É escritor venezuelano e membro do Carnegie Endowment. Escreve quinzenalmente

Opinião|As democracias em perigo de extinção


Em todos os continentes, as democracias enfraqueceram e as ditaduras estão no auge, abrigando quase 70% da população mundial

Por Moisés Naim
Atualização:

Na década passada, proliferaram eventos que mudaram o mundo. Alguns foram impossíveis de ignorar, mas houve outros, mais graduais, que passaram quase despercebidos. Entre eles, o mais importante: a crise global da democracia.

Em todos os continentes, as democracias enfraqueceram e as ditaduras estão no auge, abrigando quase 70% da população mundial, o que equivale a 5,4 bilhões de pessoas. Segundo estudos do Instituto V-Dem, da Universidade de Gotemburgo, uma década antes, o índice de pessoas que viviam sob ditaduras era de 49%. Desde 1978 não havia um número tão baixo de países em processo de democratização.

Esse retrocesso da democracia não causou maiores alardes nem provocou reações significativas por duas razões. A primeira é que estavam acontecendo muitas outras coisas urgentes e concretas que dificultaram para os defensores da democracia competir com sucesso pela atenção dos líderes, dos meios de comunicação e da opinião pública. A pandemia ou a crise financeira mundial são apenas dois exemplos da longa lista de eventos que não deixaram espaço para crises menos imediatas. A segunda razão é que a maioria dos ataques à democracia foi deliberadamente opaca, difícil de perceber e, muito menos, capaz de ativar as pessoas.

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Em imagem fornecida pela Xinhua, os presidentes Vladimir Putin (E) e Xi Jinping em Pequim, em 4 de fevereiro Foto: Li Tao / Xinhua via AP

Consideremos a primeira causa dessa desatenção mundial, que Larry Diamond, um respeitado professor da Universidade Stanford, chamou de “recessão democrática”. Como mobilizar a população para defender a democracia quando a pandemia estava causando a morte de milhões de pessoas em todo o mundo? Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas entre 2020 e 2021, 15 milhões de pessoas morreram por causa da covid-19 e suas variantes.

Na década passada também se intensificaram os efeitos das mudanças climáticas. Incêndios florestais se mostraram mais frequentes, letais e custosos, assim como ondas de calor, inundações, furacões, tufões, o derretimento dos polos e muito mais.

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Também não faltaram problemas econômicos. Entre 2007 e 2009, uma profunda crise financeira que começou nos Estados Unidos se desatou, causando graves danos à economia, se espalhando para outros países e deixando sequelas políticas cujas consequências perduram. Talvez mais importante que isso seja o aumento da desigualdade econômica.

Esse problema se agravou na década passada e continua sendo fonte de conflitos políticos e instabilidade social. Um dos países onde isso mais se acentuou foi a China, que é hoje uma das sociedades mais desiguais do mundo. Mas a atenção mundial à economia chinesa não decorreu de sua crescente desigualdade, mas de seu rápido crescimento econômico.

Entre 2010 e 2020, o gigante asiático mais que duplicou o tamanho de sua economia e, dependendo de como se calcule, é hoje a primeira ou a segunda maior economia do mundo. Nesse mesmo período, o regime chinês aprofundou seu autoritarismo. Em 2018, o presidente Xi Jinping manobrou para eliminar a norma da Constituição que desde 1982 limitava a presidência a dois mandatos de cinco anos. Graças a essa reforma constitucional, Xi poderá ser presidente por um período ilimitado.

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A década passada também foi a década do Brexit, a inesperada e traumática retirada do Reino Unido da Comunidade Europeia. Também foi o período durante o qual se produziu um explosivo aumento da influência econômica, política e social de redes sociais como Facebook, YouTube, Instagram, Twitter ou TikTok. E das múltiplas guerras de Putin: os militares russos combateram na Geórgia, na Crimeia, em Abkházia, na Ossétia do Sul, na Síria e na Ucrânia. Nesses dez anos também vimos a ascensão de Donald Trump, sua conquista do Partido Republicano e da presidência dos Estados Unidos.

Muitos desses eventos foram forjados e impulsionados pelo acelerado aumento de usuários dos telefones inteligentes, os onipresentes smartphones. Hoje, mais de 6,5 bilhões de pessoas (84% da população mundial) possuem um telefone inteligente.

Enquanto tudo isso — e muito mais — distraía nossa atenção, um grupo de líderes autoritários se apropriou de um grande número de democracias no mundo.

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Estatísticas, relatórios e evidências da deterioração da democracia no mundo são surpreendentes e preocupantes. Mais surpreendente ainda, porém, é a falta de respostas e a inação diante das afrontas das forças antidemocráticas.

Isso ocorre porque muitos dos ataques contra as democracias estão ocorrendo de uma maneira tão sigilosa que na prática se tornam quase invisíveis. Um problema não detectado jamais será solucionado. As democracias do mundo estão enfrentando um perigoso problema ainda não suficientemente reconhecido. Precisamos identificá-lo, torná-lo público e enfrentá-lo. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Na década passada, proliferaram eventos que mudaram o mundo. Alguns foram impossíveis de ignorar, mas houve outros, mais graduais, que passaram quase despercebidos. Entre eles, o mais importante: a crise global da democracia.

Em todos os continentes, as democracias enfraqueceram e as ditaduras estão no auge, abrigando quase 70% da população mundial, o que equivale a 5,4 bilhões de pessoas. Segundo estudos do Instituto V-Dem, da Universidade de Gotemburgo, uma década antes, o índice de pessoas que viviam sob ditaduras era de 49%. Desde 1978 não havia um número tão baixo de países em processo de democratização.

Esse retrocesso da democracia não causou maiores alardes nem provocou reações significativas por duas razões. A primeira é que estavam acontecendo muitas outras coisas urgentes e concretas que dificultaram para os defensores da democracia competir com sucesso pela atenção dos líderes, dos meios de comunicação e da opinião pública. A pandemia ou a crise financeira mundial são apenas dois exemplos da longa lista de eventos que não deixaram espaço para crises menos imediatas. A segunda razão é que a maioria dos ataques à democracia foi deliberadamente opaca, difícil de perceber e, muito menos, capaz de ativar as pessoas.

Em imagem fornecida pela Xinhua, os presidentes Vladimir Putin (E) e Xi Jinping em Pequim, em 4 de fevereiro Foto: Li Tao / Xinhua via AP

Consideremos a primeira causa dessa desatenção mundial, que Larry Diamond, um respeitado professor da Universidade Stanford, chamou de “recessão democrática”. Como mobilizar a população para defender a democracia quando a pandemia estava causando a morte de milhões de pessoas em todo o mundo? Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas entre 2020 e 2021, 15 milhões de pessoas morreram por causa da covid-19 e suas variantes.

Na década passada também se intensificaram os efeitos das mudanças climáticas. Incêndios florestais se mostraram mais frequentes, letais e custosos, assim como ondas de calor, inundações, furacões, tufões, o derretimento dos polos e muito mais.

Também não faltaram problemas econômicos. Entre 2007 e 2009, uma profunda crise financeira que começou nos Estados Unidos se desatou, causando graves danos à economia, se espalhando para outros países e deixando sequelas políticas cujas consequências perduram. Talvez mais importante que isso seja o aumento da desigualdade econômica.

Esse problema se agravou na década passada e continua sendo fonte de conflitos políticos e instabilidade social. Um dos países onde isso mais se acentuou foi a China, que é hoje uma das sociedades mais desiguais do mundo. Mas a atenção mundial à economia chinesa não decorreu de sua crescente desigualdade, mas de seu rápido crescimento econômico.

Entre 2010 e 2020, o gigante asiático mais que duplicou o tamanho de sua economia e, dependendo de como se calcule, é hoje a primeira ou a segunda maior economia do mundo. Nesse mesmo período, o regime chinês aprofundou seu autoritarismo. Em 2018, o presidente Xi Jinping manobrou para eliminar a norma da Constituição que desde 1982 limitava a presidência a dois mandatos de cinco anos. Graças a essa reforma constitucional, Xi poderá ser presidente por um período ilimitado.

A década passada também foi a década do Brexit, a inesperada e traumática retirada do Reino Unido da Comunidade Europeia. Também foi o período durante o qual se produziu um explosivo aumento da influência econômica, política e social de redes sociais como Facebook, YouTube, Instagram, Twitter ou TikTok. E das múltiplas guerras de Putin: os militares russos combateram na Geórgia, na Crimeia, em Abkházia, na Ossétia do Sul, na Síria e na Ucrânia. Nesses dez anos também vimos a ascensão de Donald Trump, sua conquista do Partido Republicano e da presidência dos Estados Unidos.

Muitos desses eventos foram forjados e impulsionados pelo acelerado aumento de usuários dos telefones inteligentes, os onipresentes smartphones. Hoje, mais de 6,5 bilhões de pessoas (84% da população mundial) possuem um telefone inteligente.

Enquanto tudo isso — e muito mais — distraía nossa atenção, um grupo de líderes autoritários se apropriou de um grande número de democracias no mundo.

Estatísticas, relatórios e evidências da deterioração da democracia no mundo são surpreendentes e preocupantes. Mais surpreendente ainda, porém, é a falta de respostas e a inação diante das afrontas das forças antidemocráticas.

Isso ocorre porque muitos dos ataques contra as democracias estão ocorrendo de uma maneira tão sigilosa que na prática se tornam quase invisíveis. Um problema não detectado jamais será solucionado. As democracias do mundo estão enfrentando um perigoso problema ainda não suficientemente reconhecido. Precisamos identificá-lo, torná-lo público e enfrentá-lo. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Na década passada, proliferaram eventos que mudaram o mundo. Alguns foram impossíveis de ignorar, mas houve outros, mais graduais, que passaram quase despercebidos. Entre eles, o mais importante: a crise global da democracia.

Em todos os continentes, as democracias enfraqueceram e as ditaduras estão no auge, abrigando quase 70% da população mundial, o que equivale a 5,4 bilhões de pessoas. Segundo estudos do Instituto V-Dem, da Universidade de Gotemburgo, uma década antes, o índice de pessoas que viviam sob ditaduras era de 49%. Desde 1978 não havia um número tão baixo de países em processo de democratização.

Esse retrocesso da democracia não causou maiores alardes nem provocou reações significativas por duas razões. A primeira é que estavam acontecendo muitas outras coisas urgentes e concretas que dificultaram para os defensores da democracia competir com sucesso pela atenção dos líderes, dos meios de comunicação e da opinião pública. A pandemia ou a crise financeira mundial são apenas dois exemplos da longa lista de eventos que não deixaram espaço para crises menos imediatas. A segunda razão é que a maioria dos ataques à democracia foi deliberadamente opaca, difícil de perceber e, muito menos, capaz de ativar as pessoas.

Em imagem fornecida pela Xinhua, os presidentes Vladimir Putin (E) e Xi Jinping em Pequim, em 4 de fevereiro Foto: Li Tao / Xinhua via AP

Consideremos a primeira causa dessa desatenção mundial, que Larry Diamond, um respeitado professor da Universidade Stanford, chamou de “recessão democrática”. Como mobilizar a população para defender a democracia quando a pandemia estava causando a morte de milhões de pessoas em todo o mundo? Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas entre 2020 e 2021, 15 milhões de pessoas morreram por causa da covid-19 e suas variantes.

Na década passada também se intensificaram os efeitos das mudanças climáticas. Incêndios florestais se mostraram mais frequentes, letais e custosos, assim como ondas de calor, inundações, furacões, tufões, o derretimento dos polos e muito mais.

Também não faltaram problemas econômicos. Entre 2007 e 2009, uma profunda crise financeira que começou nos Estados Unidos se desatou, causando graves danos à economia, se espalhando para outros países e deixando sequelas políticas cujas consequências perduram. Talvez mais importante que isso seja o aumento da desigualdade econômica.

Esse problema se agravou na década passada e continua sendo fonte de conflitos políticos e instabilidade social. Um dos países onde isso mais se acentuou foi a China, que é hoje uma das sociedades mais desiguais do mundo. Mas a atenção mundial à economia chinesa não decorreu de sua crescente desigualdade, mas de seu rápido crescimento econômico.

Entre 2010 e 2020, o gigante asiático mais que duplicou o tamanho de sua economia e, dependendo de como se calcule, é hoje a primeira ou a segunda maior economia do mundo. Nesse mesmo período, o regime chinês aprofundou seu autoritarismo. Em 2018, o presidente Xi Jinping manobrou para eliminar a norma da Constituição que desde 1982 limitava a presidência a dois mandatos de cinco anos. Graças a essa reforma constitucional, Xi poderá ser presidente por um período ilimitado.

A década passada também foi a década do Brexit, a inesperada e traumática retirada do Reino Unido da Comunidade Europeia. Também foi o período durante o qual se produziu um explosivo aumento da influência econômica, política e social de redes sociais como Facebook, YouTube, Instagram, Twitter ou TikTok. E das múltiplas guerras de Putin: os militares russos combateram na Geórgia, na Crimeia, em Abkházia, na Ossétia do Sul, na Síria e na Ucrânia. Nesses dez anos também vimos a ascensão de Donald Trump, sua conquista do Partido Republicano e da presidência dos Estados Unidos.

Muitos desses eventos foram forjados e impulsionados pelo acelerado aumento de usuários dos telefones inteligentes, os onipresentes smartphones. Hoje, mais de 6,5 bilhões de pessoas (84% da população mundial) possuem um telefone inteligente.

Enquanto tudo isso — e muito mais — distraía nossa atenção, um grupo de líderes autoritários se apropriou de um grande número de democracias no mundo.

Estatísticas, relatórios e evidências da deterioração da democracia no mundo são surpreendentes e preocupantes. Mais surpreendente ainda, porém, é a falta de respostas e a inação diante das afrontas das forças antidemocráticas.

Isso ocorre porque muitos dos ataques contra as democracias estão ocorrendo de uma maneira tão sigilosa que na prática se tornam quase invisíveis. Um problema não detectado jamais será solucionado. As democracias do mundo estão enfrentando um perigoso problema ainda não suficientemente reconhecido. Precisamos identificá-lo, torná-lo público e enfrentá-lo. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Na década passada, proliferaram eventos que mudaram o mundo. Alguns foram impossíveis de ignorar, mas houve outros, mais graduais, que passaram quase despercebidos. Entre eles, o mais importante: a crise global da democracia.

Em todos os continentes, as democracias enfraqueceram e as ditaduras estão no auge, abrigando quase 70% da população mundial, o que equivale a 5,4 bilhões de pessoas. Segundo estudos do Instituto V-Dem, da Universidade de Gotemburgo, uma década antes, o índice de pessoas que viviam sob ditaduras era de 49%. Desde 1978 não havia um número tão baixo de países em processo de democratização.

Esse retrocesso da democracia não causou maiores alardes nem provocou reações significativas por duas razões. A primeira é que estavam acontecendo muitas outras coisas urgentes e concretas que dificultaram para os defensores da democracia competir com sucesso pela atenção dos líderes, dos meios de comunicação e da opinião pública. A pandemia ou a crise financeira mundial são apenas dois exemplos da longa lista de eventos que não deixaram espaço para crises menos imediatas. A segunda razão é que a maioria dos ataques à democracia foi deliberadamente opaca, difícil de perceber e, muito menos, capaz de ativar as pessoas.

Em imagem fornecida pela Xinhua, os presidentes Vladimir Putin (E) e Xi Jinping em Pequim, em 4 de fevereiro Foto: Li Tao / Xinhua via AP

Consideremos a primeira causa dessa desatenção mundial, que Larry Diamond, um respeitado professor da Universidade Stanford, chamou de “recessão democrática”. Como mobilizar a população para defender a democracia quando a pandemia estava causando a morte de milhões de pessoas em todo o mundo? Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas entre 2020 e 2021, 15 milhões de pessoas morreram por causa da covid-19 e suas variantes.

Na década passada também se intensificaram os efeitos das mudanças climáticas. Incêndios florestais se mostraram mais frequentes, letais e custosos, assim como ondas de calor, inundações, furacões, tufões, o derretimento dos polos e muito mais.

Também não faltaram problemas econômicos. Entre 2007 e 2009, uma profunda crise financeira que começou nos Estados Unidos se desatou, causando graves danos à economia, se espalhando para outros países e deixando sequelas políticas cujas consequências perduram. Talvez mais importante que isso seja o aumento da desigualdade econômica.

Esse problema se agravou na década passada e continua sendo fonte de conflitos políticos e instabilidade social. Um dos países onde isso mais se acentuou foi a China, que é hoje uma das sociedades mais desiguais do mundo. Mas a atenção mundial à economia chinesa não decorreu de sua crescente desigualdade, mas de seu rápido crescimento econômico.

Entre 2010 e 2020, o gigante asiático mais que duplicou o tamanho de sua economia e, dependendo de como se calcule, é hoje a primeira ou a segunda maior economia do mundo. Nesse mesmo período, o regime chinês aprofundou seu autoritarismo. Em 2018, o presidente Xi Jinping manobrou para eliminar a norma da Constituição que desde 1982 limitava a presidência a dois mandatos de cinco anos. Graças a essa reforma constitucional, Xi poderá ser presidente por um período ilimitado.

A década passada também foi a década do Brexit, a inesperada e traumática retirada do Reino Unido da Comunidade Europeia. Também foi o período durante o qual se produziu um explosivo aumento da influência econômica, política e social de redes sociais como Facebook, YouTube, Instagram, Twitter ou TikTok. E das múltiplas guerras de Putin: os militares russos combateram na Geórgia, na Crimeia, em Abkházia, na Ossétia do Sul, na Síria e na Ucrânia. Nesses dez anos também vimos a ascensão de Donald Trump, sua conquista do Partido Republicano e da presidência dos Estados Unidos.

Muitos desses eventos foram forjados e impulsionados pelo acelerado aumento de usuários dos telefones inteligentes, os onipresentes smartphones. Hoje, mais de 6,5 bilhões de pessoas (84% da população mundial) possuem um telefone inteligente.

Enquanto tudo isso — e muito mais — distraía nossa atenção, um grupo de líderes autoritários se apropriou de um grande número de democracias no mundo.

Estatísticas, relatórios e evidências da deterioração da democracia no mundo são surpreendentes e preocupantes. Mais surpreendente ainda, porém, é a falta de respostas e a inação diante das afrontas das forças antidemocráticas.

Isso ocorre porque muitos dos ataques contra as democracias estão ocorrendo de uma maneira tão sigilosa que na prática se tornam quase invisíveis. Um problema não detectado jamais será solucionado. As democracias do mundo estão enfrentando um perigoso problema ainda não suficientemente reconhecido. Precisamos identificá-lo, torná-lo público e enfrentá-lo. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Na década passada, proliferaram eventos que mudaram o mundo. Alguns foram impossíveis de ignorar, mas houve outros, mais graduais, que passaram quase despercebidos. Entre eles, o mais importante: a crise global da democracia.

Em todos os continentes, as democracias enfraqueceram e as ditaduras estão no auge, abrigando quase 70% da população mundial, o que equivale a 5,4 bilhões de pessoas. Segundo estudos do Instituto V-Dem, da Universidade de Gotemburgo, uma década antes, o índice de pessoas que viviam sob ditaduras era de 49%. Desde 1978 não havia um número tão baixo de países em processo de democratização.

Esse retrocesso da democracia não causou maiores alardes nem provocou reações significativas por duas razões. A primeira é que estavam acontecendo muitas outras coisas urgentes e concretas que dificultaram para os defensores da democracia competir com sucesso pela atenção dos líderes, dos meios de comunicação e da opinião pública. A pandemia ou a crise financeira mundial são apenas dois exemplos da longa lista de eventos que não deixaram espaço para crises menos imediatas. A segunda razão é que a maioria dos ataques à democracia foi deliberadamente opaca, difícil de perceber e, muito menos, capaz de ativar as pessoas.

Em imagem fornecida pela Xinhua, os presidentes Vladimir Putin (E) e Xi Jinping em Pequim, em 4 de fevereiro Foto: Li Tao / Xinhua via AP

Consideremos a primeira causa dessa desatenção mundial, que Larry Diamond, um respeitado professor da Universidade Stanford, chamou de “recessão democrática”. Como mobilizar a população para defender a democracia quando a pandemia estava causando a morte de milhões de pessoas em todo o mundo? Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas entre 2020 e 2021, 15 milhões de pessoas morreram por causa da covid-19 e suas variantes.

Na década passada também se intensificaram os efeitos das mudanças climáticas. Incêndios florestais se mostraram mais frequentes, letais e custosos, assim como ondas de calor, inundações, furacões, tufões, o derretimento dos polos e muito mais.

Também não faltaram problemas econômicos. Entre 2007 e 2009, uma profunda crise financeira que começou nos Estados Unidos se desatou, causando graves danos à economia, se espalhando para outros países e deixando sequelas políticas cujas consequências perduram. Talvez mais importante que isso seja o aumento da desigualdade econômica.

Esse problema se agravou na década passada e continua sendo fonte de conflitos políticos e instabilidade social. Um dos países onde isso mais se acentuou foi a China, que é hoje uma das sociedades mais desiguais do mundo. Mas a atenção mundial à economia chinesa não decorreu de sua crescente desigualdade, mas de seu rápido crescimento econômico.

Entre 2010 e 2020, o gigante asiático mais que duplicou o tamanho de sua economia e, dependendo de como se calcule, é hoje a primeira ou a segunda maior economia do mundo. Nesse mesmo período, o regime chinês aprofundou seu autoritarismo. Em 2018, o presidente Xi Jinping manobrou para eliminar a norma da Constituição que desde 1982 limitava a presidência a dois mandatos de cinco anos. Graças a essa reforma constitucional, Xi poderá ser presidente por um período ilimitado.

A década passada também foi a década do Brexit, a inesperada e traumática retirada do Reino Unido da Comunidade Europeia. Também foi o período durante o qual se produziu um explosivo aumento da influência econômica, política e social de redes sociais como Facebook, YouTube, Instagram, Twitter ou TikTok. E das múltiplas guerras de Putin: os militares russos combateram na Geórgia, na Crimeia, em Abkházia, na Ossétia do Sul, na Síria e na Ucrânia. Nesses dez anos também vimos a ascensão de Donald Trump, sua conquista do Partido Republicano e da presidência dos Estados Unidos.

Muitos desses eventos foram forjados e impulsionados pelo acelerado aumento de usuários dos telefones inteligentes, os onipresentes smartphones. Hoje, mais de 6,5 bilhões de pessoas (84% da população mundial) possuem um telefone inteligente.

Enquanto tudo isso — e muito mais — distraía nossa atenção, um grupo de líderes autoritários se apropriou de um grande número de democracias no mundo.

Estatísticas, relatórios e evidências da deterioração da democracia no mundo são surpreendentes e preocupantes. Mais surpreendente ainda, porém, é a falta de respostas e a inação diante das afrontas das forças antidemocráticas.

Isso ocorre porque muitos dos ataques contra as democracias estão ocorrendo de uma maneira tão sigilosa que na prática se tornam quase invisíveis. Um problema não detectado jamais será solucionado. As democracias do mundo estão enfrentando um perigoso problema ainda não suficientemente reconhecido. Precisamos identificá-lo, torná-lo público e enfrentá-lo. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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