Com os líderes da Ucrânia prometendo retomar todo o território ocupado pela Rússia em seu país, Moscou tem preparado defesas elaboradas, especialmente na Crimeia, a península que os russos anexaram ilegalmente em 2014 e que se tornou uma das posições mais fortificadas na zona de guerra.
Após semanas de escavações, a área em torno da pequena cidade de Medvedivka, próxima à ligação com o território ucraniano, foi enredada por um elaborado sistema de trincheiras que se estende por quilômetros. As passagens foram recortadas na terra em ângulos que permitem aos soldados amplo campo de tiro. Nas proximidades, há outras fortificações, incluindo valas profundas destinadas a impedir a passagem de tanques e outros veículos pesados.
Imagens de satélite fornecidas ao Washington Post pela Maxar, uma empresa privada de tecnologia espacial, mostram que a Rússia construiu dezenas de defesas similares. “O Exército russo aparentemente entende que a Crimeia terá de ser defendida no futuro próximo”, afirmou o analista militar russo Ian Matveev.
As defesas foram construídas rapidamente, em preparação para a aguardada ofensiva de primavera (do Hemisfério Norte) da Ucrânia. Em poucas semanas a Rússia construiu quilômetros de fortificações próximo à cidade de Vitino, na costa ocidental da Crimeia — apesar de analistas afirmarem que um assalto anfíbio é improvável.
Os tratores de escavação de trincheiras BTM-3, equipamentos da era soviética, cavam até 800 metros por hora mesmo quando o solo está congelado. Certa vez, o Exército americano expressou sua admiração por essas máquinas, registrando em um relatório interno, de 1980, que nada comparável existia nos Estados Unidos, na Europa ou no Japão.
A Rússia também usa força de trabalho puramente humana. Ofertas de emprego online no país têm buscado trabalhadores da construção civil para revestir as trincheiras na Crimeia de madeira e concreto pagando mais de US$ 90 a diária — um salário invejável.
Imagens de satélite mostram que alguns obstáculos na Crimeia foram construídos em poucos dias.
Mais da guerra na Ucrânia
O futuro da Crimeia é um tema repleto de tensão. O presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, promete que vai retomar a península, mas o presidente russo, Vladimir Putin, promete jamais devolvê-la.
A geografia da região apresenta grandes dificuldades tanto para a Ucrânia quanto para a Rússia. A Crimeia conecta-se ao território ucraniano por uma passagem terrestre estreita e pantanosa, capaz de frear uma ofensiva. Mas a proximidade com o front também poderia se provar perigosa para a ocupação russa, isolando suas forças e colocando-as sob fácil alcance das armas ucranianas.
Apesar de a Rússia ter construído defesas em outras partes, a magnitude na Crimeia se destaca. “Para Putin, a Crimeia é justamente a vaca sagrada”, afirmou Matveev. “Se algo ocorrer, as tropas serão mandadas imediatamente para essa linha de defesa.”
Imagens de satélites revelam que muitas das defesas russas foram construídas ao longo de corpos d’água, adicionando mais obstáculos contra uma possível ofensiva terrestre da Ucrânia.
Mikola Bielieskov, pesquisador do Instituto Nacional de Estudos Estratégicos, de Kiev, um centro de estudos financiado pelo governo, afirmou que a magnitude das fortificações é o “melhor indicador” dos temores da Rússia.
Mas algumas autoridades ocidentais se preocupam com a possibilidade de combates diretos pela Crimeia ocasionarem uma escalada perigosa. Graduadas autoridades russas, incluindo o ex-presidente Dmitri Medvedev, insinuaram que Moscou usaria armas nucleares para defender a Crimeia.
Trincheiras, armadilhas de tanques e dentes de dragão
A Crimeia tem sido disputada ao longo dos séculos por causa de sua posição estratégica. Para a Rússia, a península fornece uma base que dura o ano inteiro para sua Frota no Mar Negro. Suas praias também a tornam um popular destino de férias, apesar da intrusão da guerra.
Durante a Guerra da Crimeia, nos anos 1850, a Rússia combateu uma aliança de potências europeias. Historiadores descrevem o conflito, que utilizou amplamente a estratégia de guerra de trincheiras, como precursor da 1.ª Guerra. E afirmam que ele também provou que a Crimeia, anteriormente considerada uma fortaleza natural, era vulnerável aos ataques navais modernos.
Mas a Marinha da Ucrânia é fraca. E também falta a Kiev poder aéreo necessário para dominar a península a partir dos céus. Um assalto terrestre convencional teria de avançar por um terreno muito mais difícil. Obstáculos foram colocados ao longo das principais estradas que conectam a Crimeia ao território ucraniano.
As tropas russas têm construído fortificações há meses em pontos de acesso cruciais na região de Kherson. E também nas proximidades de Melitopol, ao longo da faixa conhecida como a “ponte terrestre” que conecta a Crimeia à Rússia através do território ocupado na Ucrânia.
Mais recentemente, a Rússia fortificou maciçamente suas defesas na península, que é ligada ao território da Ucrânia pelo Istmo de Perekop, uma estreita faixa terrestre cuja largura chega no máximo a 6,9 quilômetros.
A geografia pode ser a melhor defesa da Crimeia. Somente duas rodovias entram na península pelo norte. A M17, a oeste, está agora altamente fortificada, e a M18, ao leste, atravessa uma ponte que poderia ser demolida. As lagoas Sivash, também conhecidas como Mar Podre, limitam movimentos militares em grande escala, e a Flecha de Arabat, ao leste, não possui quase nenhuma estrada asfaltada.
A Rússia também construiu trincheiras ao longo de 32 quilômetros da costa oeste da Crimeia, próximo a Vitino. Imagens de satélite registradas em 31 de março mostram que peças de artilharia foram estacionadas na mesma área. Alguns analistas afirmaram que o acionamento de armas longe da atividade no campo de batalha foi impressionante.
A batalha pela Crimeia
Seria necessário tempo, esforços e equipamentos consideráveis para romper as fortificações no norte da Crimeia frontalmente, de acordo com o ex-engenheiro do Exército Steve Danner, que serviu nas Guerras do Golfo, do Iraque e no Afeganistão.
“Os russos fazem um ótimo trabalho na preparação de posições defensivas”, escreveu Danner em uma mensagem, comparando as fortificações em torno da Crimeia hoje às usadas pela União Soviética em torno de Kursk na 2.ª Guerra — uma batalha que se provou decisiva para repelir as tropas nazistas.
Michael Kofman, analista militar do instituto CNA, na Virgínia, afirmou que dificilmente a Ucrânia tomará a Crimeia “no sentido clássico”, mas que Kiev perseguirá uma estratégia de exaustão estabelecendo controle de fogo sobre o acesso à península.
“Com o tempo, isso poderia tornar a situação na Crimeia insustentável a um ponto que poderia obrigar a Rússia a negociar seu status”, afirmou Kofman.
A Ucrânia já está testando essa estratégia. Desde agosto, mais de 70 ataques atribuídos às forças ucranianas ou colaboradores atingiram posições russas dentro da Crimeia ou nas proximidades da península, de acordo com registros do Armed Conflict Location & Event Data Project.
Muitas ações foram ataques aéreos, incluindo de drones. Outras parecem obra de sabotadores. Apesar da Rússia ter interceptado alguns ataques, outros foram bem-sucedidos — por vezes com resultados devastadores.
Em agosto, pelo menos seis explosões atingiram a base aérea de Saki, próxima à costa ocidental da Crimeia. Autoridades afirmaram posteriormente que forças especiais da Ucrânia realizaram o ataque, que danificou ou destruiu ao menos oito aeronaves militares.
Ataques também ocorreram na cidade de Dzhankoi, no norte da Crimeia, um importante polo logístico para as forças russas no sul da Ucrânia. Explosões atingiram a cidade em 20 de março. Posteriormente elas foram atribuídas a um ataque de drone que mirou mísseis de cruzeiro russos que eram transportados por ferrovia.
O ataque talvez mais espetacular ocorreu em 8 de outubro, quando a Ponte da Crimeia, sobre o Estreito de Querche, foi danificada por uma explosão. A ponte de 19 quilômetros foi construída após a Rússia anexar a Crimeia e liga a península à Rússia por rodovia e ferrovia.
O futuro
Ben Hodges, ex-comandante das tropas dos EUA na Europa e atualmente conselheiro da ONG Human Rights First, afirmou que, se a Ucrânia não recuperar a Crimeia, sua economia continuará vulnerável. A Rússia poderia usar portos na Crimeia para bloquear o comércio ucraniano, por exemplo, ou para ensaiar um conflito futuro.
“A Ucrânia nunca estará segura nem será capaz de reconstruir sua economia enquanto a Rússia ocupar a Crimeia, porque bloqueia acesso ao Mar de Azov e porque sua Frota no Mar Negro é capaz de dominar a costa e os portos da Ucrânia”, afirmou Hodges.
O ex-comandante americano conclamou seu país a fornecer mísseis de maior alcance para ajudar a expulsar a Rússia, incluindo Sistemas de Mísseis Táticos do Exército (ATACMS), que são capazes de acertar alvos a até 300 quilômetros de distância, o que colocaria toda a Crimeia sob alcance dos ucranianos.
As fortificações na Crimeia significam que a Rússia estaria preparada para um combate prolongado. Falando à imprensa estatal russa este mês, Sergei Aksionov, o chefe da Crimeia apontado por Moscou, afirmou que a “linha defensiva” da península está dentro do esperado. “Sou firme na posição: se você quer paz, prepare-se para a guerra”, afirmou Aksionov. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL