No Haiti, continua a investigação para saber quem foi o mandante por trás da contratação de mais de 20 ex-soldados colombianos para uma missão que terminou com o assassinato do presidente Jovenel Moïse, mergulhando o já instável país em uma crise.
Mas, a 1.600 quilômetros dali, na Colômbia, a detenção de 18 desses veteranos em Porto Príncipe escancarou um debate a respeito de como o país trata seus ex-soldados, o produto de um conflito civil que durou 73 anos e criou o segundo maior exército da América Latina.
Todos os anos, 10 mil homens se aposentam dessa guerra, de acordo com o Ministério da Defesa da Colômbia, mas a maioria é de soldados rasos que recebem pensões modestas, tiveram pouca escolaridade - alguns são analfabetos - e experiências limitadas no universo civil. Com poucas oportunidades em casa, milhares buscaram trabalho no exterior e, na década passada, ex-soldados colombianos se tornaram participantes cruciais em uma crescente e pouco supervisionada indústria global de mercenários, contratados por governos e empresas para fazer seus serviços.
De acordo com os especialistas, sua experiência e disposição de trabalhar por salários relativamente modestos fizeram deles recrutas particularmente valiosos em todo o mundo.
“Somos as máquinas de guerra. É para isso que fomos treinados”, disse Isaías Suache, 44 anos, ex-soldado de elite e diretor de uma associação colombiana de veteranos. “Não sabemos como ser outra coisa.”
Cerca de duas dúzias de ex-soldados colombianos de elite viajaram ao Haiti no início do ano depois que um colega lhes prometeu empregos no setor de segurança com salários mensais de US$ 2.700, o equivalente a quase sete vezes a pensão de US$ 400 que recebiam.
Em entrevistas, suas famílias afirmaram que a maioria deles acreditava que desempenharia um trabalho dentro da lei, protegendo alguém importante. O que de fato ocorreu no Haiti ainda não foi esclarecido.
Autoridades colombianas retrataram a decisão dos soldados de viajar ao Haiti como uma escolha individual com trágicas consequências. Em entrevista, o ministro da defesa, Diego Molano, disse que a falta de oportunidade doméstica “não pode ser aceita como pretexto para o envolvimento em atividades criminosas”.
Mas, nas semanas que se seguiram ao assassinato, veteranos colombianos insistiram para que o país reconsidere o tratamento oferecido aos ex-soldados. Alguns veteranos e especialistas em segurança dizem que o descontentamento abre uma oportunidade para forças informais que buscam contratá-los, representando uma potencial ameaça à segurança global.
Apesar do acordo de paz assinado em 2016 entre o governo colombiano e as Farc, maior grupo rebelde do país, o conflito não mostra sinais de chegar ao fim - e, hoje, o Exército está treinando e mobilizando uma nova geração de soldados para combater novas e antigas facções.
Alguns veteranos alertam que, se as oportunidades domésticas não melhorarem, esses homens serão jogados diretamente em uma voraz indústria global de mercenários com o potencial de promover outras operações que causam instabilidade no mundo.
“Precisamos de apoio”, disse Raúl Musse, 50 anos, diretor de outra associação colombiana de veteranos. “Ajudem-nos para que as pessoas se importem com o nosso futuro.”
Origem
O moderno conflito civil na Colômbia teve início com o assassinato de um candidato presidencial de esquerda em 1948. Com o tempo, o conflito cresceu e se tornou uma complexa guerra entre o governo, insurgentes de esquerda, paramilitares de direita e organizações envolvidas no tráfico de drogas, enquanto a Colômbia recebia bilhões de dólares em apoio militar dos Estados Unidos, seu irredutível aliado.
A guerra em si foi combatida pelos soldados rasos do país, que costumam apresentar perfil de trabalhadores ou camponeses. Mas, ao se aposentarem, perto dos 40 anos ou depois de 20 anos de serviço, muitos dizem ter recebido poucas ferramentas para alcançar o sucesso na vida civil.
As pensões mensais de US$ 400 proporcionam pouco além de uma subsistência mínima em cidades como Bogotá. O componente de ensino que caracteriza o programa de reintegração do Exército consiste em um ano de treinamento em indústrias como culinária e construção. Mas, depois de perderem os benefícios do Exército, muitos soldados acabam endividados para arcar com o custo de seus lares e famílias.
No decorrer dos dez anos mais recentes, o desespero dos veteranos encontrou uma crescente demanda global por serviços privados de segurança, em especial no Oriente Médio, de acordo com Sean McFate, especialista na indústria dos mercenários e professor da Universidade Georgetown.
Nos anos mais recentes, soldados colombianos foram ao Iraque e ao Afeganistão a serviço de empresas americanas, e aos Emirados Árabes Unidos, onde muitos se tornam mercenários a serviço do país em sua intervenção no Iêmen. Alguns colombianos mataram e outros colombianos morreram nessas missões, disse McFate. Alguns soldados ganham até US$ 5.000 por mês.
“Isso mudou completamente a minha vida”, disse William Amaya, 47 anos, ex-soldado que trabalhou nos EAU durante dois anos. Ele disse que usou o dinheiro para cursar uma universidade e abrir um negócio.
A operação no Haiti e o foco no envolvimento de ex-soldados colombianos ocorre em um momento particularmente complexo para os veteranos da Colômbia.
Antes alto, o apoio do público ao Exército caiu conforme as forças armadas foram investigadas por abusos dos direitos humanos, incluindo alegações segundo as quais oficiais teriam ordenado a morte de milhares de civis nos anos 2000. Esse escândalo é investigado pelo tribunal de guerra do país.
Ao mesmo tempo, os veteranos se veem diante de um ambiente de trabalho cada vez mais difícil, com a economia da Colômbia enfraquecida pela pandemia - enquanto o envolvimento dos EAU no Iêmen está diminuindo, o que reduz sua demanda por mercenário.
Muitos dos que foram ao Haiti tentaram repetidas vezes vagas de trabalho nos EAU, de acordo com suas famílias, mas nunca foram procurados.
Assim, quando surgiu a oportunidade de trabalho no Haiti, os homens a aproveitaram. Muitos aceitaram sem saber em qual país trabalhariam, para quem, por quanto tempo, ou mesmo qual seria sua missão.
“Temos três filhos”, disse Lorena Córdoba, mulher de Mario Antonio Palacios, que partiu no início de junho rumo ao Haiti. “Não havia dinheiro.” / Tradução de Augusto Calil