KIEV – Cerca de dois metros abaixo de uma escada dentro de um pequeno galpão nos fundos da casa de Oleksandr Kadet, há uma sala subterrânea com uma escotilha de cimento que ele espera nunca ter que usar.
Nas últimas duas semanas, Kadet, de 32 anos, disse que ele e sua esposa, que moram fora da capital ucraniana, Kiev, estavam se preparando para a possibilidade de um ataque nuclear fazendo um estoque nessa sala – um velho poço que eles converteram em um bunker — com água engarrafada, comida enlatada, rádios e baterias portáteis.
“Estamos mais ansiosos agora, especialmente depois dos ataques de ontem”, disse Kadet na terça-feira, um dia após uma série de ataques com mísseis russos na Ucrânia. “Mas achamos que, no caso de uma explosão nuclear, seremos capazes de sobreviver se ficarmos no abrigo por algum tempo.”
Os temores de uma escalada aumentaram no sábado após um ataque à Ponte do Estreito de Kerch, de cerca de 19 Km, que liga a Rússia à península da Crimeia, que Moscou anexou em 2014. Inicialmente, os ucranianos comemoraram, mas isso rapidamente deu lugar à preocupação de que um ataque tão descarado a um símbolo do governo do presidente Vladimir Putin poderia levar a uma severa retaliação.
Mesmo antes desses eventos recentes, porém, as preocupações com o potencial de um desastre nuclear estavam, cada vez mais, chegando à psique nacional da Ucrânia. O medo é que a Rússia possa usar armas nucleares táticas ou fazer um ataque convencional a uma das usinas nucleares da Ucrânia.
Autoridades dos EUA disseram achar que as chances de a Rússia usar armas nucleares são baixas, e altos oficiais americanos dizem que não viram evidências de que Putin esteja movendo qualquer um de seus ativos nucleares.
No domingo, Putin chamou o ataque à ponte de “ataque terrorista destinado a destruir a infraestrutura civil essencialmente importante da Federação Russa”.
Risco de guerra nuclear na Ucrânia
Mas seu porta-voz, Dmitri Peskov, pareceu conter os temores de uma represália nuclear, dizendo que o ataque à ponte não se enquadrava na categoria sob a doutrina de defesa da Rússia que permitia esse tipo de resposta.
No mês passado, Putin levantou temores de que poderia recorrer a armas nucleares quando alertou que “usaria todos os meios à nossa disposição para proteger a Rússia e nosso povo”, se o território controlado pela Rússia fosse ameaçado. “Isso não é um blefe”, ele disse.
Dias depois, a Rússia anexou ilegalmente quatro territórios ucranianos.
Kadet, que observou ter começado sua preparação há duas semanas, disse que era melhor ter um plano de ação. “É psicologicamente mais fácil porque você sabe que está pelo menos de alguma forma preparado para isso”, ele disse. “Não é uma garantia de que isso irá salvá-lo, mas pelo menos você está pronto.”
Moradores de Kiev disseram que se sentiam temerosos mesmo antes dos mais recentes ataques com mísseis na segunda-feira.
Imediatamente após o ataque à ponte, muitos ucranianos compartilharam sua alegria nas mídias sociais. Eles brindaram triunfantes nos bares da capital no fim de semana e posaram para selfies em frente a cartazes da ponte em chamas.
Mas logo a preocupação se instalou.
“Sinto um medo real sobre como os russos responderão a isso”, disse Kristina Gevorkova, de 30 anos, que estava fazendo compras com sua amiga em Kiev no domingo. “Antes, parecia mais seguro aqui”, acrescentou. “Agora, tenho essa sensação de que algo vai acontecer.”
Kiev foi poupada durante meses das piores investidas russas, enquanto Moscou concentrou sua atenção no sudeste da Ucrânia. Mas na segunda-feira, um míssil russo chegou a poucos quarteirões de onde Gevorkova havia falado.
Ataques russos em Kiev
Ela disse que estava lendo sobre como se manter segura durante uma guerra nuclear, mas que estava cética de que isso ajudaria. “Nós realmente não podemos fazer nada”, ela disse.
A guerra parecia distante de Kiev nos últimos meses, à medida que a vida volta a uma aparência de normalidade depois que as forças russas foram expulsas de partes do nordeste da Ucrânia. No entanto, a cidade também vem se preparando lentamente para um possível ataque nuclear.
A Câmara Municipal de Kiev disse na sexta-feira que pílulas de iodeto de potássio serão distribuídas aos moradores em caso de um incidente nuclear “com base em recomendações médicas”, acrescentando que as pílulas também estão disponíveis nas farmácias da cidade.
O iodeto de potássio é usado para saturar a tireóide de uma pessoa com iodo para que o iodo radioativo inalado ou ingerido após a exposição não seja retido pela glândula.
Alina Bozhedomova, de 23 anos, farmacêutica em Kiev, disse que os clientes vinham diariamente à procura das pílulas, mas acrescentou: “Não vi pessoas entrando em pânico por causa disso”.
Algumas escolas primárias aconselharam os pais a prepararem pacotes de emergência para as crianças levarem à escola.
Depois que as preocupações com a segurança da Usina Nuclear de Zaporizhzhia, no sudeste do país, aumentaram nas últimas semanas, o Ministério da Saúde da Ucrânia emitiu orientações sobre como responder a um incidente nuclear.
O risco de precipitação nuclear pode parecer muito real na Ucrânia, um país que ainda carrega as cicatrizes do acidente de Chernobyl em 1986, um dos piores desastres nucleares da história. Chernobyl fica a apenas 100 quilômetros ao norte de Kiev.
E aqueles que experimentaram em primeira mão a precipitação nuclear fatal dizem que, possivelmente mais do que ninguém, entendem o risco total da exposição nuclear. Oleksandr, de 55 anos, que pediu que seu sobrenome não fosse divulgado, disse que ele e sua família fugiram de Chernobyl para Kiev imediatamente após o acidente, quando ele tinha apenas 18 anos.
Sua família seguiu de perto a orientação para se mudar para o sul, pois os ventos empurravam os materiais radioativos para o norte, e ele disse que essa foi a única razão pela qual eles escaparam ilesos.
“Agora, as pessoas aqui não estão realmente prontas. As pessoas não sabem o que fazer”, ele disse. “Não há informação suficiente.”
Ele é dono de uma banca de mercado que vende artigos de primeira necessidade e disse que mais pessoas vieram nas últimas duas semanas se preparando para um desastre nuclear, comprando lanternas, baterias, facas, rádios e pequenos fogões de acampamento.
Svetlana Zozulia, 47, e seu marido, Vladyslav Zozulia, 37, caminhavam no centro de Kiev com sua filha, Anastasiia, 11, na noite de domingo. Svetlana Zozulia disse que tentava permanecer otimista e não acreditava que Putin faria um ataque nuclear à Ucrânia.
Mas ela comprou comprimidos de iodeto de potássio por precaução, disse. “Acho que nosso sucesso o perturba”, disse Zozulia. “Mas também há uma ameaça para ele se optar por um ataque nuclear.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES