Monarquias do Golfo usam ataques virtuais como estratégia para reprimir opositores


Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos emergem como um poder digital no Oriente Médio para perseguir opositores, manipular a opinião pública e aproximar aliados

Por Carolina Marins
Atualização:

“Não fique brava, apenas ignore-os”, foi a última mensagem que a jornalista libanesa Ghada Oueiss recebeu do colega saudita Jamal Khashoggi apenas um mês antes de ele ser assassinado em um ataque cujo principal suspeito é o príncipe herdeiro da Arábia Saudita. O choque pela morte a faz reler a mensagem até hoje, pensando em como ela própria é alvo da mesma rede que perseguia o amigo na internet.

Ataques a jornalistas e ativistas, propaganda pró-governo, redes de desinformação e manipulação da realidade online têm sido uma estratégia adotada por regimes ditatoriais no Oriente Médio, não só de forma interna para silenciar opositores como Khashoggi e Oueiss, mas também visando a política externa. É uma diplomacia construída de forma virtual para gerar uma falsa legitimidade internacional e aproximar parceiros estratégicos.

“Eles” a quem Khashoggi se referia era uma rede de trolls que perseguia Ghada no Twitter. “Eu respondi: ‘obrigada pelo conselho, Jamal, mas preciso respondê-los para que todos vejam o quão ridículos são’”, contou uma das principais âncoras da Al Jazeera ao Estadão. A sua estratégia era responder com sarcasmo, até que a morte do amigo a fez refletir que a situação tinha como ir mais longe.

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Desde então, os ataques pioraram, com um spyware sendo implantado em seu telefone e fotos íntimas vazadas. Mas diferente do que Khashoggi sugeriu, ela optou por não ignorá-los. Em vez disso, está processando os dois príncipes herdeiros do golfo, Mohammed Bin Salman, da Arábia Saudita, e Mohammed Bin Zayed, de Abu Dhabi nos Emirados Árabes Unidos, além de empresas de cibersegurança.

Ambas as monarquias emergiram nos últimos anos como atores importantes do chamado “poder digital” no Oriente Médio. Com auxílio de perfis falsos, trolls (pessoas reais pagas para promover ataques online) e softwares de espionagem, esses governos perseguem não só jornalistas, como ativistas, entidades e nações vistas como inimigas, como Irã e a Irmandade Muçulmana. Bem como legitimar aproximações com outros países, como Israel.

Jamal Khashoggi, era editor-chefe do canal Al-Arab News e colunista do jornal The New York Times quando foi morto em 2018 Foto: OZAN KOSE / AFP
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“É uma combinação de repressão”, explica Marc Owen Jones, professor assistente na Universidade Hamad bin Khalifa, no Catar, que estuda desinformação no Oriente Médio há mais de 10 anos. “Nós vimos o que aconteceu com Jamal Khashoggi, vimos ativistas sendo presos. Mas também vimos a criação desses exércitos eletrônicos que tentam controlar a narrativa”.

Outras monarquias do golfo também possuem a mesma estratégia, como Catar e Bahrein, mas não com a mesma capacidade que os governos de Salman e Zayed.

“Os governos passaram a se envolver proativamente no uso dessas tecnologias não apenas para fins de controle doméstico e gestão da opinião pública, mas também para formar a opinião pública no exterior”, pontua Karabekir Akkoyunlu, professor de Política no Oriente Médio na Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres.

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A criação desse exército de desinformação se dá em um momento muito específico no Golfo Pérsico: com a ascensão de Salman (MBS) e Zayed (MBZ), que tentam remodelar seus países dentro de uma imagem de “modernidade” para a política externa, e a chegada de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos, que elevou o conceito de fake news na política e rasgou o acordo nuclear de seu país com o Irã, um inimigo das duas monarquias.

“Quando você tem essas mudanças profundas, você tenta convencer a sua população e outras nações a acompanhá-las. Isso cria uma necessidade de comunicação e o que aconteceu é que essa necessidade está sendo preenchida com todo esse tipo de contas falsas e desinformação”, pontua Jones.

Príncipe herdeiro de Abu Dhabi xeque Mohammed bin Zayed al-Nahyan Foto: HANNAH MCKAY
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Segundo ele, a aproximação dos EUA com o Irã, e posterior afastamento durante o governo Trump, foi um momento crítico de desinformação na região. “As políticas externas dos EUA, de MBS e de MBZ, têm empurrado para uma situação que criou muita desinformação, especialmente essa tensão com o Irã.”

O Irã, bem como outros alvos, tentam responder, mas com uma capacidade tecnológica bastante inferior. “O Irã está muito preso nessa rivalidade com eles e está tentando responder impulsionando sua própria agenda, controlando o que está chegando e empurrando sua própria propaganda através de vários tipos de meios”, afirma Akkoyunlu, cujo foco de pesquisa é justamente Irã e Turquia.

Essa desinformação pode ir desde contas falsas criadas apenas para curtir e comentar os tuítes dos príncipes para simular um suporte online, quanto técnicas complexas como a construção de narrativas pró esses governos em nações que, em teoria, não teriam envolvimento na política do golfo.

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“Quando os sauditas quiseram comprar o Newcastle United, o clube de futebol, muitas das desinformações e tensões entre Catar e sauditas se refletiram em torcedores no nordeste da Inglaterra que não tinham nada a ver com a política do golfo, mas que de repente estavam sendo influenciados por essas narrativas que estavam saindo do Oriente Médio”, exemplifica Jones.

E complementa: “Eu olhei para as contas no Twitter de Mohammed Bin Zayed e descobri que muitos, em alguns casos 90%, daqueles que retuitavam eram apenas contas falsas. Esse tipo de coisa é projetada para aumentar a mensagem, mas também há uma coisa de ego envolvida. Um líder não quer criar uma conta e ter só 100 seguidores.”

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Para pesquisadores é difícil dizer o quanto todo esse esforço de fato resulta em mudanças internas e externas de imagens. “Isso não afeta diretamente a diplomacia e as relações bilaterais porque essas iniciativas não são direcionadas a governos, mas sim para suas próprias populações, ou seja tentar chegar ao ouvido do povo saudita e dizer coisas que seu governo não quer que ouçam”, diz Akkoyunlu.

Pegasus e a espionagem de inimigos

O spyware israelense Pegasus entrou no centro dos debates após escândalos que revelaram o uso da ferramenta para espionar líderes e civis. O software se tornou alvo de debates inclusive no Brasil, após o vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, ter supostamente negociado a compra do sistema.

O Pegasus é um software que se instala no telefone de qualquer pessoa sem que o usuário necessite aprovar. É produzido pela empresa israelense NSO Group e só é vendido, segundo a empresa, para governos. Não é uma ferramenta de desinformação por si só e sim de vigilância, mas com ela é possível coletar informações pessoais e distorcer narrativas.

Foi exatamente o que aconteceu com Ghada. Ela soube que o software estava instalado em seu celular quando viu fotos suas de biquíni sendo compartilhadas nas redes em maio de 2020. Os trolls diziam que as fotos haviam sido feitas na casa do xeque Hamad Bin Thamer Al-Thani, presidente do conselho da Al-Jazeera.

Ghada Oueiss, jornalista libanesa da Al-Jazeera Foto: Arquivo pessoal

“Eu sabia que eles iam me atacar, mas não esperava que eles gastariam milhões de dólares só para arruinar a minha reputação”, desabafou a jornalista. “É como se eles quisessem me torturar psicologicamente porque não podiam fazer fisicamente. Foi como um tipo de estupro ou tortura, mas feito com um controle remoto.”

O “eles” a quem ela se refere são os governos saudita e árabe, afinal, embora ela não saiba exatamente quem implantou o software em seu aparelho, ela sabe que a espionagem veio de um governo. O Estadão procurou os governos da Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos por meio de suas embaixadas no Brasil, mas não obteve respostas.

Esta também foi a única certeza que teve Lama Fakih, diretora da Divisão de Oriente Médio e Norte da África do Humans Right Watch quando seu telefone também foi invadido em novembro de 2021. Ela só soube que estava sendo monitorada quando recebeu uma mensagem da Apple avisando da suspeita.

“Eu estava na minha mesa de trabalho quando recebi a notificação indicando que eles suspeitavam que eu havia sido objeto de vigilância estatal”, contou Lama. “Honestamente, no começo eu não acreditei.”

Segundo ela, os ataques ao seu trabalho sempre existiram, mas aumentaram depois que ela se tornou diretora da divisão de Oriente Médio e, principalmente, depois que ela passou a investigar a enorme explosão no porto de Beirute em agosto de 2020. Até hoje ela não sabe quem é o governo por trás da vigilância.

“A NSO diz que sua tecnologia é usada para combater terrorismo, mas pelo meu trabalho, e pelo fato de eu própria ter sido vítima de um ataque, eu sei que isso não é verdade”, desabafa.

Lama Fakih, diretora da Divisão de Oriente Médio e Norte da África do Humans Right Watch Foto: Arquivo pessoal

A NSO é uma empresa privada de Israel, e o governo do então premiê Binyamin Netanyahu tentou dissociar sua imagem do escândalo de espionagem. Mas uma investigação do The New York Times publicada em janeiro deste ano revelou que Israel obteve ganhos diplomáticos com o software.

“Não importa o que eles digam, é uma forma de estabelecer relacionamentos”, afirma Marc Owen Jones. “Israel só vai vender o Pegasus para aqueles países com os quais eles têm uma visão semelhante sobre política externa. Por exemplo: eu sou Israel e eu não gosto do Hamas, do Irã e da Irmandade Muçulmana, assim como a Arábia Saudita e os Emirados também não gostam, então posso vender a eles essa tecnologia e eles vão usá-la contra meu inimigos.”

Karabekir explica que o uso de propaganda e tentativas de moldar a opinião pública são considerados nas relações internacionais um tipo de “soft power”. Mas este uso, focando em ataques e vigilância, entra em uma zona cinzenta entre o soft e o hard power.

“A própria venda do Pegasus, ou seja, o caminho que Israel está fazendo não é diferente de vender armas. Quando falamos sobre armas cibernéticas, especialmente esse tipo de capacidade de spyware de rastrear conversas privadas, isso é uma verdadeira arma da nossa época. Propaganda computacional e hacking são parte de uma política muito mais dura”.

“Não fique brava, apenas ignore-os”, foi a última mensagem que a jornalista libanesa Ghada Oueiss recebeu do colega saudita Jamal Khashoggi apenas um mês antes de ele ser assassinado em um ataque cujo principal suspeito é o príncipe herdeiro da Arábia Saudita. O choque pela morte a faz reler a mensagem até hoje, pensando em como ela própria é alvo da mesma rede que perseguia o amigo na internet.

Ataques a jornalistas e ativistas, propaganda pró-governo, redes de desinformação e manipulação da realidade online têm sido uma estratégia adotada por regimes ditatoriais no Oriente Médio, não só de forma interna para silenciar opositores como Khashoggi e Oueiss, mas também visando a política externa. É uma diplomacia construída de forma virtual para gerar uma falsa legitimidade internacional e aproximar parceiros estratégicos.

“Eles” a quem Khashoggi se referia era uma rede de trolls que perseguia Ghada no Twitter. “Eu respondi: ‘obrigada pelo conselho, Jamal, mas preciso respondê-los para que todos vejam o quão ridículos são’”, contou uma das principais âncoras da Al Jazeera ao Estadão. A sua estratégia era responder com sarcasmo, até que a morte do amigo a fez refletir que a situação tinha como ir mais longe.

Desde então, os ataques pioraram, com um spyware sendo implantado em seu telefone e fotos íntimas vazadas. Mas diferente do que Khashoggi sugeriu, ela optou por não ignorá-los. Em vez disso, está processando os dois príncipes herdeiros do golfo, Mohammed Bin Salman, da Arábia Saudita, e Mohammed Bin Zayed, de Abu Dhabi nos Emirados Árabes Unidos, além de empresas de cibersegurança.

Ambas as monarquias emergiram nos últimos anos como atores importantes do chamado “poder digital” no Oriente Médio. Com auxílio de perfis falsos, trolls (pessoas reais pagas para promover ataques online) e softwares de espionagem, esses governos perseguem não só jornalistas, como ativistas, entidades e nações vistas como inimigas, como Irã e a Irmandade Muçulmana. Bem como legitimar aproximações com outros países, como Israel.

Jamal Khashoggi, era editor-chefe do canal Al-Arab News e colunista do jornal The New York Times quando foi morto em 2018 Foto: OZAN KOSE / AFP

“É uma combinação de repressão”, explica Marc Owen Jones, professor assistente na Universidade Hamad bin Khalifa, no Catar, que estuda desinformação no Oriente Médio há mais de 10 anos. “Nós vimos o que aconteceu com Jamal Khashoggi, vimos ativistas sendo presos. Mas também vimos a criação desses exércitos eletrônicos que tentam controlar a narrativa”.

Outras monarquias do golfo também possuem a mesma estratégia, como Catar e Bahrein, mas não com a mesma capacidade que os governos de Salman e Zayed.

“Os governos passaram a se envolver proativamente no uso dessas tecnologias não apenas para fins de controle doméstico e gestão da opinião pública, mas também para formar a opinião pública no exterior”, pontua Karabekir Akkoyunlu, professor de Política no Oriente Médio na Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres.

A criação desse exército de desinformação se dá em um momento muito específico no Golfo Pérsico: com a ascensão de Salman (MBS) e Zayed (MBZ), que tentam remodelar seus países dentro de uma imagem de “modernidade” para a política externa, e a chegada de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos, que elevou o conceito de fake news na política e rasgou o acordo nuclear de seu país com o Irã, um inimigo das duas monarquias.

“Quando você tem essas mudanças profundas, você tenta convencer a sua população e outras nações a acompanhá-las. Isso cria uma necessidade de comunicação e o que aconteceu é que essa necessidade está sendo preenchida com todo esse tipo de contas falsas e desinformação”, pontua Jones.

Príncipe herdeiro de Abu Dhabi xeque Mohammed bin Zayed al-Nahyan Foto: HANNAH MCKAY

Segundo ele, a aproximação dos EUA com o Irã, e posterior afastamento durante o governo Trump, foi um momento crítico de desinformação na região. “As políticas externas dos EUA, de MBS e de MBZ, têm empurrado para uma situação que criou muita desinformação, especialmente essa tensão com o Irã.”

O Irã, bem como outros alvos, tentam responder, mas com uma capacidade tecnológica bastante inferior. “O Irã está muito preso nessa rivalidade com eles e está tentando responder impulsionando sua própria agenda, controlando o que está chegando e empurrando sua própria propaganda através de vários tipos de meios”, afirma Akkoyunlu, cujo foco de pesquisa é justamente Irã e Turquia.

Essa desinformação pode ir desde contas falsas criadas apenas para curtir e comentar os tuítes dos príncipes para simular um suporte online, quanto técnicas complexas como a construção de narrativas pró esses governos em nações que, em teoria, não teriam envolvimento na política do golfo.

“Quando os sauditas quiseram comprar o Newcastle United, o clube de futebol, muitas das desinformações e tensões entre Catar e sauditas se refletiram em torcedores no nordeste da Inglaterra que não tinham nada a ver com a política do golfo, mas que de repente estavam sendo influenciados por essas narrativas que estavam saindo do Oriente Médio”, exemplifica Jones.

E complementa: “Eu olhei para as contas no Twitter de Mohammed Bin Zayed e descobri que muitos, em alguns casos 90%, daqueles que retuitavam eram apenas contas falsas. Esse tipo de coisa é projetada para aumentar a mensagem, mas também há uma coisa de ego envolvida. Um líder não quer criar uma conta e ter só 100 seguidores.”

Para pesquisadores é difícil dizer o quanto todo esse esforço de fato resulta em mudanças internas e externas de imagens. “Isso não afeta diretamente a diplomacia e as relações bilaterais porque essas iniciativas não são direcionadas a governos, mas sim para suas próprias populações, ou seja tentar chegar ao ouvido do povo saudita e dizer coisas que seu governo não quer que ouçam”, diz Akkoyunlu.

Pegasus e a espionagem de inimigos

O spyware israelense Pegasus entrou no centro dos debates após escândalos que revelaram o uso da ferramenta para espionar líderes e civis. O software se tornou alvo de debates inclusive no Brasil, após o vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, ter supostamente negociado a compra do sistema.

O Pegasus é um software que se instala no telefone de qualquer pessoa sem que o usuário necessite aprovar. É produzido pela empresa israelense NSO Group e só é vendido, segundo a empresa, para governos. Não é uma ferramenta de desinformação por si só e sim de vigilância, mas com ela é possível coletar informações pessoais e distorcer narrativas.

Foi exatamente o que aconteceu com Ghada. Ela soube que o software estava instalado em seu celular quando viu fotos suas de biquíni sendo compartilhadas nas redes em maio de 2020. Os trolls diziam que as fotos haviam sido feitas na casa do xeque Hamad Bin Thamer Al-Thani, presidente do conselho da Al-Jazeera.

Ghada Oueiss, jornalista libanesa da Al-Jazeera Foto: Arquivo pessoal

“Eu sabia que eles iam me atacar, mas não esperava que eles gastariam milhões de dólares só para arruinar a minha reputação”, desabafou a jornalista. “É como se eles quisessem me torturar psicologicamente porque não podiam fazer fisicamente. Foi como um tipo de estupro ou tortura, mas feito com um controle remoto.”

O “eles” a quem ela se refere são os governos saudita e árabe, afinal, embora ela não saiba exatamente quem implantou o software em seu aparelho, ela sabe que a espionagem veio de um governo. O Estadão procurou os governos da Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos por meio de suas embaixadas no Brasil, mas não obteve respostas.

Esta também foi a única certeza que teve Lama Fakih, diretora da Divisão de Oriente Médio e Norte da África do Humans Right Watch quando seu telefone também foi invadido em novembro de 2021. Ela só soube que estava sendo monitorada quando recebeu uma mensagem da Apple avisando da suspeita.

“Eu estava na minha mesa de trabalho quando recebi a notificação indicando que eles suspeitavam que eu havia sido objeto de vigilância estatal”, contou Lama. “Honestamente, no começo eu não acreditei.”

Segundo ela, os ataques ao seu trabalho sempre existiram, mas aumentaram depois que ela se tornou diretora da divisão de Oriente Médio e, principalmente, depois que ela passou a investigar a enorme explosão no porto de Beirute em agosto de 2020. Até hoje ela não sabe quem é o governo por trás da vigilância.

“A NSO diz que sua tecnologia é usada para combater terrorismo, mas pelo meu trabalho, e pelo fato de eu própria ter sido vítima de um ataque, eu sei que isso não é verdade”, desabafa.

Lama Fakih, diretora da Divisão de Oriente Médio e Norte da África do Humans Right Watch Foto: Arquivo pessoal

A NSO é uma empresa privada de Israel, e o governo do então premiê Binyamin Netanyahu tentou dissociar sua imagem do escândalo de espionagem. Mas uma investigação do The New York Times publicada em janeiro deste ano revelou que Israel obteve ganhos diplomáticos com o software.

“Não importa o que eles digam, é uma forma de estabelecer relacionamentos”, afirma Marc Owen Jones. “Israel só vai vender o Pegasus para aqueles países com os quais eles têm uma visão semelhante sobre política externa. Por exemplo: eu sou Israel e eu não gosto do Hamas, do Irã e da Irmandade Muçulmana, assim como a Arábia Saudita e os Emirados também não gostam, então posso vender a eles essa tecnologia e eles vão usá-la contra meu inimigos.”

Karabekir explica que o uso de propaganda e tentativas de moldar a opinião pública são considerados nas relações internacionais um tipo de “soft power”. Mas este uso, focando em ataques e vigilância, entra em uma zona cinzenta entre o soft e o hard power.

“A própria venda do Pegasus, ou seja, o caminho que Israel está fazendo não é diferente de vender armas. Quando falamos sobre armas cibernéticas, especialmente esse tipo de capacidade de spyware de rastrear conversas privadas, isso é uma verdadeira arma da nossa época. Propaganda computacional e hacking são parte de uma política muito mais dura”.

“Não fique brava, apenas ignore-os”, foi a última mensagem que a jornalista libanesa Ghada Oueiss recebeu do colega saudita Jamal Khashoggi apenas um mês antes de ele ser assassinado em um ataque cujo principal suspeito é o príncipe herdeiro da Arábia Saudita. O choque pela morte a faz reler a mensagem até hoje, pensando em como ela própria é alvo da mesma rede que perseguia o amigo na internet.

Ataques a jornalistas e ativistas, propaganda pró-governo, redes de desinformação e manipulação da realidade online têm sido uma estratégia adotada por regimes ditatoriais no Oriente Médio, não só de forma interna para silenciar opositores como Khashoggi e Oueiss, mas também visando a política externa. É uma diplomacia construída de forma virtual para gerar uma falsa legitimidade internacional e aproximar parceiros estratégicos.

“Eles” a quem Khashoggi se referia era uma rede de trolls que perseguia Ghada no Twitter. “Eu respondi: ‘obrigada pelo conselho, Jamal, mas preciso respondê-los para que todos vejam o quão ridículos são’”, contou uma das principais âncoras da Al Jazeera ao Estadão. A sua estratégia era responder com sarcasmo, até que a morte do amigo a fez refletir que a situação tinha como ir mais longe.

Desde então, os ataques pioraram, com um spyware sendo implantado em seu telefone e fotos íntimas vazadas. Mas diferente do que Khashoggi sugeriu, ela optou por não ignorá-los. Em vez disso, está processando os dois príncipes herdeiros do golfo, Mohammed Bin Salman, da Arábia Saudita, e Mohammed Bin Zayed, de Abu Dhabi nos Emirados Árabes Unidos, além de empresas de cibersegurança.

Ambas as monarquias emergiram nos últimos anos como atores importantes do chamado “poder digital” no Oriente Médio. Com auxílio de perfis falsos, trolls (pessoas reais pagas para promover ataques online) e softwares de espionagem, esses governos perseguem não só jornalistas, como ativistas, entidades e nações vistas como inimigas, como Irã e a Irmandade Muçulmana. Bem como legitimar aproximações com outros países, como Israel.

Jamal Khashoggi, era editor-chefe do canal Al-Arab News e colunista do jornal The New York Times quando foi morto em 2018 Foto: OZAN KOSE / AFP

“É uma combinação de repressão”, explica Marc Owen Jones, professor assistente na Universidade Hamad bin Khalifa, no Catar, que estuda desinformação no Oriente Médio há mais de 10 anos. “Nós vimos o que aconteceu com Jamal Khashoggi, vimos ativistas sendo presos. Mas também vimos a criação desses exércitos eletrônicos que tentam controlar a narrativa”.

Outras monarquias do golfo também possuem a mesma estratégia, como Catar e Bahrein, mas não com a mesma capacidade que os governos de Salman e Zayed.

“Os governos passaram a se envolver proativamente no uso dessas tecnologias não apenas para fins de controle doméstico e gestão da opinião pública, mas também para formar a opinião pública no exterior”, pontua Karabekir Akkoyunlu, professor de Política no Oriente Médio na Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres.

A criação desse exército de desinformação se dá em um momento muito específico no Golfo Pérsico: com a ascensão de Salman (MBS) e Zayed (MBZ), que tentam remodelar seus países dentro de uma imagem de “modernidade” para a política externa, e a chegada de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos, que elevou o conceito de fake news na política e rasgou o acordo nuclear de seu país com o Irã, um inimigo das duas monarquias.

“Quando você tem essas mudanças profundas, você tenta convencer a sua população e outras nações a acompanhá-las. Isso cria uma necessidade de comunicação e o que aconteceu é que essa necessidade está sendo preenchida com todo esse tipo de contas falsas e desinformação”, pontua Jones.

Príncipe herdeiro de Abu Dhabi xeque Mohammed bin Zayed al-Nahyan Foto: HANNAH MCKAY

Segundo ele, a aproximação dos EUA com o Irã, e posterior afastamento durante o governo Trump, foi um momento crítico de desinformação na região. “As políticas externas dos EUA, de MBS e de MBZ, têm empurrado para uma situação que criou muita desinformação, especialmente essa tensão com o Irã.”

O Irã, bem como outros alvos, tentam responder, mas com uma capacidade tecnológica bastante inferior. “O Irã está muito preso nessa rivalidade com eles e está tentando responder impulsionando sua própria agenda, controlando o que está chegando e empurrando sua própria propaganda através de vários tipos de meios”, afirma Akkoyunlu, cujo foco de pesquisa é justamente Irã e Turquia.

Essa desinformação pode ir desde contas falsas criadas apenas para curtir e comentar os tuítes dos príncipes para simular um suporte online, quanto técnicas complexas como a construção de narrativas pró esses governos em nações que, em teoria, não teriam envolvimento na política do golfo.

“Quando os sauditas quiseram comprar o Newcastle United, o clube de futebol, muitas das desinformações e tensões entre Catar e sauditas se refletiram em torcedores no nordeste da Inglaterra que não tinham nada a ver com a política do golfo, mas que de repente estavam sendo influenciados por essas narrativas que estavam saindo do Oriente Médio”, exemplifica Jones.

E complementa: “Eu olhei para as contas no Twitter de Mohammed Bin Zayed e descobri que muitos, em alguns casos 90%, daqueles que retuitavam eram apenas contas falsas. Esse tipo de coisa é projetada para aumentar a mensagem, mas também há uma coisa de ego envolvida. Um líder não quer criar uma conta e ter só 100 seguidores.”

Para pesquisadores é difícil dizer o quanto todo esse esforço de fato resulta em mudanças internas e externas de imagens. “Isso não afeta diretamente a diplomacia e as relações bilaterais porque essas iniciativas não são direcionadas a governos, mas sim para suas próprias populações, ou seja tentar chegar ao ouvido do povo saudita e dizer coisas que seu governo não quer que ouçam”, diz Akkoyunlu.

Pegasus e a espionagem de inimigos

O spyware israelense Pegasus entrou no centro dos debates após escândalos que revelaram o uso da ferramenta para espionar líderes e civis. O software se tornou alvo de debates inclusive no Brasil, após o vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, ter supostamente negociado a compra do sistema.

O Pegasus é um software que se instala no telefone de qualquer pessoa sem que o usuário necessite aprovar. É produzido pela empresa israelense NSO Group e só é vendido, segundo a empresa, para governos. Não é uma ferramenta de desinformação por si só e sim de vigilância, mas com ela é possível coletar informações pessoais e distorcer narrativas.

Foi exatamente o que aconteceu com Ghada. Ela soube que o software estava instalado em seu celular quando viu fotos suas de biquíni sendo compartilhadas nas redes em maio de 2020. Os trolls diziam que as fotos haviam sido feitas na casa do xeque Hamad Bin Thamer Al-Thani, presidente do conselho da Al-Jazeera.

Ghada Oueiss, jornalista libanesa da Al-Jazeera Foto: Arquivo pessoal

“Eu sabia que eles iam me atacar, mas não esperava que eles gastariam milhões de dólares só para arruinar a minha reputação”, desabafou a jornalista. “É como se eles quisessem me torturar psicologicamente porque não podiam fazer fisicamente. Foi como um tipo de estupro ou tortura, mas feito com um controle remoto.”

O “eles” a quem ela se refere são os governos saudita e árabe, afinal, embora ela não saiba exatamente quem implantou o software em seu aparelho, ela sabe que a espionagem veio de um governo. O Estadão procurou os governos da Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos por meio de suas embaixadas no Brasil, mas não obteve respostas.

Esta também foi a única certeza que teve Lama Fakih, diretora da Divisão de Oriente Médio e Norte da África do Humans Right Watch quando seu telefone também foi invadido em novembro de 2021. Ela só soube que estava sendo monitorada quando recebeu uma mensagem da Apple avisando da suspeita.

“Eu estava na minha mesa de trabalho quando recebi a notificação indicando que eles suspeitavam que eu havia sido objeto de vigilância estatal”, contou Lama. “Honestamente, no começo eu não acreditei.”

Segundo ela, os ataques ao seu trabalho sempre existiram, mas aumentaram depois que ela se tornou diretora da divisão de Oriente Médio e, principalmente, depois que ela passou a investigar a enorme explosão no porto de Beirute em agosto de 2020. Até hoje ela não sabe quem é o governo por trás da vigilância.

“A NSO diz que sua tecnologia é usada para combater terrorismo, mas pelo meu trabalho, e pelo fato de eu própria ter sido vítima de um ataque, eu sei que isso não é verdade”, desabafa.

Lama Fakih, diretora da Divisão de Oriente Médio e Norte da África do Humans Right Watch Foto: Arquivo pessoal

A NSO é uma empresa privada de Israel, e o governo do então premiê Binyamin Netanyahu tentou dissociar sua imagem do escândalo de espionagem. Mas uma investigação do The New York Times publicada em janeiro deste ano revelou que Israel obteve ganhos diplomáticos com o software.

“Não importa o que eles digam, é uma forma de estabelecer relacionamentos”, afirma Marc Owen Jones. “Israel só vai vender o Pegasus para aqueles países com os quais eles têm uma visão semelhante sobre política externa. Por exemplo: eu sou Israel e eu não gosto do Hamas, do Irã e da Irmandade Muçulmana, assim como a Arábia Saudita e os Emirados também não gostam, então posso vender a eles essa tecnologia e eles vão usá-la contra meu inimigos.”

Karabekir explica que o uso de propaganda e tentativas de moldar a opinião pública são considerados nas relações internacionais um tipo de “soft power”. Mas este uso, focando em ataques e vigilância, entra em uma zona cinzenta entre o soft e o hard power.

“A própria venda do Pegasus, ou seja, o caminho que Israel está fazendo não é diferente de vender armas. Quando falamos sobre armas cibernéticas, especialmente esse tipo de capacidade de spyware de rastrear conversas privadas, isso é uma verdadeira arma da nossa época. Propaganda computacional e hacking são parte de uma política muito mais dura”.

“Não fique brava, apenas ignore-os”, foi a última mensagem que a jornalista libanesa Ghada Oueiss recebeu do colega saudita Jamal Khashoggi apenas um mês antes de ele ser assassinado em um ataque cujo principal suspeito é o príncipe herdeiro da Arábia Saudita. O choque pela morte a faz reler a mensagem até hoje, pensando em como ela própria é alvo da mesma rede que perseguia o amigo na internet.

Ataques a jornalistas e ativistas, propaganda pró-governo, redes de desinformação e manipulação da realidade online têm sido uma estratégia adotada por regimes ditatoriais no Oriente Médio, não só de forma interna para silenciar opositores como Khashoggi e Oueiss, mas também visando a política externa. É uma diplomacia construída de forma virtual para gerar uma falsa legitimidade internacional e aproximar parceiros estratégicos.

“Eles” a quem Khashoggi se referia era uma rede de trolls que perseguia Ghada no Twitter. “Eu respondi: ‘obrigada pelo conselho, Jamal, mas preciso respondê-los para que todos vejam o quão ridículos são’”, contou uma das principais âncoras da Al Jazeera ao Estadão. A sua estratégia era responder com sarcasmo, até que a morte do amigo a fez refletir que a situação tinha como ir mais longe.

Desde então, os ataques pioraram, com um spyware sendo implantado em seu telefone e fotos íntimas vazadas. Mas diferente do que Khashoggi sugeriu, ela optou por não ignorá-los. Em vez disso, está processando os dois príncipes herdeiros do golfo, Mohammed Bin Salman, da Arábia Saudita, e Mohammed Bin Zayed, de Abu Dhabi nos Emirados Árabes Unidos, além de empresas de cibersegurança.

Ambas as monarquias emergiram nos últimos anos como atores importantes do chamado “poder digital” no Oriente Médio. Com auxílio de perfis falsos, trolls (pessoas reais pagas para promover ataques online) e softwares de espionagem, esses governos perseguem não só jornalistas, como ativistas, entidades e nações vistas como inimigas, como Irã e a Irmandade Muçulmana. Bem como legitimar aproximações com outros países, como Israel.

Jamal Khashoggi, era editor-chefe do canal Al-Arab News e colunista do jornal The New York Times quando foi morto em 2018 Foto: OZAN KOSE / AFP

“É uma combinação de repressão”, explica Marc Owen Jones, professor assistente na Universidade Hamad bin Khalifa, no Catar, que estuda desinformação no Oriente Médio há mais de 10 anos. “Nós vimos o que aconteceu com Jamal Khashoggi, vimos ativistas sendo presos. Mas também vimos a criação desses exércitos eletrônicos que tentam controlar a narrativa”.

Outras monarquias do golfo também possuem a mesma estratégia, como Catar e Bahrein, mas não com a mesma capacidade que os governos de Salman e Zayed.

“Os governos passaram a se envolver proativamente no uso dessas tecnologias não apenas para fins de controle doméstico e gestão da opinião pública, mas também para formar a opinião pública no exterior”, pontua Karabekir Akkoyunlu, professor de Política no Oriente Médio na Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres.

A criação desse exército de desinformação se dá em um momento muito específico no Golfo Pérsico: com a ascensão de Salman (MBS) e Zayed (MBZ), que tentam remodelar seus países dentro de uma imagem de “modernidade” para a política externa, e a chegada de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos, que elevou o conceito de fake news na política e rasgou o acordo nuclear de seu país com o Irã, um inimigo das duas monarquias.

“Quando você tem essas mudanças profundas, você tenta convencer a sua população e outras nações a acompanhá-las. Isso cria uma necessidade de comunicação e o que aconteceu é que essa necessidade está sendo preenchida com todo esse tipo de contas falsas e desinformação”, pontua Jones.

Príncipe herdeiro de Abu Dhabi xeque Mohammed bin Zayed al-Nahyan Foto: HANNAH MCKAY

Segundo ele, a aproximação dos EUA com o Irã, e posterior afastamento durante o governo Trump, foi um momento crítico de desinformação na região. “As políticas externas dos EUA, de MBS e de MBZ, têm empurrado para uma situação que criou muita desinformação, especialmente essa tensão com o Irã.”

O Irã, bem como outros alvos, tentam responder, mas com uma capacidade tecnológica bastante inferior. “O Irã está muito preso nessa rivalidade com eles e está tentando responder impulsionando sua própria agenda, controlando o que está chegando e empurrando sua própria propaganda através de vários tipos de meios”, afirma Akkoyunlu, cujo foco de pesquisa é justamente Irã e Turquia.

Essa desinformação pode ir desde contas falsas criadas apenas para curtir e comentar os tuítes dos príncipes para simular um suporte online, quanto técnicas complexas como a construção de narrativas pró esses governos em nações que, em teoria, não teriam envolvimento na política do golfo.

“Quando os sauditas quiseram comprar o Newcastle United, o clube de futebol, muitas das desinformações e tensões entre Catar e sauditas se refletiram em torcedores no nordeste da Inglaterra que não tinham nada a ver com a política do golfo, mas que de repente estavam sendo influenciados por essas narrativas que estavam saindo do Oriente Médio”, exemplifica Jones.

E complementa: “Eu olhei para as contas no Twitter de Mohammed Bin Zayed e descobri que muitos, em alguns casos 90%, daqueles que retuitavam eram apenas contas falsas. Esse tipo de coisa é projetada para aumentar a mensagem, mas também há uma coisa de ego envolvida. Um líder não quer criar uma conta e ter só 100 seguidores.”

Para pesquisadores é difícil dizer o quanto todo esse esforço de fato resulta em mudanças internas e externas de imagens. “Isso não afeta diretamente a diplomacia e as relações bilaterais porque essas iniciativas não são direcionadas a governos, mas sim para suas próprias populações, ou seja tentar chegar ao ouvido do povo saudita e dizer coisas que seu governo não quer que ouçam”, diz Akkoyunlu.

Pegasus e a espionagem de inimigos

O spyware israelense Pegasus entrou no centro dos debates após escândalos que revelaram o uso da ferramenta para espionar líderes e civis. O software se tornou alvo de debates inclusive no Brasil, após o vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, ter supostamente negociado a compra do sistema.

O Pegasus é um software que se instala no telefone de qualquer pessoa sem que o usuário necessite aprovar. É produzido pela empresa israelense NSO Group e só é vendido, segundo a empresa, para governos. Não é uma ferramenta de desinformação por si só e sim de vigilância, mas com ela é possível coletar informações pessoais e distorcer narrativas.

Foi exatamente o que aconteceu com Ghada. Ela soube que o software estava instalado em seu celular quando viu fotos suas de biquíni sendo compartilhadas nas redes em maio de 2020. Os trolls diziam que as fotos haviam sido feitas na casa do xeque Hamad Bin Thamer Al-Thani, presidente do conselho da Al-Jazeera.

Ghada Oueiss, jornalista libanesa da Al-Jazeera Foto: Arquivo pessoal

“Eu sabia que eles iam me atacar, mas não esperava que eles gastariam milhões de dólares só para arruinar a minha reputação”, desabafou a jornalista. “É como se eles quisessem me torturar psicologicamente porque não podiam fazer fisicamente. Foi como um tipo de estupro ou tortura, mas feito com um controle remoto.”

O “eles” a quem ela se refere são os governos saudita e árabe, afinal, embora ela não saiba exatamente quem implantou o software em seu aparelho, ela sabe que a espionagem veio de um governo. O Estadão procurou os governos da Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos por meio de suas embaixadas no Brasil, mas não obteve respostas.

Esta também foi a única certeza que teve Lama Fakih, diretora da Divisão de Oriente Médio e Norte da África do Humans Right Watch quando seu telefone também foi invadido em novembro de 2021. Ela só soube que estava sendo monitorada quando recebeu uma mensagem da Apple avisando da suspeita.

“Eu estava na minha mesa de trabalho quando recebi a notificação indicando que eles suspeitavam que eu havia sido objeto de vigilância estatal”, contou Lama. “Honestamente, no começo eu não acreditei.”

Segundo ela, os ataques ao seu trabalho sempre existiram, mas aumentaram depois que ela se tornou diretora da divisão de Oriente Médio e, principalmente, depois que ela passou a investigar a enorme explosão no porto de Beirute em agosto de 2020. Até hoje ela não sabe quem é o governo por trás da vigilância.

“A NSO diz que sua tecnologia é usada para combater terrorismo, mas pelo meu trabalho, e pelo fato de eu própria ter sido vítima de um ataque, eu sei que isso não é verdade”, desabafa.

Lama Fakih, diretora da Divisão de Oriente Médio e Norte da África do Humans Right Watch Foto: Arquivo pessoal

A NSO é uma empresa privada de Israel, e o governo do então premiê Binyamin Netanyahu tentou dissociar sua imagem do escândalo de espionagem. Mas uma investigação do The New York Times publicada em janeiro deste ano revelou que Israel obteve ganhos diplomáticos com o software.

“Não importa o que eles digam, é uma forma de estabelecer relacionamentos”, afirma Marc Owen Jones. “Israel só vai vender o Pegasus para aqueles países com os quais eles têm uma visão semelhante sobre política externa. Por exemplo: eu sou Israel e eu não gosto do Hamas, do Irã e da Irmandade Muçulmana, assim como a Arábia Saudita e os Emirados também não gostam, então posso vender a eles essa tecnologia e eles vão usá-la contra meu inimigos.”

Karabekir explica que o uso de propaganda e tentativas de moldar a opinião pública são considerados nas relações internacionais um tipo de “soft power”. Mas este uso, focando em ataques e vigilância, entra em uma zona cinzenta entre o soft e o hard power.

“A própria venda do Pegasus, ou seja, o caminho que Israel está fazendo não é diferente de vender armas. Quando falamos sobre armas cibernéticas, especialmente esse tipo de capacidade de spyware de rastrear conversas privadas, isso é uma verdadeira arma da nossa época. Propaganda computacional e hacking são parte de uma política muito mais dura”.

“Não fique brava, apenas ignore-os”, foi a última mensagem que a jornalista libanesa Ghada Oueiss recebeu do colega saudita Jamal Khashoggi apenas um mês antes de ele ser assassinado em um ataque cujo principal suspeito é o príncipe herdeiro da Arábia Saudita. O choque pela morte a faz reler a mensagem até hoje, pensando em como ela própria é alvo da mesma rede que perseguia o amigo na internet.

Ataques a jornalistas e ativistas, propaganda pró-governo, redes de desinformação e manipulação da realidade online têm sido uma estratégia adotada por regimes ditatoriais no Oriente Médio, não só de forma interna para silenciar opositores como Khashoggi e Oueiss, mas também visando a política externa. É uma diplomacia construída de forma virtual para gerar uma falsa legitimidade internacional e aproximar parceiros estratégicos.

“Eles” a quem Khashoggi se referia era uma rede de trolls que perseguia Ghada no Twitter. “Eu respondi: ‘obrigada pelo conselho, Jamal, mas preciso respondê-los para que todos vejam o quão ridículos são’”, contou uma das principais âncoras da Al Jazeera ao Estadão. A sua estratégia era responder com sarcasmo, até que a morte do amigo a fez refletir que a situação tinha como ir mais longe.

Desde então, os ataques pioraram, com um spyware sendo implantado em seu telefone e fotos íntimas vazadas. Mas diferente do que Khashoggi sugeriu, ela optou por não ignorá-los. Em vez disso, está processando os dois príncipes herdeiros do golfo, Mohammed Bin Salman, da Arábia Saudita, e Mohammed Bin Zayed, de Abu Dhabi nos Emirados Árabes Unidos, além de empresas de cibersegurança.

Ambas as monarquias emergiram nos últimos anos como atores importantes do chamado “poder digital” no Oriente Médio. Com auxílio de perfis falsos, trolls (pessoas reais pagas para promover ataques online) e softwares de espionagem, esses governos perseguem não só jornalistas, como ativistas, entidades e nações vistas como inimigas, como Irã e a Irmandade Muçulmana. Bem como legitimar aproximações com outros países, como Israel.

Jamal Khashoggi, era editor-chefe do canal Al-Arab News e colunista do jornal The New York Times quando foi morto em 2018 Foto: OZAN KOSE / AFP

“É uma combinação de repressão”, explica Marc Owen Jones, professor assistente na Universidade Hamad bin Khalifa, no Catar, que estuda desinformação no Oriente Médio há mais de 10 anos. “Nós vimos o que aconteceu com Jamal Khashoggi, vimos ativistas sendo presos. Mas também vimos a criação desses exércitos eletrônicos que tentam controlar a narrativa”.

Outras monarquias do golfo também possuem a mesma estratégia, como Catar e Bahrein, mas não com a mesma capacidade que os governos de Salman e Zayed.

“Os governos passaram a se envolver proativamente no uso dessas tecnologias não apenas para fins de controle doméstico e gestão da opinião pública, mas também para formar a opinião pública no exterior”, pontua Karabekir Akkoyunlu, professor de Política no Oriente Médio na Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres.

A criação desse exército de desinformação se dá em um momento muito específico no Golfo Pérsico: com a ascensão de Salman (MBS) e Zayed (MBZ), que tentam remodelar seus países dentro de uma imagem de “modernidade” para a política externa, e a chegada de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos, que elevou o conceito de fake news na política e rasgou o acordo nuclear de seu país com o Irã, um inimigo das duas monarquias.

“Quando você tem essas mudanças profundas, você tenta convencer a sua população e outras nações a acompanhá-las. Isso cria uma necessidade de comunicação e o que aconteceu é que essa necessidade está sendo preenchida com todo esse tipo de contas falsas e desinformação”, pontua Jones.

Príncipe herdeiro de Abu Dhabi xeque Mohammed bin Zayed al-Nahyan Foto: HANNAH MCKAY

Segundo ele, a aproximação dos EUA com o Irã, e posterior afastamento durante o governo Trump, foi um momento crítico de desinformação na região. “As políticas externas dos EUA, de MBS e de MBZ, têm empurrado para uma situação que criou muita desinformação, especialmente essa tensão com o Irã.”

O Irã, bem como outros alvos, tentam responder, mas com uma capacidade tecnológica bastante inferior. “O Irã está muito preso nessa rivalidade com eles e está tentando responder impulsionando sua própria agenda, controlando o que está chegando e empurrando sua própria propaganda através de vários tipos de meios”, afirma Akkoyunlu, cujo foco de pesquisa é justamente Irã e Turquia.

Essa desinformação pode ir desde contas falsas criadas apenas para curtir e comentar os tuítes dos príncipes para simular um suporte online, quanto técnicas complexas como a construção de narrativas pró esses governos em nações que, em teoria, não teriam envolvimento na política do golfo.

“Quando os sauditas quiseram comprar o Newcastle United, o clube de futebol, muitas das desinformações e tensões entre Catar e sauditas se refletiram em torcedores no nordeste da Inglaterra que não tinham nada a ver com a política do golfo, mas que de repente estavam sendo influenciados por essas narrativas que estavam saindo do Oriente Médio”, exemplifica Jones.

E complementa: “Eu olhei para as contas no Twitter de Mohammed Bin Zayed e descobri que muitos, em alguns casos 90%, daqueles que retuitavam eram apenas contas falsas. Esse tipo de coisa é projetada para aumentar a mensagem, mas também há uma coisa de ego envolvida. Um líder não quer criar uma conta e ter só 100 seguidores.”

Para pesquisadores é difícil dizer o quanto todo esse esforço de fato resulta em mudanças internas e externas de imagens. “Isso não afeta diretamente a diplomacia e as relações bilaterais porque essas iniciativas não são direcionadas a governos, mas sim para suas próprias populações, ou seja tentar chegar ao ouvido do povo saudita e dizer coisas que seu governo não quer que ouçam”, diz Akkoyunlu.

Pegasus e a espionagem de inimigos

O spyware israelense Pegasus entrou no centro dos debates após escândalos que revelaram o uso da ferramenta para espionar líderes e civis. O software se tornou alvo de debates inclusive no Brasil, após o vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, ter supostamente negociado a compra do sistema.

O Pegasus é um software que se instala no telefone de qualquer pessoa sem que o usuário necessite aprovar. É produzido pela empresa israelense NSO Group e só é vendido, segundo a empresa, para governos. Não é uma ferramenta de desinformação por si só e sim de vigilância, mas com ela é possível coletar informações pessoais e distorcer narrativas.

Foi exatamente o que aconteceu com Ghada. Ela soube que o software estava instalado em seu celular quando viu fotos suas de biquíni sendo compartilhadas nas redes em maio de 2020. Os trolls diziam que as fotos haviam sido feitas na casa do xeque Hamad Bin Thamer Al-Thani, presidente do conselho da Al-Jazeera.

Ghada Oueiss, jornalista libanesa da Al-Jazeera Foto: Arquivo pessoal

“Eu sabia que eles iam me atacar, mas não esperava que eles gastariam milhões de dólares só para arruinar a minha reputação”, desabafou a jornalista. “É como se eles quisessem me torturar psicologicamente porque não podiam fazer fisicamente. Foi como um tipo de estupro ou tortura, mas feito com um controle remoto.”

O “eles” a quem ela se refere são os governos saudita e árabe, afinal, embora ela não saiba exatamente quem implantou o software em seu aparelho, ela sabe que a espionagem veio de um governo. O Estadão procurou os governos da Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos por meio de suas embaixadas no Brasil, mas não obteve respostas.

Esta também foi a única certeza que teve Lama Fakih, diretora da Divisão de Oriente Médio e Norte da África do Humans Right Watch quando seu telefone também foi invadido em novembro de 2021. Ela só soube que estava sendo monitorada quando recebeu uma mensagem da Apple avisando da suspeita.

“Eu estava na minha mesa de trabalho quando recebi a notificação indicando que eles suspeitavam que eu havia sido objeto de vigilância estatal”, contou Lama. “Honestamente, no começo eu não acreditei.”

Segundo ela, os ataques ao seu trabalho sempre existiram, mas aumentaram depois que ela se tornou diretora da divisão de Oriente Médio e, principalmente, depois que ela passou a investigar a enorme explosão no porto de Beirute em agosto de 2020. Até hoje ela não sabe quem é o governo por trás da vigilância.

“A NSO diz que sua tecnologia é usada para combater terrorismo, mas pelo meu trabalho, e pelo fato de eu própria ter sido vítima de um ataque, eu sei que isso não é verdade”, desabafa.

Lama Fakih, diretora da Divisão de Oriente Médio e Norte da África do Humans Right Watch Foto: Arquivo pessoal

A NSO é uma empresa privada de Israel, e o governo do então premiê Binyamin Netanyahu tentou dissociar sua imagem do escândalo de espionagem. Mas uma investigação do The New York Times publicada em janeiro deste ano revelou que Israel obteve ganhos diplomáticos com o software.

“Não importa o que eles digam, é uma forma de estabelecer relacionamentos”, afirma Marc Owen Jones. “Israel só vai vender o Pegasus para aqueles países com os quais eles têm uma visão semelhante sobre política externa. Por exemplo: eu sou Israel e eu não gosto do Hamas, do Irã e da Irmandade Muçulmana, assim como a Arábia Saudita e os Emirados também não gostam, então posso vender a eles essa tecnologia e eles vão usá-la contra meu inimigos.”

Karabekir explica que o uso de propaganda e tentativas de moldar a opinião pública são considerados nas relações internacionais um tipo de “soft power”. Mas este uso, focando em ataques e vigilância, entra em uma zona cinzenta entre o soft e o hard power.

“A própria venda do Pegasus, ou seja, o caminho que Israel está fazendo não é diferente de vender armas. Quando falamos sobre armas cibernéticas, especialmente esse tipo de capacidade de spyware de rastrear conversas privadas, isso é uma verdadeira arma da nossa época. Propaganda computacional e hacking são parte de uma política muito mais dura”.

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