É escritor venezuelano e membro do Carnegie Endowment. Escreve quinzenalmente

Opinião|Na Índia, Modi quer ir de premiê a ‘Rei de Bharat’; leia a coluna de Moisés Naím


Bharat é o nome que o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, gostaria de dar ao seu país. Há muitas formas de praticar o populismo e uma delas é esta

Por Moisés Naim

Um rei banha-se tranquilamente em um de seus rios quando se aproxima uma cerva ferida gravemente, prestes a dar à luz. Surpreendido pela compaixão, o rei adota o pequeno cervo que nasce dela. Faz dele seu mascote e apega-se a ele com tamanha paixão que, muitos anos depois, ao momento de sua morte, sua última sensação é seu ilimitado afeto pelo animal. Por isso, o lendário Rei Bharata, primeiro soberano que conseguiu unir toda a Índia sob seu controle, haveria de reencarnar como um cervo.

Aqui estamos no mundo do mito e da lenda. Também da realidade. Bharata, o nome desse rei, deriva-se de Bharat, o nome da Índia em sânscrito, que significa literalmente “as Terras do Rei Bharata”.

Bharat é o nome que o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, gostaria de dar ao seu país. Há muitas formas de praticar o populismo e uma delas é esta. Serve para demonstrar poder, para nutrir narrativas que demonizam o passado recente do país e comemorar o sempre glorioso passado longínquo. Também servem para criar debates que distraem a opinião pública dos fracassos cotidianos que os governos costumam sofrer.

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Premiê indiano, Narendra Modi, gesticula em discurso em evento na Austrália: populismo cada vez maior  Foto: Mark Baker/AP Photo

Assim, Pérsia virou Irã; Birmânia, Mianmar; Checoslováquia, República Checa e, mais recentemente, Chéquia; Venezuela, República Bolivariana da Venezuela; e paremos de contar.Cabe notar que o nome do partido político de Modi é Partido Bharatiya Janata, o Partido do Povo de Bharat ou, o que é o mesmo, Partido Popular Hindu. E eis que toda essa família de palavras — Bharata, Bharat, Bharatiya — tem uma mesma origem religiosa: todas saem das escrituras sagradas do hinduísmo, começando pelo Mahabharata, algo como o Antigo Testamento dessa religião, que não é outra coisa além do épico do reino de Bharat.

E aqui o problema: a Índia de hoje, o país mais povoado do mundo, é uma nação muito mais diversa do que foi nos tempos da lenda. Contém o impressionante número de 950 milhões de hinduístas que constituem a base de apoio do Nacionalismo Hinduísta de Modi. Mas também é lar de 170 milhões de muçulmanos, mais que Irã e Arábia Saudita juntos, assim como 28 milhões de cristãos, 20 milhões de siques, 8 milhões de budistas e múltiplos grupos menores. Tratar de impor um termo meramente religioso, como Bharat, para designar o país inteiro é um ato agressivo de populismo chauvinista. Ignorar a identidade nacional de mais de 200 milhões de cidadãos indianos que não são hinduístas é uma provocação perigosa.

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E não é de se estranhar, porque o chauvinismo religioso tem sido a moeda corrente de Modi desde que ele começou sua carreira. Em 2002, quando uma série de distúrbios entre comunidades religiosas sacudiu o Estado de Gujarat, o então governador Modi ficou de braços cruzados enquanto mais de mil muçulmanos eram assassinados por hordas de hinduístas inflamados. O aprendizado que Modi tirou dessa tragédia se manifestou em sua conduta política: quando mais cruel ele se mostrasse em relação à minoria muçulmana, maiores vitórias eleitorais ele colheria.

O governo do BJP que Modi lidera nunca deixou de inflamar tensões religiosas como método de aferrar-se ao poder. Por meio de um maquinário gigantesco de redes sociais, o BJP e suas organizações afins dedicam-se a incitar tensões entre comunidades religiosas cada vez que se avizinha uma eleição. Cadeias de WhatsApp circulam rumores explosivos sobre abusos sexuais perpetrados por pedófilos muçulmanos contra meninas hinduístas e certamente sublinham o voraz apetite dos muçulmanos pela carne da vaca, considerada sagrada pelo hinduísmo.

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E o revanchismo hinduísta não ataca somente o Islã. Em junho, agentes secretos da Índia assassinaram em plena luz do dia Hardeep Singh Nijjar, um reconhecido líder da comunidade sique, num aprazível subúrbio de Vancouver, no Canadá. As acusações do governo canadense diante deste ultraje criaram um incidente diplomático global, introduzindo tensões sem precedentes entre Índia e países ocidentais que havia pouco eram amigos.

Modi aperfeiçoou as técnicas do populismo, a polarização e a pós-verdade. E continua utilizando-as para aferrar-se ao poder. Pretender mudar o nome da Índia por um termo meramente hinduísta, como Bharat, encaixa-se perfeitamente neste padrão de comportamento que está pondo em perigo o legado democrático deixado por Gandhi. E tudo isso em nome do Rei Bharata, que só queria cuidar de um pequeno cervo. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Um rei banha-se tranquilamente em um de seus rios quando se aproxima uma cerva ferida gravemente, prestes a dar à luz. Surpreendido pela compaixão, o rei adota o pequeno cervo que nasce dela. Faz dele seu mascote e apega-se a ele com tamanha paixão que, muitos anos depois, ao momento de sua morte, sua última sensação é seu ilimitado afeto pelo animal. Por isso, o lendário Rei Bharata, primeiro soberano que conseguiu unir toda a Índia sob seu controle, haveria de reencarnar como um cervo.

Aqui estamos no mundo do mito e da lenda. Também da realidade. Bharata, o nome desse rei, deriva-se de Bharat, o nome da Índia em sânscrito, que significa literalmente “as Terras do Rei Bharata”.

Bharat é o nome que o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, gostaria de dar ao seu país. Há muitas formas de praticar o populismo e uma delas é esta. Serve para demonstrar poder, para nutrir narrativas que demonizam o passado recente do país e comemorar o sempre glorioso passado longínquo. Também servem para criar debates que distraem a opinião pública dos fracassos cotidianos que os governos costumam sofrer.

Premiê indiano, Narendra Modi, gesticula em discurso em evento na Austrália: populismo cada vez maior  Foto: Mark Baker/AP Photo

Assim, Pérsia virou Irã; Birmânia, Mianmar; Checoslováquia, República Checa e, mais recentemente, Chéquia; Venezuela, República Bolivariana da Venezuela; e paremos de contar.Cabe notar que o nome do partido político de Modi é Partido Bharatiya Janata, o Partido do Povo de Bharat ou, o que é o mesmo, Partido Popular Hindu. E eis que toda essa família de palavras — Bharata, Bharat, Bharatiya — tem uma mesma origem religiosa: todas saem das escrituras sagradas do hinduísmo, começando pelo Mahabharata, algo como o Antigo Testamento dessa religião, que não é outra coisa além do épico do reino de Bharat.

E aqui o problema: a Índia de hoje, o país mais povoado do mundo, é uma nação muito mais diversa do que foi nos tempos da lenda. Contém o impressionante número de 950 milhões de hinduístas que constituem a base de apoio do Nacionalismo Hinduísta de Modi. Mas também é lar de 170 milhões de muçulmanos, mais que Irã e Arábia Saudita juntos, assim como 28 milhões de cristãos, 20 milhões de siques, 8 milhões de budistas e múltiplos grupos menores. Tratar de impor um termo meramente religioso, como Bharat, para designar o país inteiro é um ato agressivo de populismo chauvinista. Ignorar a identidade nacional de mais de 200 milhões de cidadãos indianos que não são hinduístas é uma provocação perigosa.

E não é de se estranhar, porque o chauvinismo religioso tem sido a moeda corrente de Modi desde que ele começou sua carreira. Em 2002, quando uma série de distúrbios entre comunidades religiosas sacudiu o Estado de Gujarat, o então governador Modi ficou de braços cruzados enquanto mais de mil muçulmanos eram assassinados por hordas de hinduístas inflamados. O aprendizado que Modi tirou dessa tragédia se manifestou em sua conduta política: quando mais cruel ele se mostrasse em relação à minoria muçulmana, maiores vitórias eleitorais ele colheria.

O governo do BJP que Modi lidera nunca deixou de inflamar tensões religiosas como método de aferrar-se ao poder. Por meio de um maquinário gigantesco de redes sociais, o BJP e suas organizações afins dedicam-se a incitar tensões entre comunidades religiosas cada vez que se avizinha uma eleição. Cadeias de WhatsApp circulam rumores explosivos sobre abusos sexuais perpetrados por pedófilos muçulmanos contra meninas hinduístas e certamente sublinham o voraz apetite dos muçulmanos pela carne da vaca, considerada sagrada pelo hinduísmo.

E o revanchismo hinduísta não ataca somente o Islã. Em junho, agentes secretos da Índia assassinaram em plena luz do dia Hardeep Singh Nijjar, um reconhecido líder da comunidade sique, num aprazível subúrbio de Vancouver, no Canadá. As acusações do governo canadense diante deste ultraje criaram um incidente diplomático global, introduzindo tensões sem precedentes entre Índia e países ocidentais que havia pouco eram amigos.

Modi aperfeiçoou as técnicas do populismo, a polarização e a pós-verdade. E continua utilizando-as para aferrar-se ao poder. Pretender mudar o nome da Índia por um termo meramente hinduísta, como Bharat, encaixa-se perfeitamente neste padrão de comportamento que está pondo em perigo o legado democrático deixado por Gandhi. E tudo isso em nome do Rei Bharata, que só queria cuidar de um pequeno cervo. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Um rei banha-se tranquilamente em um de seus rios quando se aproxima uma cerva ferida gravemente, prestes a dar à luz. Surpreendido pela compaixão, o rei adota o pequeno cervo que nasce dela. Faz dele seu mascote e apega-se a ele com tamanha paixão que, muitos anos depois, ao momento de sua morte, sua última sensação é seu ilimitado afeto pelo animal. Por isso, o lendário Rei Bharata, primeiro soberano que conseguiu unir toda a Índia sob seu controle, haveria de reencarnar como um cervo.

Aqui estamos no mundo do mito e da lenda. Também da realidade. Bharata, o nome desse rei, deriva-se de Bharat, o nome da Índia em sânscrito, que significa literalmente “as Terras do Rei Bharata”.

Bharat é o nome que o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, gostaria de dar ao seu país. Há muitas formas de praticar o populismo e uma delas é esta. Serve para demonstrar poder, para nutrir narrativas que demonizam o passado recente do país e comemorar o sempre glorioso passado longínquo. Também servem para criar debates que distraem a opinião pública dos fracassos cotidianos que os governos costumam sofrer.

Premiê indiano, Narendra Modi, gesticula em discurso em evento na Austrália: populismo cada vez maior  Foto: Mark Baker/AP Photo

Assim, Pérsia virou Irã; Birmânia, Mianmar; Checoslováquia, República Checa e, mais recentemente, Chéquia; Venezuela, República Bolivariana da Venezuela; e paremos de contar.Cabe notar que o nome do partido político de Modi é Partido Bharatiya Janata, o Partido do Povo de Bharat ou, o que é o mesmo, Partido Popular Hindu. E eis que toda essa família de palavras — Bharata, Bharat, Bharatiya — tem uma mesma origem religiosa: todas saem das escrituras sagradas do hinduísmo, começando pelo Mahabharata, algo como o Antigo Testamento dessa religião, que não é outra coisa além do épico do reino de Bharat.

E aqui o problema: a Índia de hoje, o país mais povoado do mundo, é uma nação muito mais diversa do que foi nos tempos da lenda. Contém o impressionante número de 950 milhões de hinduístas que constituem a base de apoio do Nacionalismo Hinduísta de Modi. Mas também é lar de 170 milhões de muçulmanos, mais que Irã e Arábia Saudita juntos, assim como 28 milhões de cristãos, 20 milhões de siques, 8 milhões de budistas e múltiplos grupos menores. Tratar de impor um termo meramente religioso, como Bharat, para designar o país inteiro é um ato agressivo de populismo chauvinista. Ignorar a identidade nacional de mais de 200 milhões de cidadãos indianos que não são hinduístas é uma provocação perigosa.

E não é de se estranhar, porque o chauvinismo religioso tem sido a moeda corrente de Modi desde que ele começou sua carreira. Em 2002, quando uma série de distúrbios entre comunidades religiosas sacudiu o Estado de Gujarat, o então governador Modi ficou de braços cruzados enquanto mais de mil muçulmanos eram assassinados por hordas de hinduístas inflamados. O aprendizado que Modi tirou dessa tragédia se manifestou em sua conduta política: quando mais cruel ele se mostrasse em relação à minoria muçulmana, maiores vitórias eleitorais ele colheria.

O governo do BJP que Modi lidera nunca deixou de inflamar tensões religiosas como método de aferrar-se ao poder. Por meio de um maquinário gigantesco de redes sociais, o BJP e suas organizações afins dedicam-se a incitar tensões entre comunidades religiosas cada vez que se avizinha uma eleição. Cadeias de WhatsApp circulam rumores explosivos sobre abusos sexuais perpetrados por pedófilos muçulmanos contra meninas hinduístas e certamente sublinham o voraz apetite dos muçulmanos pela carne da vaca, considerada sagrada pelo hinduísmo.

E o revanchismo hinduísta não ataca somente o Islã. Em junho, agentes secretos da Índia assassinaram em plena luz do dia Hardeep Singh Nijjar, um reconhecido líder da comunidade sique, num aprazível subúrbio de Vancouver, no Canadá. As acusações do governo canadense diante deste ultraje criaram um incidente diplomático global, introduzindo tensões sem precedentes entre Índia e países ocidentais que havia pouco eram amigos.

Modi aperfeiçoou as técnicas do populismo, a polarização e a pós-verdade. E continua utilizando-as para aferrar-se ao poder. Pretender mudar o nome da Índia por um termo meramente hinduísta, como Bharat, encaixa-se perfeitamente neste padrão de comportamento que está pondo em perigo o legado democrático deixado por Gandhi. E tudo isso em nome do Rei Bharata, que só queria cuidar de um pequeno cervo. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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