dois meses atrás, anunciou aumentos salariais para policiais e disse que estava comprometido em restaurar o estado de direito.

Procurados pela reportagem, o primeiro-ministro e os membros do conselho presidencial se recusaram a dar entrevista.

Em seu discurso de ano-novo, o presidente do conselho, Leslie Voltaire, afirmou que as eleições ocorreriam ainda este ano, mas comparou a situação atual a uma guerra. Um porta-voz da polícia disse que não comentaria a situação.

O comandante da missão liderada pelo Quênia, Godfrey Otunge, que também não respondeu pedidos de entrevista, queixa-se afirmando que os sucessos da missão não são divulgados suficientemente. Numa mensagem recente publicada online, ele disse que “o futuro do Haiti é brilhante”.

O Departamento de Estado dos EUA, que injetou US$ 600 milhões na missão do Quênia, defendeu seu histórico, observando que uma operação recente com a polícia ocasionou a morte de um membro de gangue de alto escalão.

Duas delegacias de polícia reabriram recentemente, e a missão queniana mantém agora uma presença permanente perto do principal porto do Haiti, que é controlado por gangues há muito tempo, disse o Departamento de Estado.

O governo dos EUA enviou várias remessas de materiais em dezembro, disse a agência.

Sem uma ajuda externa significativamente maior, porém, especialistas dizem que a derrocada do Haiti dificilmente será revertida. “O governo haitiano não tem clareza sobre o que está fazendo”, disse a pesquisadora visitante na Universidade de Nova York Sophie Rutenbar, que ajudou a coordenar as operações das Nações Unidas no Haiti até 2023. “Infelizmente, agora eles estão diante de escolhas ruins e escolhas piores.”

Alguns dos jornalistas feridos culparam as gangues — e o governo — por um desastre que custou vidas preciosas.

“Se o Estado tivesse assumido suas responsabilidades, nada disso teria acontecido”, disse Velondie Miracle, que levou sete tiros, na perna, na têmpora e na boca. “O Estado é uma força legal e não deve dar a bandidos acesso a lugares onde o Estado não pode responder.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Cerca de 150 militares estrangeiros chegaram ao Haiti neste fim de semana para reforçar uma força de segurança internacional encarregada de enfrentar as poderosas e bem armadas gangues que têm infligido tanta calamidade ao país há meses.

Mas se o passado serve de guia, é improvável que isso faça muita diferença.

Massacres consecutivos, que deixaram mais de 350 mortos, seguidos de um ataque na véspera de Natal ao maior hospital público do Haiti ressaltaram a crescente falta de controle do governo haitiano sobre a crise cada vez mais profunda do país.

Uma entrevista coletiva destinada a anunciar a reabertura de um hospital público que estava fechado havia nove meses por causa da violência de gangues sofreu outro ataque de gangue. Dois repórteres e um policial morreram.

Imagem mostra soldados da Guatemala ao chegar em Porto Príncipe, capital do Haiti, no dia 4. Militares foram enviados para restabelecer segurança do país, em colapso por disputas entre gangues Foto: Clarens Siffroy/AFP

Mais de duas dúzias de jornalistas capturados na emboscada ficaram presos por duas horas e prestaram socorros a sete colegas feridos antes de serem resgatados. Eles rasgaram suas próprias roupas para fazer torniquetes e usaram absorventes íntimos para estancar sangramentos porque, segundo testemunhas, os poucos médicos do hospital fugiram para se salvar. Os repórteres escaparam escalando um muro dos fundos do hospital.

“Havia sangue por todo o chão e em nossas roupas”, disse o repórter Jephte Bazil, da agência de notícias online Machann Zen Haïti, acrescentando que o hospital não tinha “nada para tratar as vítimas”.

O tiroteio no hospital ocorreu após dois massacres em diferentes regiões do país deixarem mais de 350 mortos, evidenciando claramente falhas e deficiências das autoridades locais e de uma força de segurança internacional enviada para proteger civis inocentes.

Um dos massacres ocorreu no mês passado, em um bairro pobre e extenso controlado por gangues em Porto Príncipe, onde a ausência de qualquer presença policial permitiu que, por três dias, idosos fossem desmembrados e jogados ao mar sem que as autoridades soubessem. Pelo menos 207 pessoas foram mortas entre 6 e 11 de dezembro, de acordo com as Nações Unidas.

Mais ou menos na mesma época outra onda de assassinatos de três dias ocorreu 110 quilômetros ao norte, em Petite Rivière. Líderes comunitários dizem que 150 pessoas foram mortas quando membros de gangues e grupos de vigilantes trocaram ataques.

A violência é parte de uma sequência implacável de derramamento de sangue que se abateu sobre o Haiti nos últimos dois meses, expondo a fragilidade de seu governo interino, levantando preocupações sobre a viabilidade de uma missão de segurança mediada pelos Estados Unidos e deixando uma transição planejada, rumo a eleições e uma liderança mais estável, à beira do colapso.

Com o presidente eleito Donald Trump prestes a assumir as rédeas de uma mobilização internacional classificada por críticos como ineficaz e mal financiada, o futuro do Haiti nunca pareceu tão sombrio.

O ministro da Justiça, Patrick Pelissier, disse acreditar que os 150 soldados, a maioria da Guatemala, deveriam ajudar a virar a maré. Ele enfatizou que algumas áreas controladas por gangues foram retomadas e que o governo está cuidando das pessoas deslocadas.

As gangues sabem muito bem quando chega o momento certo para mudar do modo defensivo para o modo ofensivo. Elas demonstram força quando precisam.

Diego Da Rin, especialista em Haiti do International Crisis Group

“O Estado não colapsou”, disse Pelissier. “O Estado está lá. O Estado está funcionando.”

Mas muitos especialistas consideram o Haiti um Estado falido, com várias facções do governo interino envolvidas em disputas políticas e sem nenhuma estratégia aparente para lidar com a violência crescente e abrir um caminho para as eleições, que deveriam ser realizadas este ano.

“Disputas políticas se traduzem em violência”, disse o analista Diego Da Rin, especialista em Haiti do International Crisis Group. “As gangues sabem muito bem quando chega o momento certo para mudar do modo defensivo para o modo ofensivo. Elas demonstram força quando precisam.”

Os ataques de gangues também chamaram a atenção para a fraqueza da Missão Multinacional de Apoio à Segurança no Haiti, apoiada pelos EUA, que conta com um destacamento de várias centenas de policiais, a maioria quenianos, que começaram a chegar ao Haiti em junho do ano passado.

A força deveria ter 2,5 mil policiais, mas, com pouco financiamento internacional, é muito menor e não tem agentes suficientes para lidar com as muitas regiões dominadas por gangues.

Imagem de 24 de dezembro mostra esposa de jornalista morto em um tiroteiro entre gangues no Hospital Geral de Porto Príncipe, no Haiti Foto: Odelyn Joseph/AP

Vários especialistas afirmaram que os assassinatos ocorridos na véspera de Natal passaram a sensação de que o governo é inepto. O evento que anunciou a reabertura do hospital foi realizado em um reduto de gangues, praticamente sem segurança. A polícia, cuja central de operações é próxima ao hospital, demorou pelo menos uma hora para responder após o início do ataque.

O ministro da Saúde do país, Duckenson Lorthe Blema, que estava doente e se atrasou para o evento, acredita que ele era o alvo pretendido. “Eu não sou louco — eu queria fazer as coisas bem, e deu errado”, afirmou em entrevista Blema, que foi demitido após o ataque. “Foi um fiasco, e o bode expiatório sou eu.”

Blema disse que solicitou presença policial no evento e que não sabia o motivo de tão pouca proteção ter sido mobilizada. Ele justificou a escassez de suprimentos do hospital afirmando que pretendia inaugurar a unidade “gradualmente” como uma clínica ambulatorial, que não serviria para tratar pacientes baleados.

O ministro da Justiça reconheceu que não houve coordenação entre o Ministério da Saúde e a polícia e que nenhuma avaliação de segurança adequada foi feita com antecedência.

“Os bairros são controlados por gangues, e a polícia está trabalhando para recuperá-los”, disse ele, observando que, embora a crise seja grave na capital e na região rural do Vale de Artibonite, grande parte do país funcionava normalmente.

O recente caos no Haiti foi desencadeado em grande medida pelo assassinato, em julho de 2021, do último presidente eleito do país, Jovenel Moïse. Gangues que obtêm renda com postos de controle ilegais, extorsão e sequestros aproveitaram o vácuo político para expandir seus territórios.

Sem líderes nacionais eleitos, o Haiti é governado por um conselho de transição composto por partidos políticos rivais, com uma presidência interina rotativa entre seus membros.

A última onda de violência começou em 11 de novembro, quando o conselho substituiu o primeiro-ministro, e gangues aproveitaram a agitação política para atirar contra aeronaves comerciais dos EUA e aumentar sua brutalidade. O principal aeroporto do Haiti está fechado desde então.

Mais de 5,3 mil pessoas foram mortas no Haiti no ano passado, e o número total de pessoas forçadas a fugir de suas casas ultrapassa 700 mil, de acordo com a Organização Internacional para as Migrações.

O novo primeiro-ministro, Alix Didier Fils-Aimé, na única entrevista coletiva que concedeu desde que assumiu o cargo, quase dois meses atrás, anunciou aumentos salariais para policiais e disse que estava comprometido em restaurar o estado de direito.

Procurados pela reportagem, o primeiro-ministro e os membros do conselho presidencial se recusaram a dar entrevista.

Em seu discurso de ano-novo, o presidente do conselho, Leslie Voltaire, afirmou que as eleições ocorreriam ainda este ano, mas comparou a situação atual a uma guerra. Um porta-voz da polícia disse que não comentaria a situação.

O comandante da missão liderada pelo Quênia, Godfrey Otunge, que também não respondeu pedidos de entrevista, queixa-se afirmando que os sucessos da missão não são divulgados suficientemente. Numa mensagem recente publicada online, ele disse que “o futuro do Haiti é brilhante”.

O Departamento de Estado dos EUA, que injetou US$ 600 milhões na missão do Quênia, defendeu seu histórico, observando que uma operação recente com a polícia ocasionou a morte de um membro de gangue de alto escalão.

Duas delegacias de polícia reabriram recentemente, e a missão queniana mantém agora uma presença permanente perto do principal porto do Haiti, que é controlado por gangues há muito tempo, disse o Departamento de Estado.

O governo dos EUA enviou várias remessas de materiais em dezembro, disse a agência.

Sem uma ajuda externa significativamente maior, porém, especialistas dizem que a derrocada do Haiti dificilmente será revertida. “O governo haitiano não tem clareza sobre o que está fazendo”, disse a pesquisadora visitante na Universidade de Nova York Sophie Rutenbar, que ajudou a coordenar as operações das Nações Unidas no Haiti até 2023. “Infelizmente, agora eles estão diante de escolhas ruins e escolhas piores.”

Alguns dos jornalistas feridos culparam as gangues — e o governo — por um desastre que custou vidas preciosas.

“Se o Estado tivesse assumido suas responsabilidades, nada disso teria acontecido”, disse Velondie Miracle, que levou sete tiros, na perna, na têmpora e na boca. “O Estado é uma força legal e não deve dar a bandidos acesso a lugares onde o Estado não pode responder.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Cerca de 150 militares estrangeiros chegaram ao Haiti neste fim de semana para reforçar uma força de segurança internacional encarregada de enfrentar as poderosas e bem armadas gangues que têm infligido tanta calamidade ao país há meses.

Mas se o passado serve de guia, é improvável que isso faça muita diferença.

Massacres consecutivos, que deixaram mais de 350 mortos, seguidos de um ataque na véspera de Natal ao maior hospital público do Haiti ressaltaram a crescente falta de controle do governo haitiano sobre a crise cada vez mais profunda do país.

Uma entrevista coletiva destinada a anunciar a reabertura de um hospital público que estava fechado havia nove meses por causa da violência de gangues sofreu outro ataque de gangue. Dois repórteres e um policial morreram.

Imagem mostra soldados da Guatemala ao chegar em Porto Príncipe, capital do Haiti, no dia 4. Militares foram enviados para restabelecer segurança do país, em colapso por disputas entre gangues Foto: Clarens Siffroy/AFP

Mais de duas dúzias de jornalistas capturados na emboscada ficaram presos por duas horas e prestaram socorros a sete colegas feridos antes de serem resgatados. Eles rasgaram suas próprias roupas para fazer torniquetes e usaram absorventes íntimos para estancar sangramentos porque, segundo testemunhas, os poucos médicos do hospital fugiram para se salvar. Os repórteres escaparam escalando um muro dos fundos do hospital.

“Havia sangue por todo o chão e em nossas roupas”, disse o repórter Jephte Bazil, da agência de notícias online Machann Zen Haïti, acrescentando que o hospital não tinha “nada para tratar as vítimas”.

O tiroteio no hospital ocorreu após dois massacres em diferentes regiões do país deixarem mais de 350 mortos, evidenciando claramente falhas e deficiências das autoridades locais e de uma força de segurança internacional enviada para proteger civis inocentes.

Um dos massacres ocorreu no mês passado, em um bairro pobre e extenso controlado por gangues em Porto Príncipe, onde a ausência de qualquer presença policial permitiu que, por três dias, idosos fossem desmembrados e jogados ao mar sem que as autoridades soubessem. Pelo menos 207 pessoas foram mortas entre 6 e 11 de dezembro, de acordo com as Nações Unidas.

Mais ou menos na mesma época outra onda de assassinatos de três dias ocorreu 110 quilômetros ao norte, em Petite Rivière. Líderes comunitários dizem que 150 pessoas foram mortas quando membros de gangues e grupos de vigilantes trocaram ataques.

A violência é parte de uma sequência implacável de derramamento de sangue que se abateu sobre o Haiti nos últimos dois meses, expondo a fragilidade de seu governo interino, levantando preocupações sobre a viabilidade de uma missão de segurança mediada pelos Estados Unidos e deixando uma transição planejada, rumo a eleições e uma liderança mais estável, à beira do colapso.

Com o presidente eleito Donald Trump prestes a assumir as rédeas de uma mobilização internacional classificada por críticos como ineficaz e mal financiada, o futuro do Haiti nunca pareceu tão sombrio.

O ministro da Justiça, Patrick Pelissier, disse acreditar que os 150 soldados, a maioria da Guatemala, deveriam ajudar a virar a maré. Ele enfatizou que algumas áreas controladas por gangues foram retomadas e que o governo está cuidando das pessoas deslocadas.

As gangues sabem muito bem quando chega o momento certo para mudar do modo defensivo para o modo ofensivo. Elas demonstram força quando precisam.

Diego Da Rin, especialista em Haiti do International Crisis Group

“O Estado não colapsou”, disse Pelissier. “O Estado está lá. O Estado está funcionando.”

Mas muitos especialistas consideram o Haiti um Estado falido, com várias facções do governo interino envolvidas em disputas políticas e sem nenhuma estratégia aparente para lidar com a violência crescente e abrir um caminho para as eleições, que deveriam ser realizadas este ano.

“Disputas políticas se traduzem em violência”, disse o analista Diego Da Rin, especialista em Haiti do International Crisis Group. “As gangues sabem muito bem quando chega o momento certo para mudar do modo defensivo para o modo ofensivo. Elas demonstram força quando precisam.”

Os ataques de gangues também chamaram a atenção para a fraqueza da Missão Multinacional de Apoio à Segurança no Haiti, apoiada pelos EUA, que conta com um destacamento de várias centenas de policiais, a maioria quenianos, que começaram a chegar ao Haiti em junho do ano passado.

A força deveria ter 2,5 mil policiais, mas, com pouco financiamento internacional, é muito menor e não tem agentes suficientes para lidar com as muitas regiões dominadas por gangues.

Imagem de 24 de dezembro mostra esposa de jornalista morto em um tiroteiro entre gangues no Hospital Geral de Porto Príncipe, no Haiti Foto: Odelyn Joseph/AP

Vários especialistas afirmaram que os assassinatos ocorridos na véspera de Natal passaram a sensação de que o governo é inepto. O evento que anunciou a reabertura do hospital foi realizado em um reduto de gangues, praticamente sem segurança. A polícia, cuja central de operações é próxima ao hospital, demorou pelo menos uma hora para responder após o início do ataque.

O ministro da Saúde do país, Duckenson Lorthe Blema, que estava doente e se atrasou para o evento, acredita que ele era o alvo pretendido. “Eu não sou louco — eu queria fazer as coisas bem, e deu errado”, afirmou em entrevista Blema, que foi demitido após o ataque. “Foi um fiasco, e o bode expiatório sou eu.”

Blema disse que solicitou presença policial no evento e que não sabia o motivo de tão pouca proteção ter sido mobilizada. Ele justificou a escassez de suprimentos do hospital afirmando que pretendia inaugurar a unidade “gradualmente” como uma clínica ambulatorial, que não serviria para tratar pacientes baleados.

O ministro da Justiça reconheceu que não houve coordenação entre o Ministério da Saúde e a polícia e que nenhuma avaliação de segurança adequada foi feita com antecedência.

“Os bairros são controlados por gangues, e a polícia está trabalhando para recuperá-los”, disse ele, observando que, embora a crise seja grave na capital e na região rural do Vale de Artibonite, grande parte do país funcionava normalmente.

O recente caos no Haiti foi desencadeado em grande medida pelo assassinato, em julho de 2021, do último presidente eleito do país, Jovenel Moïse. Gangues que obtêm renda com postos de controle ilegais, extorsão e sequestros aproveitaram o vácuo político para expandir seus territórios.

Sem líderes nacionais eleitos, o Haiti é governado por um conselho de transição composto por partidos políticos rivais, com uma presidência interina rotativa entre seus membros.

A última onda de violência começou em 11 de novembro, quando o conselho substituiu o primeiro-ministro, e gangues aproveitaram a agitação política para atirar contra aeronaves comerciais dos EUA e aumentar sua brutalidade. O principal aeroporto do Haiti está fechado desde então.

Mais de 5,3 mil pessoas foram mortas no Haiti no ano passado, e o número total de pessoas forçadas a fugir de suas casas ultrapassa 700 mil, de acordo com a Organização Internacional para as Migrações.

O novo primeiro-ministro, Alix Didier Fils-Aimé, na única entrevista coletiva que concedeu desde que assumiu o cargo, quase dois meses atrás, anunciou aumentos salariais para policiais e disse que estava comprometido em restaurar o estado de direito.

Procurados pela reportagem, o primeiro-ministro e os membros do conselho presidencial se recusaram a dar entrevista.

Em seu discurso de ano-novo, o presidente do conselho, Leslie Voltaire, afirmou que as eleições ocorreriam ainda este ano, mas comparou a situação atual a uma guerra. Um porta-voz da polícia disse que não comentaria a situação.

O comandante da missão liderada pelo Quênia, Godfrey Otunge, que também não respondeu pedidos de entrevista, queixa-se afirmando que os sucessos da missão não são divulgados suficientemente. Numa mensagem recente publicada online, ele disse que “o futuro do Haiti é brilhante”.

O Departamento de Estado dos EUA, que injetou US$ 600 milhões na missão do Quênia, defendeu seu histórico, observando que uma operação recente com a polícia ocasionou a morte de um membro de gangue de alto escalão.

Duas delegacias de polícia reabriram recentemente, e a missão queniana mantém agora uma presença permanente perto do principal porto do Haiti, que é controlado por gangues há muito tempo, disse o Departamento de Estado.

O governo dos EUA enviou várias remessas de materiais em dezembro, disse a agência.

Sem uma ajuda externa significativamente maior, porém, especialistas dizem que a derrocada do Haiti dificilmente será revertida. “O governo haitiano não tem clareza sobre o que está fazendo”, disse a pesquisadora visitante na Universidade de Nova York Sophie Rutenbar, que ajudou a coordenar as operações das Nações Unidas no Haiti até 2023. “Infelizmente, agora eles estão diante de escolhas ruins e escolhas piores.”

Alguns dos jornalistas feridos culparam as gangues — e o governo — por um desastre que custou vidas preciosas.

“Se o Estado tivesse assumido suas responsabilidades, nada disso teria acontecido”, disse Velondie Miracle, que levou sete tiros, na perna, na têmpora e na boca. “O Estado é uma força legal e não deve dar a bandidos acesso a lugares onde o Estado não pode responder.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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